CAPITULO UM
Ela irrompeu pela porta do meu quarto, me fazendo sair do transe e congelar em meu lugar com seu olhar de condenação. A massa marrom em minhas mãos escorregou para o meu edredom colorido, o que pareceu chamar mais atenção que antes. Eu tentei me sentar o mais ereta possível na cama, dobrando minhas pernas e tentando me impor com minha postura quase impecável, mas certamente não surgiu efeito.
- Não dá mais, ! – Ela berrou, como se eu mesma não soubesse e não me sentisse inteiramente culpada.
Meu pai estava na porta do meu quarto, com uma expressão dividida entre o mais terno e doce e a total desaprovação. Eles haviam saído para um de seus jantares chiques de caridade, dos quais eu havia sido banida há quase dois anos, quando as coisas começaram a sair do controle, sua gravata já havia sido desamarrada e pendia despretensiosamente por sobre seus ombros, balançando ameaçadoramente como se fosse cair ao chão a qualquer segundo.
Minha mãe estava bem em frente a mim, com a expressão zangada e embora tivesse arrancado seus sapatos que podiam alimentar todo um país, estivesse descalça e vermelha de raiva de mim, ela ainda parecia completamente classuda e intimidadora. Seus olhos escuros cerrados em minha direção me diziam o que eu já estava cansada de saber: ela tinha vergonha de mim.
Eu tinha vergonha de mim, na verdade.
- Eu... Eu sinto muito – Eu disse.
E sentia verdadeiramente. Simplesmente não entendia como aquilo acontecia tão rápido, antes que eu tomasse ciência do que estava fazendo, me via rodeada de restos e lixos de todas as comidas que eu conseguia encontrar. Até mesmo porque se eu soubesse, se eu tivesse consciência das minhas atitudes, eu nunca teria sido pega com metade do rosto enfiado em tortinhas de chocolate. É claro que, nesse estado, eu só ia conseguir piorar ainda mais toda a minha relação com os meus pais naquele momento.
Minha mãe suavizou um pouco sua expressão zangada, mas eu sabia que ela ainda estava completamente irada comigo. Seus pés se arrastaram pelo carpete claro do chão do meu quarto, chutando as embalagens de comida que lotavam o chão e que eu mal tinha notado que havia aberto e engolido. Ela se mantinha parecendo tranquila, mas era a minha mãe e eu a conhecia – Quando ela parecia tranquila, era o seu estado mais perigoso. E, para piorar a situação, ao tê-la se movendo, eu tive a oportunidade de me ver pelo espelho que, antes, seu corpo não permitia.
Metade do meu rosto estava marrom, completamente sujo de chocolate. A outra metade estava ligeiramente suja de ketchup.
- Filha, você tem que parar de comer tanto assim – Ela disse para mim.
Eu concordei veementemente porque meu rosto estava tão redondo que eu mal me reconhecia. Havia um montante de pele embaixo do meu rosto que eu odiava completamente e eu mal conseguia amarrar meus próprios cadarços sem segurar a respiração.
A questão da minha aparência era quase irrelevante. Eu nunca havia sido totalmente magra, mas eu mantinha um peso saudável e lidava bem com meu corpo, só que depois que eu acabei a faculdade e meu avô morreu, eu comecei a comer. Fiquei um tempo brigando com a balança, emagrecendo e engordando e, então, meu namorado me largou para ficar com uma garota com metade do meu peso. E aí as coisas desandaram de vez.
O pior de tudo aquilo eram meus problemas de saúde. Meu colesterol estava altíssimo, meus joelhos doíam demais e eu era basicamente incapaz de me abaixar e conseguir me levantar sem quase morrer. E meu coração... Ele disparava ao mínimo esforço.
Eu sabia que eu tinha que emagrecer e eu estava fazendo dietas e exercícios. Perdi dois quilos na semana anterior e, aparentemente, eu havia acabado de recuperá-los sem nem me dar conta de que havia comido.
