Sinopse

O segundo livro da série, “O Preço de Ser Uma Popstar,” mergulha ainda mais profundamente na vida de Tish Foster, uma popstar que finalmente alcançou o sucesso que tanto desejava. No entanto, a fama tem seu preço, e Tish está prestes a descobrir que o mundo dos holofotes não é tão glamouroso quanto parece.
Enquanto sua carreira está no auge, Tish também se encontra no centro de uma tempestade de fofocas e escândalos. A pressão da fama começa a cobrar seu preço emocional, e Tish precisa enfrentar todos os desafios de sua vida adulta e profissional. Ela está determinada a manter a felicidade conquistada e a proteger os relacionamentos preciosos que reconstruiu.
No entanto, à medida que a pressão aumenta, segredos do passado e novos obstáculos surgem, ameaçando seu relacionamento com o amor de sua juventude e desestabilizando as relações com seus amigos e familiares. Tish precisa encontrar forças para enfrentar o escrutínio implacável da mídia e lidar com as consequências de suas escolhas.
“O Preço de Ser Uma Popstar” é uma história emocionante que mergulha nos altos e baixos da fama, nos desafios de manter relacionamentos e na luta de uma jovem mulher para equilibrar sua carreira e sua vida pessoal. Com gatilhos emocionais complexos, a narrativa explora a resiliência de Tish enquanto ela navega pelas águas turbulentas da indústria da música e tenta preservar o amor e a felicidade que conquistou com tanto esforço.
Esta é uma continuação envolvente da série que captura o leitor com seus personagens cativantes, dilemas emocionais e uma jornada fascinante pelo mundo da fama
Gênero: Drama Romântico
Classificação: 18 anos.
Gatilhos: sangue, aborto, suicídio, alcoolismo, revenge porn / pornô de vingança, automutilação

Personagens

Tish Foster (Leticia Leah Alvares White)

Astrologia:
☼ Peixes
☾ Aquário
↑ Câncer
MBTI: ENFJ (protagonista)
Ocupação: Popstar
Aniversário: 22/02
Idade: 24/30 anos

Chris Willians (Christopher Adam Willians)

Astrologia:
☼ Capricórnio
☾ Aquário
↑ Libra
MBTI: ENFP (ativista)
Ocupação: Rockstar e Jurado
Aniversário: 23/12
Idade: 26/32 anos

Informações extras

Andamento da escrita:

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Últimas atualizações:

Capítulos 9 a 34: 22/04
Capítulos 7 e 8: 17/12
Capítulos 5 e 6: 03/12
Capítulos 3 e 4: 24/09
Capítulos 1 e 2: 31/08

Atenção:
Esse texto é o meu rascunho, então terá erros e confusões. A caixinha de comentários está aberta para sugestões e críticas (apenas sejam gentis) para que vocês possam me auxiliar nesse processo.
Até que ele esteja pronto para publicação, muita coisa vai acontecer e muita coisa pode mudar no texto, no nome ou na capa.
Fiquem à vontade para sugerir músicas para os temas dos capítulos!!! Nem sempre eu acho as certas e a ajuda de vocês seria importantíssima!

Capítulo 1

A Queda

Extra, extra! Não fique de fora dessa
Garanta seu ingresso pra me ver fazendo merda
Extra, extra! Logo logo o show começa
Melhor do que a subida só mesmo assistir a queda

Foi bem na semana que meu sobrinho, Andy, nasceu. Nós terminamos a turnê há pouco mais de uma semana e Chris e eu ainda estávamos naquele período mágico em que ninguém quer sequer arriscar cometer erros ou desagradar o outro, onde tudo era perfeito. Ele praticamente se mudou para a minha casa, marcou jogar golfe com David às quintas e um encontro duplo também estava agendado.

Para falar de pequenas vitórias, nós conseguimos parar de fazer sexo o tempo todo e, apesar dos olhares travessos e apaixonados que trocávamos o tempo todo, a vida era mais que isso.

Embora fosse importante.

Muito importante.

E que eu estava descobrindo que Chris era ainda mais safado do que eu pensava.

Mas, apesar disso tudo, acabamos desenvolvendo um gosto por assistir programas de investigação juntos e éramos isso que estávamos fazendo naquela manhã de domingo quente e abafada.

Enquanto a TV narrava um caso não solucionado famoso, Christopher mantinha os braços ao redor dos meus ombros e eu pintava minhas unhas dos pés. Consegui convencê-lo a pintar o mindinho de preto depois de uma batalha de cócegas e gargalhadas.

Seu telefone tocou e eu pausei a programação enquanto ele atendia. Acenou e mexeu os lábios para me informar que era sua mãe, então se levantou e começou a andar pela casa; ele tinha essa mania ao falar ao telefone, principalmente quando fosse sua família ou um dos meninos da DeLorean. Com sua mãe, porém, costumava se afastar o suficiente para ficar longe dos meus ouvidos; eu sabia que ela não gostava de mim e ele estava com dificuldades em selar um acordo de paz entre nós duas.

— Pode continuar assistindo — ele me informou. Então, como esperado, levantou-se e saiu andando pela casa, em direção ao jardim.