- Eu não sei o que aconteceu – Eu disse.
Minha mãe nunca acreditava em mim. Ela achava que eu comia porque eu queria, não importava quantas vezes eu lhe dissesse que não, que eu não pensava em comer, eu simplesmente comia e na maior parte das vezes, eu me arrependia de tê-lo feito.
Eu vomitei por uns dois meses. Provoquei vômito, mas não consegui nada além do que ficar morta de fome e fedendo, então eu parei. Eu acho.
- Nós já tentamos de tudo, Roberto – Ela disse, olhando para o meu pai.
Encarei-o também e ele estava meio que sorrindo de lado, como se aquilo não parecesse tão difícil para ele como era para mim e para minha mãe. E realmente não devia ser.
Minha relação com minha mãe sempre havia sido na corda bamba. Ela era muito de aparências e eu muito relaxada, o que nos rendera belas discussões ao passar dos anos, onde ela costumeiramente apontava todos os meus defeitos e me comparava com minha perfeita irmã mais nova.
A situação só piorou quando Danda foi para faculdade com suas notas perfeitas e seu namorado-filho-do-deputado, com seu corpo perfeito e alimentação saudável, enquanto eu só engordava e arrumava alguma maneira de comer mais um pouco.
- Não tudo, Mari – Meu pai disse.
Não tudo? Eu arregalei os olhos e quase me permiti sorrir. Tinha três meses que eu pedia para eles me pagarem alguma cirurgia de redução para que eu conseguisse, finalmente, emagrecer, será que eu estava prestes a conseguir? Se eu soubesse que era só ser pega com um montante de bolo de chocolate na cara, eu certamente teria tido um ataque antes.
- Ela é muito nova, Rob – Minha mãe ralhou. Era o mesmo blábláblá. Nada de cirurgias modeladoras antes dos trinta e cinco. – Não vou aceitar.
Meu pai entrou no quarto parecendo meio acabado e passou a mão pelos seus cabelos, o que acabou ressaltando as entradas grisalhas que ele vinha cultivando. Eu sabia que boa parte daqueles cabelos brancos eram por minha causa e pela minha incapacidade de fazer a única coisa que eles realmente me pediam: ter boa aparência.
Eles não iam me dizer isso, mas o meu espelho me informava a cada segundo do dia que eu tinha a aparência de um barril cheio.
- Tudo bem. Eu tenho uma ideia – Ele disse.
Minha mãe olhou de mim para meu pai com olhos esperançosos. Eu não conseguia ver qualquer outra ideia que eles me pudessem oferecer com a qual eu já não tivesse me debatido e realmente tentado. Não era possível. Para mim, a única opção viável era a cirurgia e eles tinham dinheiro o suficiente para me dar isso. Por que não?
Como se soubesse exatamente o que eu estava pensando, meu pai disse:
- Não vai adiantar de nada você fazer a cirurgia se não souber se controlar – E, então, olhou pra minha mãe. – Se não der certo, nós vamos fazer a cirurgia e você não vai impedir, certo? Uma última tentativa antes do extremo? – Ele olhou para mim de volta. Nós duas concordamos com a cabeça, mesmo sem saber o que ele estava prestes da dizer. – Madalena me recomendou um lugar.
O queixo de minha mãe caiu instantaneamente enquanto eu buscava na minha mente quem era Madalena. Lá nos confins da infância, eu encontrei. Nos piqueniques, nas férias do lago... Madalena era mãe de um colega de infância meu, , o qual eu não tinha contato há anos, desde que entramos na adolescência e minha mãe me proibiu de vê-lo porque ele começou a usar preto demais e fazer “rituais satânicos” que, eu tinha certeza, era apenas ouvir alguns tipos de música e ir em festas underground.
Era uma pena, porque ele era uma gracinha e eu tinha lá minhas quedinhas por ele.