Eu não continuei assistindo. Esperei seis anos para garimpar minha chegada até aquele lugar e poderia aguardar uma ligação, então, ao invés, enrosquei o esmalte e peguei meu celular, que estava virado para baixo na mesa de centro.

Foi como se o mundo inteiro tivesse explodido na minha cara.

Quando Chris voltou, eu estava encolhida no sofá, os joelhos encostados em meu queixo, as mãos sobre as orelhas, me balançando e chorando, enquanto murmurava palavras inteligíveis em qualquer língua, embora se assemelhassem mais ao português.

— Tish? — Chamou-me, estranhando. — Tish! — quase gritou quando percebeu o que estava acontecendo. Pulou por cima do encosto do sofá para o meu lado e me puxou para seu colo no segundo seguinte, me apertando em seus braços fortes. — Calma, meu amor. O que aconteceu?

Eu não conseguia falar. Não conseguia responder nada útil. Era a primeira crise séria que tinha em anos e eu nem me lembrava mais do que precisava fazer. Christopher tentou me acalmar acariciando meus cabelos, dizendo coisas agradáveis, mas não deu certo Depois de algum tempo, ele achou que era melhor fazer uma ligação para minha irmã, já que Michael estava enrolado com um recém-nascido que adorava ficar a madrugada toda acordado.

— Não sei o que houve, saí por cinco minutos e, quando voltei, ela estava assim.

“Eu sei” a ouvi responder. “Já estou a caminho”.

Se eu estivesse bem, reclamaria que ela não devia dirigir e falar ao telefone ao mesmo tempo, mas estava grata que fosse tão rápida em avaliar os danos.

Não demorou cinco minutos e irrompeu pela porta de casa após Chris gritar que estava aberta. Então, fui gentilmente passada para seus braços, vendo Christopher coçar a cabeça, tentando compreender a confusão.

— Aqui — Piper ofereceu seu celular para ele. Apareceu a tiracolo, já que ela e Hope ainda moravam juntas. — Saiu uma matéria dessa ontem à noite, mas hoje as pessoas começaram a compartilhar e criar versões e teorias e, bom… Não parece nada legal.

Meus cabelos estavam sendo amassados pela minha irmã quando Chris sentou ao sofá e, entendendo o problema, beijou minha têmpora esquerda com carinho, voltando a esfregar as mãos pelas minhas costas.

Minha cabeça continuava repetindo as frases que leu no meu breve momento na internet.

“Pai de estrela da The Travelers vive na rua, catando lixo”,Nossa, essa garota mesquinha não ajuda nem a própria família”, “Ela comprou a porcaria de uma ilha e não dá um prato de comida para o pai”.

Pai.

Aquela palavra era gosma podre na minha boca e, enquanto a bile subia pelo meu esôfago, meu corpo entrou em colapso e me levou à crise extrema, mesmo depois de eu ter acreditado que tinha superado.

Porra nenhuma.

Existem algumas coisas que não somos capazes de superar, nunca. A gente só aprende a conviver com aquilo, começa até acreditar que está tudo bem, mas bastava um chute em nossas canelas para nos afundar na mesma lama até o pescoço e sufocar até a morte.

Piper me ofereceu uma caneca de chá assim que minhas mãos pararam de tremer. Com Hope de um lado, Chris do outro e Piper, sentada sobre a mesinha de centro da minha sala, à minha frente. Estava bem. Estava protegida. Minha família estava aqui. Eu ia lidar com isso.

— Meu amor — Chris me chamou. — Você vai precisar falar sobre isso, sabe, não sabe?

Eu sabia. Sempre soube que, em algum momento, a fama me cobraria aquele preço. Imaginei que alguém me perguntaria da minha família biológica e eu tinha ensaiado minhas respostas, mas estavam todos encantados com a história dos irmãos talentosos que ninguém nunca se atreveu. A maioria das pessoas sequer questionava e achava que éramos irmãos, mesmo e, apesar de sermos essencialmente diferentes, tínhamos nossas similaridades: o mesmo sorriso, o mesmo nariz, o formato do queixo…

Achei que seria mais fácil, menos invasivo e, certamente, não imaginei que me colocariam de vilã.

Abaixei a cabeça, mas concordei silenciosamente, bebendo meu chá. Chris beijou minha têmpora mais uma vez, enquanto Hope ainda esfregava meu cabelo com força porque sabia que a fricção sempre me ajudou a concentrar e melhorar.

— Podemos chamar a Mary Ann, se quiser — minha irmã sugeriu. — Conseguimos qualquer programa que quiser. Chamamos a mamãe. Tenho certeza que Michael vai aparecer assim que souber. Vamos estar todos aqui com você.

Chris e Piper concordaram imediatamente. A australiana chegou a se curvar para frente e colocar a mão sobre o meu joelho para mostrar-me que estava ali.

Encarei-os um a um, minha mente trabalhando na velocidade máxima para colocar as peças em todos os lugares. Neguei com a cabeça.