- O caso dele é completamente diferente! – Minha mãe disse, uma oitava acima da sua voz normal.
Meu pai balançou a cabeça e respirou fundo como se procurasse alguma forma de acalmar nós duas ao mesmo tempo, com nossas diferenças, limitações e irresponsabilidades. Eu, as vezes, me perguntava, como podia ser tão diferente dos dois e da minha irmã, sempre tão corretos e tão responsáveis, enquanto eu era mais relaxada com tudo que acontecia ao meu redor e sempre acabava metida numa encrenca. Havia me perguntado muitas vezes se era adotada, mas haviam fotos de gravidez e comigo bebê demais para ser isso. Então, eu apenas desejava que a altivez da minha mãe brotasse em mim um dia, como mágica. Ou a calma constante do meu pai. Ou a irritante mania de ser perfeita em tudo da minha irmã.
- São vícios – Meu pai disse, empurrando alguns pacotes de bolo para se sentar em minha cama – Ambos são vícios. não consegue se controlar, então ela precisa de algum lugar que a controle o tempo todo.
Minha mãe abanou o ar enquanto eu estava concordando levemente com a cabeça sobre o que meu pai dizia. Eu realmente não conseguia me controlar e talvez, embora incômodo, fosse finalmente conseguir melhorar se me controlassem por mim.
- Bebida não é a mesma coisa que ela faz! – Minha mãe disse. – É diferente.
Meu pai concordou enquanto minha mãe parecia estar ficando vermelha por não entender os pontos dele. Seu lindo penteado da festa já havia se ido, estava caindo aos fiapos ao redor de seu rosto, deixando-a com uma aparência esquisita de um leão enfurecido.
- Tem razão. – Meu pai disse. – Comida é mais perigosa porque você não pode simplesmente parar de comer, ao contrário da maior parte dos outros vícios.
A expressão de minha mãe se suavizou ao entender o ponto que meu pai queria chegar. Ela apertou os olhos e respirou fundo, passando a mão no rosto e virando de costas para nós dois, deixando os dois braços caírem ao lado do corpo.
Frustração.
Ela havia acabado de perceber que tinha uma filha viciada em comida e que não era muito melhor do que as outras mães com filhos problemáticos de quem ela havia reclamado durante todo o verão.
Vi seu braço se mexer para cima e a mão passar discretamente pelo rosto e abaixei a cabeça, ligeiramente envergonhada por estar fazendo minha mãe chorar. Por que eu não conseguia apenas fazer as coisas que eles me pediam sem estragar tudo?
- E ela vai conviver com um bando de drogados, bêbados e outros marginais nesse lugar? – Ela questionou, ainda de costas para nós dois. – É isso que você quer, Rob?
Do canto do olho, ainda com a cabeça abaixada, vi meu pai engolir a seco, como se aquela perspectiva não fosse exatamente o que ele tinha em mente. Mas aquele era Roberto , meu pai, a calma e a sensatez em pessoa. Minha mãe, com seus rompantes de energia e euforia – nem sempre de forma positiva -, era completamente incapaz de tirá-lo dessa bolha mágica de tranquilidade que ele tinha ao seu redor.
- O que eu quero, Mari – Ele começou. – É ver minha filha saudável e feliz. Pra mim, não faz diferença se ela pesa cinquenta ou quinhentos quilos, nem o que suas amigas podem a vir falar sobre ela. O que importa é a saúde dela, que não está boa, é a facilidade com que ela perde a cabeça e se enfia em montes de comida e prejudica ainda mais a saúde dela, a forma com que ela corre pro banheiro para vomitar depois de você gritar com ela que ela comeu demais outra vez... É com isso que eu me importo – Ele disse. Eu prendi a respiração ao ver minha mãe se virar de volta para nós dois, recebendo toda a acusação que meu pai jogava em cima dela. – E eu vou fazer o que for necessário para que ela melhore, mesmo que isso signifique reabilitação e cirurgias modeladoras.
As narinas de minha mãe inflaram enquanto seu peito subia e descia aceleradamente e ela parecia tentar conter a explosão que ela provavelmente gostaria de ter, mas minha mãe tinha toda aquela mania de sempre parecer superior e raramente discutia com meu pai quando estava com raiva porque ele estava sempre tão calmo que ela era incapaz de se manter com a razão, explosiva como era.
- Tudo bem. Faça o que você quiser com a sua filha. – Ela disse, antes de sair do quarto batendo seus pés no carpete claro.
E, então, eu era apenas filha do meu pai.
Respirei fundo e levantei a cabeça apenas para perceber que havia sido deserdada pela minha mãe mais uma vez. Mordi meu lábio para evitar chorar na frente do meu pai, que sorria calorosamente para mim, tentando me tranquilizar.
Nós dois sabíamos que assim que ele entrasse no quarto que dividia com minha mãe, ela iria ter uma lista de coisas para atacá-lo, agora mais calma e controlada, e que ele teria uma noite horrorosa com ela buzinando em seu ouvido, mas ele ainda conseguia parecer como um herói especial, com aquele sorriso e aquela alma inabalável.
- O que você quer, filha? – Ele me perguntou.
Meu pai tinha o dom de me encher daquele sentimento que eu não sabia nomear. Era como se eu fosse importante no mundo e que minhas escolhas realmente significassem alguma coisa. As minhas escolhas, não o que ele e minha mãe queriam para a minha vida ou para o meu futuro. Era o que eu desejava que importava.
- Eu quero a cirurgia – Eu disse automaticamente. E, então, suspirei. – Mas você tem razão. Não adianta eu operar se eu não me tratar. Vou acabar encontrando uma maneira de ficar assim de novo.
Meu pai sorriu como se fosse exatamente a escolha que ele tomaria para mim, se alguém lhe perguntasse e, então, eu sorri porque parecia que eu estava fazendo alguma coisa certa, apenas para variar.
- Ainda podemos fazer a cirurgia enquanto você estiver lá ou estiver pra sair, se você quiser – Ele sugeriu. Concordei veementemente com a cabeça e ele riu, me dando um beijo na bochecha e se levantando – Vou ligar pra lá e te registrar.
Eu o olhei enquanto ele caminhava pelo meu quarto, parecendo um pouco mais despreocupado do que havia estado nos últimos meses.
- Uma reabilitação... Certo? – Eu soei um pouco confusa.
Meu pai parou no batente da porta e olhou para mim, tentando me entender. Ele provavelmente estava pensando que eu queria dar para trás – e eu provavelmente queria mesmo -, mas como é que eu podia negar alguma coisa quando ele me encarava com aquele olhar esperançoso?
Talvez fosse mesmo a solução.
- Sim... – Ele me disse. – Tudo bem? – Perguntou.
E, então, sem realmente saber como encontrar qualquer outra solução melhor, eu concordei com a cabeça e ele sorriu, sumindo pela porta do quarto e me obrigando a encarar todo aquele resto de bolo abandonado em cima da minha cama.
- Bom, parece que eu não vou poder comer você por um tempinho, não é? – Eu disse para aquele pedaço de massa inanimada.
Dei de ombros e o comi.
Dois dias depois, e uma viagem de mais de cinco horas, entramos na propriedade da Clínica de reajustamento & Spa Na Linha, com seus seguranças na entrada e seus muros altos. A clínica era imensa, quase uma fazenda e totalmente arborizada. Era um lugar tranquilo e agradável, algumas estatuas de anjos e imagens de santos católicos eram vistas na estreita rua de pedras que levava até a casa principal. Depois de quatro minutos cheios desde que adentramos o portão da propriedade, o carro estacionou na frente da casa principal e Marcos, meu motorista, abriu a porta pra mim e me ajudou a descer.