— Não quero TV — falei. Minha voz saiu muito mais grossa que o normal e tentei limpar a garganta, mas não resolveu. — Quero fazer nos meus termos. Ninguém perguntou minha versão antes de sair espalhando mentiras. Se for entregar minha história pra alguém, que seja alguém que se preocupa com a verdade.

Hope respirou fundo. Tinha certeza que ela me achava um porre. Para ela, só fazer sempre funcionava, enquanto, para mim, precisava ser feito de um jeito específico ou não iria dar certo.

— Eu tenho uma sugestão — Piper disse, levantando-se da mesa. Acenou para Christopher, empurrando-o para o lado enquanto ele ria, e ocupou o lugar, os dedos ágeis movendo-se na tela do seu celular, até que virou-o para mim. — Tem esse rapaz, aqui. Ele é um blogueiro alternativo, não é muito famoso, mas costuma ser gentil. Eu sigo ele há algumas semanas, ele fez uma matéria sobre a gente que foi super legal, então tenho acompanhado e ele postou sobre você hoje de manhã.

Peguei o celular, cautelosa. Hope se ocupou em me segurar pelos ombros, mas decidiu tampar minhas orelhas por precaução, porque era o que eu costumava fazer quando entrava em colapso.

Era uma mudança boa, devia relatar. Minha irmã finalmente me considerava forte o suficiente para acessar os gatilhos que poderiam me levar à crise.

Ele postou uma foto bem bonita, em preto e branco, minha com meus irmãos, em uma das sessões que fizemos juntos para revistas e propagandas. Aquela, em especial, era tão natural que parecia informal: eu e Hope abraçadas, com Michael nos abraçando por trás, o rosto apoiado atrás da minha cabeça.

Na legenda, se lia: “Vi várias matérias sobre a negligência de Tish Foster com seu pai biológico, mas ninguém pareceu se recordar que ela foi adotada pela tia aos nove anos e todas as vezes alegou não ter lembranças muito boas de sua infância. Pedi para uma amiga portuguesa fazer uma pesquisa simples com o nome do pai dela e encontramos matérias do início dos anos 2000, dizendo que ele foi acusado de fraudes trabalhistas em um processo de falência e que foi preso por homicídio. Não tivemos acesso aos processos e eu não quero teorizar, mas nós sabemos o que aconteceu a seguir: seus irmãos, Hope e Michael, cansaram de dizer que Tish era uma garota incomum quando chegou em sua casa. Não falava, não brincava. Tish também já alegou que sofria de distúrbios ansiosos severos, como TOC e fobia social. Então, antes de julgarem essa mulher, que acabou de inaugurar uma fundação que ensina arte para crianças carentes em uma favela que morou no Brasil, de ser mesquinha, vocês poderiam pensar melhor”.

— Sim — concordei, devolvendo o celular para Piper. Chris pegou-o para terminar de ler. — Podem pedir para Emilia organizar tudo, por favor?

— Claro — Hope finalmente soltou minhas orelhas e voltou a me segurar pelos ombros.

Chris recebeu várias ligações preocupadas, também, já que eu desliguei meu celular; Michael quase teve um colapso tão grande quanto o meu e Chris demorou um tempo para acalmá-lo e dizer que estava tudo bem, enquanto Hope ligava para tia Liah para evitar que ela se exaltasse também. Demorou até que Hope achasse que poderia me deixar sozinha com Christopher. Chegou a dizer que poderia dormir no sofá, mas informei-a que estava tudo bem e que ela e Piper podiam voltar para casa.

Quando nos deitamos na cama, Christopher estava me tratando como uma bonequinha de vidro, o que era bem semelhante a como fazia em nosso primeiro namoro. Cuidadoso ao extremo, carinhoso e mal me deixava sozinha, vigiando-me com o olhar.

— Me pergunto — murmurei, encarando o teto. Chris estava virado para mim, absorvendo cada mísera expressão do meu rosto. — Como conseguiram ir tão longe para encontrar esse homem, mas não descobrir o que ele fez.

Chris chegou ainda mais perto e passou seu braço por cima da minha barriga.

— Às vezes até descobriram — soprou, baixinho. — Mas só queriam ser maldosos.

Entortei o lábio e concordei com a cabeça.

— Acho que você tem razão.

Virei o rosto para olhá-lo e ganhei um beijinho rápido que me fez sorrir. Era quase ridículo como me sentia tão confortável com ele.

— Eu não sabia que ele não estava preso — disse. Percebi, em sua expressão, que se arrependeu de suas palavras assim que as disse. Estava curioso, mas não queria que isso me fizesse mal.

Virei-me para ele e levei uma mão ao seu rosto. Era tão apaixonada por Christopher que doía a ideia de perdê-lo outra vez. Ele ainda estava tentando entender a mulher que eu era agora, mas me conhecia profundamente, em parâmetros diferentes.

Me tornado mais forte com o tempo.

Naquela tarde me pegaram desprevenida, com as guardas abaixadas.

Eu não permitiria que isso acontecesse de novo.

— Eu sabia — contei-lhe. — Ele ficou preso por uns quinze anos. Estava trabalhando para Capitu quando foi solto. A gente se aproximou muito durante a pandemia e contei pra ela sobre o que aconteceu, então, ela manteve alguém de olho nele e, quando liberaram ele da cadeia, me avisou. Chegou a me perguntar se queria fazer algo sobre isso.