Olhei ao redor, tentando me acostumar com o lugar, mas o verde brilhante ao Sol apenas prejudicava a minha vista, fazendo com que eu apertasse meus olhos para a figura atarracada que caminhava em minha direção, vinda da imensa casa atrás de si.
Olhar para casa não doía tanto meus olhos, então eu me peguei admirando-a. Não gostei de encontrar grades tão pesadas em algumas janelas, mas, sobretudo, ela parecia bastante acolhedora. Três pessoas estavam abandonadas na varanda da entrada, uma garota e dois rapazes, e eles esticavam o olhar para mim, tentando me ver melhor, o que fez minhas bochechas ganharem um pouco de cor.
- ? – Ela questionou, parecendo simpática, ao que eu concordei com a cabeça. Logo, ela estava à minha frente, apertando minha mão animadamente. – Seja bem-vinda! Fez boa viagem?
Eu sorri para ela e puxei minha mão de volta. Tentei focalizar meu olhar curioso da figura à minha frente. Uma mulher baixa, com lábios finos e apertados, parecendo ser rígida, embora tentasse soar simpática para mim. Ela vestia roupas castas e longas, mesmo no calor e, pendurado no pescoço, um pingente de cruz.
Eu já estava começando a maquinar na minha mente que eu estava me enfiando na pior furada de todos os tempos e, à mim, tudo indicava que aquele lugar seguia as doutrinas católicas, o que poderia acabar sendo um pouco desagradável.
- Longa – Eu respondi. – São cinco horas de carro de São Paulo pra cá, só estou um pouco cansada.
- Claro! – Ela exclamou. – Vou te levar para o seu quarto. – E, então, completou para Marcos – O rapaz já vem te ajudar com as malas!
Cinco minutos depois e alguma tagalerice, eu estava jogada em uma das camas de um dos quartos com grade. Frustrada. Cansada.
E com medo da interação social.
Marisa, como se identificara assim que nos afastamos da entrada, havia me deixado saber que minha companheira de quarto estaria de volta de sua sessão com o psicólogo em algumas horas e que ela esperava que nós nos déssemos muito bem – e que ela seria responsável por me apresentar à clínica e às atividades assim que eu estivesse disposta.
- Umas duas horas de sono devem bastar. – Disse.
Tirando que eu, agora, não conseguia relaxar. As grades me irritavam, o cheiro de mato parecia que estava fazendo meu nariz coçar por dentro e tinha um aperto nervoso no meu peito que me impedia de simplesmente sair por aí, descobrindo tudo sobre aquele lugar sozinha. Ah, e minha barriga também estava revirando, então quando minhas malas chegaram, uma meia hora depois, eu fui caçar alguns lanchinhos que eu havia escondido na minha roupa.
E não achei nada. Nada.
Eu já estava odiando aquele lugar e morrendo de fome quando a minha companheira de quarto chegou e parou, meio chocada, me encarando da porta. Nós duas nos avaliamos por um momento; ela era negra, esbelta e alta, terrivelmente alta e estava super bem vestida e arrumada demais para estar em uma clínica de reabilitação. Ela arqueou uma de suas sobrancelhas perfeitas em seu rosto fino. As bochechas eram quase inexistentes onde a pele parecia estar em total contato com o rosto, o nariz fino parecia ter sido moldado à perfeição e os lábios eram mais grossos, sendo muito mais chamativos no rosto, tal como os olhos escuros que pareciam mais saltados que o normal. Todo o seu corpo parecia ser apena pele e ossos, os braços e as pernas eram tão finos que eu tinha certeza que ela poderia se quebrar em algum momento. Seu cabelo era lindo, em cachos grossos bem tratados, formando um capacete ao redor do rosto que disfarçava e destoava com a sua magreza excessiva.
- Oi – Eu tentei. – Sou .