Chris me encarou profundamente, daquele jeito que fazia quando tentava ver além dos conceitos que tinha criado para mim, quando entendia que algumas nuances eram diferentes da garota que conhecei e quisesse atualizar a informação para amar essa minha parte nova também.

— E você fez?

Meus olhos encheram-se de lágrimas e neguei com a cabeça. Pensei tanto sobre aquilo na época, sobre como queria que ele sofresse pelo que fez com minha mãe, pela forma com que me destruiu, mas, em algum momento, cheguei a conclusão de que eu não me moldava pelas atitudes dos outros e não deveria converter minha índole por algo que não faria mais diferença na minha vida. O mal já estava feito, já fincara as raízes no meu coração e eu não precisava reproduzir ele.[2] 

Eu sempre poderia escolher ser melhor.

— Eu só queria conseguir esquecer a existência dele e, na maior parte do tempo, consigo — confessei. — Mas alguns dias…

Travei-me, mas não precisava dizer mais nada. Chris puxou-me ainda mais para perto e grudou nossos corpos, beijando minha testa, antes de me encaixar abaixo de seu queixo.

— Alguns dias são mais difíceis — completou. — E eu sempre vou estar aqui quando eles vierem.

Capítulo 2

Por sua causa

Por sua causa, eu nunca ando muito longe da calçada
Por sua causa, eu aprendi a ser cautelosa, pra que eu não me machuque
Por sua causa, eu acho difícil confiar
Não só em mim mesma, mas em todos a minha volta
Por sua causa, eu tenho medo

Nós agendamos a entrevista para o fim de semana seguinte e anunciamos a exclusiva pelas redes sociais. Durante a semana, pensei que duraria uma eternidade. Apesar do meu celular ter sido confiscado por Christopher pelo bem da minha saúde mental, às vezes, zapeando os canais da TV, me deparava com algum programa de fofoca falando sobre isso. Rolou até um papo de que criaram uma vaquinha para ajudá-lo.

Quase pedi para adiantar a minha entrevista, que colocasse no meio da semana, que fizesse às pressas, mas aguardei com impaciência.

Foi Michael que orquestrou o acesso à minha casa no dia da entrevista. Todos os meus amigos queriam estar lá, mas ele não permitiu. Estava tão nervosa ensaiando o que poderia falar que deixei-o fazer o que achava melhor para mim porque ele costumava acertar; Michael achava que encher a casa de gente, mesmo que fossem pessoas próximas, podia desencadear minha antiga fobia social, então limitou a Christopher, Hope, tia Liah, Emilia e Noah, o blogueiro. Gabriela também teve acesso à casa, mas estava no segundo andar, nos quartos, com o pequeno Andy.

O estúdio foi montando em minha sala com a gestão de Emilia e a supervisão de Michael e Christopher, tentando criar um ambiente agradável para ser o menos traumatizante possível. Quando a hora se aproximou, minha cabeça estava em um emaranhado de lembranças e Hope não saía do meu lado, atenta e cuidadosa. Talvez mais amorosa e compreensiva do que jamais foi comigo e o meu passado.

Foi olhando pra ela que soltei um suspiro cansado e passei os braços ao redor de tia Liah de forma inesperada.

— Você não precisa ouvir isso — disse-lhe, com carinho. — Não precisa ouvir as coisas que eu vou dizer.

Se fosse com Hope, não gostaria de ouvir. Não sabia quanto dos detalhes tia obteve no passado; de mim, nada. Não achava justo, depois de tantos anos, levá-la a saber o quão ruim foi. Ela era provavelmente a única que sentia a falta de minha mãe tanto quanto eu, já que Hope e Michael só a conheceram por voz e foto.

Ela beijou minha testa com carinho e passou a mão pelos meus cabelos.

— Nunca deixaria você sozinha, minha princesa.

Sorri e concordei com a cabeça, sentindo seus lábios em minha testa mais uma vez, enquanto Emilia nos chamava para começar. Tia Liah apertou as mãos em meus braços antes de me deixar ir. Desci as escadas com Hope à minha frente e fui guiada para a sala. Emilia estava ao lado do rapaz que arrumava as luzes, disse-lhe algo e ele saiu rapidamente em direção à cozinha. As três câmeras ao redor das poltronas estavam ligadas sem ninguém as operando, mas, quando se moveram, percebi que eram automatizadas. Christopher e Michael estavam no canto da parede, observando tudo e sorriram ao me ver entrar. Noah estava sentado em seu lugar, já, agarrado a alguns cards e levantou-se imediatamente ao me ver.

— Tish, oi, muito prazer, é… — ele parecia mais nervoso que eu, até. Alguém contextualizou o assunto para ele, eu achava, mas apenas o suficiente para fazer as perguntas certas. — Queria te agradecer por ter me escolhido, quero dizer, eu nem sou tão grande…

— Agradeça a Piper — disse. — Te escolhi porque você parece gentil. Parece se preocupar com a verdade além da fofoca. Apenas… mantenha isso.

Ele agradeceu. Emilia me guiou para a poltrona nova, já que meus sofás foram substituídos por duas poltronas apenas para aquela entrevista.[3] [4] 

Foram 30 segundos tenebrosos, de coração acelerado e controlar a respiração, antes de iniciar a transmissão ao vivo.

— Boa noite, pessoal. Sou Noah Chester e estou aqui hoje na residência de Tish Foster para conversar com ela sobre os últimos boatos que saíram sobre seu passado. Olá, Tish.

— Boa noite, Noah, boa noite, pessoal — cumprimentei.

Respirei fundo mais uma vez, tentando controlar minha respiração.

— Então — Noah também não estava muito relaxado, mas parecia se esforçar mais do que eu. — Na semana passada, lançaram uma matéria sobre seu pai estar catando lixo para poder comer e se iniciou uma série de boatos discordantes, ataques e organizações para ajudá-lo. Mas você não recebeu nada disso muito bem, estou certo?

Entortei a boca.

— É — respondi. — Acho que errei em ter deixado isso de lado, em nunca ter falado sobre isso. A verdade é que ninguém nunca perguntou e… não é um assunto que me agrada, então fui só deixando de lado. Sabe? Minha família toda está aqui, são as pessoas que eu mais amo no mundo e nem eles sabem. Não de tudo. Uns sabem uns pedaços, talvez tenham montado o quebra cabeças, mas, é… — e dei de ombros.

Noah curvou-se para frente, tentando parecer relaxado e me ajudar com meu desconforto ao mesmo tempo.

— Vamos começar pelo começo, então — sugeriu. — Você viveu no Brasil até que idade, antes de vir morar com seus tios?

— Uns nove — respondi.

— E você conviveu com seus dois pais até essa idade?

— Antes de ir para o abrigo, sim — concordei.

Noah estava tentando me fazer falar e, mesmo que tivesse treinado, eu continuava fugindo do assunto, usando as respostas curtas. Ele, porém, mesmo em sua inexperiência, sorriu e entendeu, continuando.

— Por que não nos conta um pouco de sua vida antes de ir para o abrigo?

Concordei com a cabeça. Era por isso que ele estava ali, a sua gentileza. Qualquer outra pessoa já teria rasgado o muro que eu levantava para me proteger. Vi Christopher se movimentar para fora da sala e tentei disfarçar meu desconforto com um sorriso.

— Eu tinha uma vida tranquila, achava. Era uma criança normal — pontuei. — Ia para a escola, brincava, me divertia. Tinha uma condição financeira razoável, eu acho, até que as coisas começaram a mudar. Eu passava a maior parte do tempo com a minha mãe. Ela era linda — sorri com a lembrança. — Linda. E tinha uma voz… O que eu mais me lembro era de sua voz. Minha mãe não falava português muito bem, acho que a maior parte da língua, ela aprendeu comigo, então ela era um pouco isolada, o que me isolava também. Ele… Ele não era gentil. Bebia muito. Não tenho… não tenho memórias muito claras dele, mas… ah… morávamos na mesma casa, mas não interagíamos muito. Eles brigavam muito. Lembro das brigas.

Parei de falar. Noah demorou um pouco mais para perceber que eu tinha encerrado.

— Tish, sei que é difícil, mas gostaria que nos contasse do porquê foi para o abrigo — pediu.

Abaixei a cabeça e concordei. Antes de responder, senti o braço da poltrona afundar.

— Desculpa a intromissão — Christopher pediu. Encarei-o e ele sorriu, me tranquilizando. Colocou um copo de água em minhas mãos. — Você está indo bem — me garantiu, antes de virar para Noah. — Desculpe. Quando ela fica nervosa, perde a voz. Achei que um pouco de água pudesse ajudar.

Ele saiu do enquadramento, mas não se afastou. Bebi um pouco da água, agradecida, antes de continuar, colocando o copo no chão, ao lado do meu pé.[5] 

— Foi uma dessas brigas. Ele tinha bebido, eu acho. Minha mãe e eu estávamos cozinhando o jantar. Eu não fazia muita coisa além de traduzir as receitas pra ela. Ele chegou e os dois começaram a discutir. Foi uma discussão rápida em duas línguas e eu era muito criança pra entender todo o contexto. Minha mãe mandou eu ir para o quarto, mas não fui. Fiquei escondida chorando ouvindo os dois na cozinha. Eu ouvi… — Travei. Girei o queixo para o lado, fechando os olhos, desconfortável. — Ouvi um grito dela. Ouvi alguns barulhos, a porta, o carro acelerando. Chamei por ela — joguei a cabeça para trás, as memórias dessa parte eram vívidas para o meu próprio bem, sempre foram. — Eu fui… cheguei… — As palavras estavam começando a falhar, mas precisava continuar. — Ela ainda tava se mexendo. Acho… acho que eram espasmos — Não tinha nada no mundo que segurasse minhas lágrimas. — Foi… foi uma faca — com a lateral da mão, mostrei onde foi, na cabeça, começando na altura da sobrancelha e indo até o meio da cabeça. — Eu… Eu sabia que tava errado aquilo, achei que era o problema, então… Eu tirei. E… Sangue. Sangue. Muito sangue. Sangue. — Comecei a repetir. Hope foi a primeira a chegar para me socorrer, colocando as mãos na minha orelha. Michael chegou poucos milésimos de segundo depois, puxando minha mão para ele e começando a friccionar meu braço.