Ela finalmente saiu do transe em que estava e fechou a porta atrás de si, seus movimentos sendo terrivelmente graciosos como de alguém treinado para ser perfeito, mas, talvez por ser tão magra e por eu achar que qualquer coisa poderia simplesmente quebrá-la ao meio, eu apenas encarei-os com um certo nervoso.
- – Ela disse, ao virar de frente para mim e caminhar em minha direção. Estendeu a mão para mim e eu apertei-a. Nossas mãos juntas destoaram terrivelmente, o claro e o escuro, o gordo e o magro. – Qual o seu problema? – Ela perguntou, quando afastamos nosso aperto.
Apoiei-me na cama, escorregando para colocar meus pés no chão e tentar sentar de forma mais educada e confortável para se manter uma conversa. estava com um sorriso amigável no rosto quando se sentou na sua própria cama, de frente para mim.
- Eu não sei comer só o suficiente – Foi a forma que eu encontrei para dizer.
riu e bateu com a mão na cama com uma força repreensível, me deixando nervosa ao esperar que a mão dela simplesmente saísse com o movimento.
- Bom, eu como menos que o suficiente. Tenho certeza que podemos fazer algo sobre isso. – Ela disse. Eu acabei rindo e abaixando a cabeça. – Na verdade, gosto de chamar o meu problema de Anaína.
Franzi a testa para ela, levantando o rosto para olhá-la e apenas identificar que ela me encarava divertida, de uma forma que me dizia que ela já havia feito aquela piada meia dúzia de vezes e sempre tinha o mesmo resultado.
- Anaína? – Questionei.
Ela riu, balançando o corpo todo e levanto a não na barriga. Eu estava começando a achar que se eu cerrasse os olhos e me concentrasse, eu ia conseguir ver o formato de algum órgão dela, mas tudo o que eu conseguia ver era algumas veias saltadas entre o osso e a pele.
- Anorexia e cocaína – Ela disse. – Eu não uso drogas há seis meses já, mas a Ana... Bom, acho que você pode ver.
Eu sorri porque, apesar de opostos, nossos problemas eram basicamente os mesmos. Era até fácil simpatizar.
Depois de meia volta dentro da casa principal, guiada por , e uma passada rápida pelo refeitório, os sinos começaram a soar, indicando às seis horas da tarde e parou no meio do corredor, revirando os olhos.
- Venha – Ela disse. – É hora da terapia em grupo. Pode ser constrangedor, já aviso.
Só pelo aviso, eu já estava com as bochechas coradas e fiquei ainda mais ao entrar na sala atrás de e perceber que nós éramos as únicas mulheres, além de Marisa, que parecia estar presidindo a terapia.
De cabeça baixa, sentei-me na cadeira ao lado de e tentei não encarar muito as pessoas e não parecer muito interessada para que ninguém se interessasse muito por mim, mas não estava dando certo.
- Como vocês podem ver, nós temos uma nova moradora, . – Marisa disse, acabando com todas as minhas expectativas de passar despercebida. – Por que não nos apresentamos todos para ela? - levou a mão ao ar e Marisa suspirou. - Sim, , você não precisa – Respondeu, antes mesmo que a pergunta fosse proferida. – , querida, por que você não começa se apresentando e falando do seu problema?
Entortei meus lábios, nem um pouco contente em todos terem a desculpa perfeita para olharem em minha direção, curiosos como estavam. Sentei-me da forma mais desconfortável que consegui encontrar, esticando meu corpo para manter um pouco da minha dignidade e limpei a garganta.