— Tudo bem — ele disse, baixinho. — Está tudo bem agora.

Eles me deram um momento. O copo de água voltou para minha mão. Bebi até o fim e ele sumiu novamente, não fazia ideia de para onde foi.

— Consegue continuar? — Hope perguntou. — Se não, acho que a gente sabe daqui.

Eu concordei com a cabeça, porém.

— Eu limpei tudo. Não entendia o que estava acontecendo, achei… achei que ela estava dormindo, então limpei tudo pra ela não dormir no sujo — expliquei. — Acho que depois de um tempo, comecei a achar estranho. Eu abanava ela porque… tinham… tinham moscas — as palavras estavam começando a ficar pesadas e gosmentas na minha boca, meu maxilar mais duro e difícil para movimentar. — Gritei. Tive fome. Gritei. Foram… acho… Quatro. Quatro. Quatro.

— Quatro dias, ao que parece, até que encontraram as duas — Michael completou pra mim. — Ninguém soube precisar. A Tish não… A Tish não falava quando encontraram ela. — Ele passou a mão pelo meu ombro, ainda friccionando e eu deixei meu maxilar travar de vez. Hope continuava com as mãos em minhas orelhas. — Ficamos sabendo um pouco depois, demoraram pra achar a mamãe. Quando ela soube, viajou correndo.

— Ela disse que ia buscar nossa irmã — Hope contou. — Ficou uns dias fora. Eu não entendi nada, mas fiquei tão… tão animada em ter uma irmã. A gente nunca tinha se encontrado antes. Sabia que tinha uma prima, claro, mas… sei lá, eu só aceitei.

— Eu entendia melhor — Michael explicou. — Meu pai conversou comigo. Explicou que tinha acontecido uma coisa horrível e que a gente ia precisar cuidar da Tish e que eu tinha que ser um bom irmão pra ela — ele respirou fundo. — Foi… foi… — ele pareceu pensar a palavra com cuidado. — Complicado. Ela chegou sem falar nenhuma palavra. Nada. Não tinha muita reação, também. Ficava lá, parada, olhando pro teto.

— Parecia que ela só tava existindo — Hope completou. — Era tão frustrante.

— Era terrível — Michael continuou. — Ela só reagia quando eu cantava pra ela. Então a gente começou a ensinar pra ela, a tocar e cantar, pra ver se ajudava. Ela saiu da inércia, mas então…

— Ela começou a limpar a casa inteira — Hope concordou com a cabeça. — Ninguém sabia o que fazer. Ela ia pra terapia, tomava remédio e limpava a casa inteira.

— E nunca falava uma palavra na frente de ninguém que não fosse de casa — Michael contou. — Foi assim por um longo tempo.

— Por que vocês fazem isso? — Noah perguntou, curioso, apontando para os gestos de Hope, que tampava minhas orelhas, e Michael, que friccionava meus braços.

— Ela faz isso — Hope explicou. — Quando ela entrava em crises, ela fazia isso. Não tem acontecido muito, mas deixa ela mais calma. A gente só tenta ajudar.

Eu estava começando a me acalmar. Minhas lágrimas já diminuíam e minha respiração não estava mais tão descompassada. O maxilar, porém, continuava sem querer se mover.

— Quando foi que ela… — Noah parou e tentou formular-se melhor. — Quero dizer, ela hoje é falante, parece bem. Como isso aconteceu?

Hope e Michael se entreolharam atrás de mim. Não tinham acompanhando a maior parte do processo. Para eles, eu saí travada e voltei solta.

— Começou com Christopher, eu acho — Michael admitiu e eu arregalei os olhos, admirada que ele soubesse. — Quando eles se conheceram e começaram a namorar. Eu… não era muito a favor, mas… Ele fazia bem pra ela. Dava pra ver.

Hope concordou com um aceno de cabeça.

— Ela começou até a falar com as pessoas na escola — contou. — Até quando ela não gostava de algo, respondia. Fez amizade com Matthew logo depois. No geral, ela só ficava sozinha ou andava com quem eu andava, mas depois de Christopher, começou a escolher os próprios amigos.

Percebi quando Christopher deu um passo para frente. Se eu não podia falar, aquela parte da história era responsabilidade dele. Foi Michael que cedeu o seu lugar no braço da poltrona para ele, que ocupou rapidamente, envolvendo minha mão. Hope afastou suas mãos da minha orelha por um momento, testando se eu estava realmente mais calma e acenei para ela com a cabeça, antes que ela deixasse os braços caírem e acabou por se afastar também.

Chris beijou o topo da minha cabeça com carinho. Seus olhos estavam molhados em assistir meu sofrimento. Ele sabia de quase tudo. Quase mais que meus irmãos, e amou cada pedacinho quebrado meu. Quando Michael saiu de casa e eu comecei a perceber que teria que me virar sozinha, foi Chris que apontou a direção certa pra mim.

Eu jamais poderia ser grata o suficiente.

— Vocês se conheceram pelo Michael, é isso? — Noah perguntou.

Chris concordou com a cabeça.

— É… Michael falava muito das irmãs, falava muito com elas. Eu vi… Fotos antes. Achei a Tish linda na hora — Eu deitei minha cabeça em sua perna e ele começou a acariciar meus cabelos com displicência. — Ela foi visitar a gente no hotel quando estávamos compondo e eu percebi que ela era diferente na hora. O lugar inteiro era meio quebrado, sujo, ela parecia que teria um colapso nervoso a qualquer momento. Eu só… fui gentil. E, sei lá, a gente começou a flertar, então chamei ela para dar um passeio e a gente se beijou. Então… então começamos a sair e logo depois a namorar.

— E o que você fez que ela começou a interagir com as pessoas?

Chris suspirou e chegou a parar de acariciar meus cabelos por um momento para refletir o que responder.

— Olha… Eu acho que a família dela sempre protegeu ela muito e é totalmente compreensível — ele deu de ombros. — Quando a gente se conheceu, ela não fazia mais terapia. Tinham desistido porque ela não evoluía, então só aprenderam a conviver com isso. O que eu acho é que ela já estava pronta, sabe? Pra começar a melhorar — estalou os lábios. — Ela só não fazia isso porque não precisava. Ela tinha quem falasse por ela, entende? Tava todo mundo ali, em cima, pronto pra proteger ela antes dela precisar e, não me leve a mal, ela ainda precisava, mas não com tudo. Entende? Não acho que eu tenha feito nada demais. Eu só instigava ela a falar comigo, com outras pessoas. Fazia ela pedir informações e fingia ficar no telefone pra ela fazer pedidos de comida. Essas coisas. Então ela começou a se soltar aos pouquinhos.

Noah concordou com a cabeça e parecia bastante satisfeito com o andamento de tudo.

— Olha, se você não se incomoda, gostaria de perguntar… — Pediu. — Vocês recentemente reataram e nós ficamos sabendo que houve esse momento, muitos anos atrás, em que estiveram juntos e que ninguém sabia nada disso. Tenho certeza que, como eu, o mundo inteiro queria saber o que aconteceu e porque acabaram não ficando juntos.

Chris riu. Ele não era de expor muito sua vida pessoal, mas ele mesmo que colocou nosso relacionamento na roda no momento em que reatamos, então sabia o que viria pela frente. Tinha gostado de Noah, ao que parecia, e provavelmente se devia à gentileza do rapaz ao conduzir a entrevista comigo.

— A gente já se gostava. Muito — contou. — Mas acho que éramos muito novos. Não estávamos prontos, nenhum dos dois. Eu… Eu fui imaturo. E a Tish não conseguia sentar e conversar abertamente, então a gente simplesmente não conseguiu se entender. Então a gente terminou e ela decidiu ir morar no Brasil. Ainda tentei fazer ela ficar, mas… foi o momento dela. Acho que foi quando ela realmente começou a lutar por ela. Ela partiu meu coração, foi embora, mas… Ela fez isso por ela, eu acho. E foi a melhor coisa porque jamais pensei… jamais pensei que ela seria a pessoa que ela é agora. Eu sonhava com isso, sabe? Quando a gente ama alguém assim, a gente só quer que ela seja a melhor versão que ela pode ser e eu queria isso pra Tish, mas nunca pensei que ela conseguiria se livrar de tudo, não com, sabe, isso tudo que aconteceu com ela, mas ela é forte e ela fez. Então, quando ela voltou pra cá, eu não conseguia acreditar. E, eventualmente, acabamos trilhando o caminho de volta um pro outro.

Ele se curvou pra mim e beijou minha têmpora. Fechei meus olhos e uma última lágrima acumulada escorreu pelo meu nariz.

— E como foi pra você morar sozinha no Brasil, Tish?

Senti Chris rir e ele balançou a cabeça negativamente à pergunta.

— Desculpa, mas não acho que ela vá falar mais nada hoje, Noah — explicou.

Noah olhou de Chris para mim e, me encarando, arriscou um sorriso triste e compreensivo. Aprumou-se na poltrona.

— Está certo, então — declarou. — Tish, queria te agradecer pela força em dividir sua história conosco e agradecer sua família por estar aqui para nos ajudar a entender — encerrou. — E pra você, que acabou de assistir — ele olhou para a câmera, falando diretamente com os telespectadores. — Não acho que jamais haverá um exemplo tão claro sobre como somos rápidos em julgar alguém sem entender as motivações e a história por detrás. Durante a última semana, vocês muito rapidamente pegaram uma das mais gentis e filantropas artistas pop da atualidade e a transformaram em uma vilã por uma história cheia de furos e com poucas fontes. Em nenhum momento pesaram o caráter que ela tem nos mostrado, apenas julgaram que ela vestia uma máscara de bondade enquanto saía por aí, fazendo o mal. Eu espero, de todo o coração, que tenham aprendido sua lição. Obrigado pela sua atenção.