- Meu nome é , sou formada em engenharia, tenho vinte e seis anos e, há dois, eu não sei controlar o que eu como. – Eu disse, com bochechas coradas.
me deu uns tapinhas nas costas e eu entendi que era aquilo que ela estava dizendo sobre ser constrangedor. Marisa não parecia feliz com meu texto resumido, mas ela não pareceu se importar muito. Apontou para o rapaz sentado ao meu lado, para continuar a roda. Ao perceber que era sua vez, ele curvou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Ele era esbelto, muito bonito. O tipo de cara que quando passa por você na rua, você vai olhar para a sua amiga e sorrir aquele sorriso de que ambas pararam para admirá-lo. Tinha a pele morena clara, cabelos arrumados em um topete despojado e os olhos escuros embaixo de uma sobrancelha grossa, mas devidamente alinhada. O queixo era proeminente, os lábios grossos e, quando ele abriu o sorriso, eu sabia que ele poderia convencer qualquer pessoa de qualquer coisa só com o seu carisma e lábia. Era o tipo confiante de pessoa e não era por menos.
- Meu nome é , tenho trinta e quatro anos, sou produtor de eventos e viciado em sexo. – Ele disse.
E, ao ver meu queixo cair ligeiramente, ele virou o rosto para mim e me deu uma piscadinha, antes de se espreguiçar e voltar a posição despojada que estivera antes. Marisa fechou a expressão e cerrou os olhos para ele, como se toda a sua atitude lhe incomodasse profundamente - E não era por menos -, mas ela resolveu ignorar e apontou para o rapaz seguinte.
Era um rapaz bem branquinho, o cabelo encaracolado loiro escuro dava o ar angelical ao seu rosto ligeiramente redondo. Ele usava barba e bigode ralos, talvez uma tentativa de parecer mais másculo do que parecia, com seu rosto doce. Ele não era exatamente gordo ou magro, era mais baixo que os outros rapazes e usava óculos de lentes quadradas, que não me deixava ter certeza de qual era a cor de seus olhos, mas eu estava apostando em avelã.
- Meu nome é , eu tenho vinte e três anos, sou estudante de cinema e tenho dupla personalidade. O meu... outro eu é agressivo e mau e fez algumas coisas das quais eu me arrependo profundamente, então eu estou aqui na esperança de conseguir eliminá-lo.
Levantei minha sobrancelha mais uma vez, surpresa. Eu não esperava encontrar metade das coisas que aquela clínica parecia tratar ali.
Marisa concordou com a cabeça e apontou para o rapaz seguinte, que estava exatamente de frente para mim. Uma olhada, apenas, e eu sorri levemente, ao que ele balançou a cabeça, abaixando o olhar.
continuava tão lindo quanto sempre fora. Moreno de olhos brilhantes e alto, bem mais alto do que eu me recordava. Porém, ali, ele estava bem mais relaxado e descuidado do que quando nos vimos pela última vez: a barba estava grande, o cabelo também estava bem além do corte que ele usava e desgrenhado. Suas roupas estavam amassadas e havia algo emanando dele que não me apetecia.
- Já nos conhecemos – Ele disse. – Crescemos juntos.
Marisa olhou em minha direção e eu concordei, com um sorriso no rosto. Era uma tentativa de não passar pela vergonha de contar sobre o seu problema e eu tinha o aval de decidir, então por que não? Ele não estava mentindo mesmo.
- Certo. – Marisa disse. – , então?
estava sentado entre Marisa e e eu tive que me curvar para poder olhar para ele. Tentei arriscar-lhe um sorriso simpático, mas ele contorcia as mãos de dedos finos no colo, devidamente nervoso.
Ele tinha os traços doces, lábios finos e grandes olhos castanhos com cílios invejáveis. Suas bochechas eram ligeiramente cheias e o nariz era reto e fino, harmonioso. Era um garoto, e eu duvidava que mal tivesse saído da escola.
- Eu... Eu sou , tenho dezenove anos e sou gay.
Eu franzi a testa quando ele pareceu não continuar, com as bochechas coradas em extrema vergonha. Levei meu olhar para Marisa, que o encarava da mesma maneira hostil que havia feito com , pelo texto curto.
E quando ela continuou a presidir em grupo, eu quase não consegui prestar atenção. Porque eu não conseguia entender que estivesse na clínica por causa disso.