Capítulo 3

Canção do Amor Secreto

Nós ficamos atrás de portas fechadas

Todas as vezes que te vejo, morro um pouco mais

Momentos roubados, que roubamos de volta

Hye foi a segunda.

Aconteceu depois de todo o meu processo de cura, o que foi mais demorado que achávamos. Chris disse que eu não falaria pelo resto do dia, mas a verdade é que fiquei em silêncio por mais ou menos uma semana. Preocupado comigo, ele cuidou de cada detalhe, orquestrou e agendou as visitas e não permitiu que ninguém ficasse muito tempo, além de tia Liah e Hope, que dormiram a primeira noite comigo. Michael teria permissão também, se não estivesse às voltas com Andy.

Dave foi o primeiro a tentar se instalar no meu sofá, com Chelsea a tiracolo. O casamento dos dois estava se aproximando, mas tiraram uma manhã inteira conosco. Dave se esforçou em me fazer rir e procurou um restaurante brasileiro para me conseguir brigadeiros. Fui muito grata, mas não consegui dizer. Piper chegou com Hope, tentando se aproveitar das regalias da minha irmã em passar o dia comigo. Distraiu Chris conversando sobre bumbos, mas acabou sendo expulsa logo após o almoço, quando Hye e Emilia apareceram e Chris insistiu que havia uma lotação máxima. As duas pareciam não estarem mais disfarçando tão bem, mas Hope não percebeu. Elas foram embora juntas depois de Chris insistir que ela não precisava dormir lá outra noite.

Meu irmão deu uma passada rápida para me ver, acompanhado de tia Liah, que me abraçou a maior parte do tempo em que ficou ao meu lado. Foram logo porque Gabriela estava sozinha e tia Liah ia ajudá-los com o bebê.

Então falei a primeira coisa em quase dois dias e foi o nome dele.

Chris estava cuidando de mim com o máximo de delicadeza possível e tinha conversas comigo em que só ele falava. Era o jeito dele de tentar me colocar para fora da minha bolha mental, mas meu maxilar continuava travado e até mesmo para comer era difícil. Fui eu que avancei para cima dele, buscando conforto em sua boca e foi inevitável irmos adiante. Quando cheguei lá, então, gritei seu nome. Chris desabou sobre mim e riu com os lábios contra o meu queixo.

— E aí ela fala — brincou.

Mas só voltei a falar no dia seguinte, depois de Alex e Alika irem embora, no horário de visita de Gabriela, Michael e do pequeno Andy, em meus braços.

— Lindo — disse para meu sobrinho, acariciando sua bochechinha enquanto ele dormia.

O suspiro de alívio de Michael foi tão alto que pude ouvi-lo, mesmo que ele estivesse lavando minhas louças.

Eles acabaram indo embora quando Andy começou a ficar irritado, estranhando o ambiente. Chris me deixou sozinha alguns momentos para desvendar um telefone para pedir comida entre os panfletos da geladeira.

Eu queria muito voltar ao normal.

Levantei-me, decidida.

— Chris! — Chamei. Meu maxilar travou novamente e eu bufei enquanto ele vinha correndo da cozinha. Olhou-me com curiosidade divertida ao me ver de pé, as mãos apertadas em punho e com a determinação estampada na cara.

— Sim? — perguntou.

Entranhei minhas unhas na palma e me forcei para fora das minhas paredes de proteção com o máximo de força que consegui.

— Vou… Vou… Tom… Tomar… To… — grunhi com a força que fazia para as palavras saírem.

— Tomar banho? — Chris perguntou, tentando me ajudar. Concordei com a cabeça.

Ficamos nos olhando sem que ele entendesse o que eu queria dizer. Ou, pelo brilho em seu olhar, tinha até entendido e queria me fazer dizer.

— Que… Que… Quer… Hm… quer… Vi… — Bufei. Fechei os olhos e balancei com a cabeça de um lado para o outro, frustrada.

Ele estava ao meu redor no momento seguinte. Pegou-me pelo rosto e beijou minha boca com carinho.

— Vou — respondeu. — Mas volta pra mim?

Abri meus olhos para ver os seus cristais azuis me encarando com a sinceridade do seu pedido. Meus dentes tremiam com a força que eu fazia para que se afastassem.

— Sim — concordei. — Sim.

Foi um árduo caminho de volta e foi com Chris que consegui retornar. Eu travava, mas era só ele estar por perto que sentia a pressão diminuir. Ao perceber que eu reagia melhor ao estar sozinha com ele, vetou as visitas por uns dias e teve que ficar quase uma hora ao telefone com Michael para garantir que eu estava melhorando.

Demorou uma semana inteira para que eu parasse de gaguejar e parasse de sentir meus dentes grudados um no outro e foi só aí que tive permissão para verificar as redes sociais e a programação normal da TV. Ainda encontrei posts sobre mim, gente desesperada que doou dinheiro e queria de volta, várias mensagens de apoio e uma galera me acusando de drama e sentimentalismo barato.

Quando começamos a divulgar o nosso segundo álbum, no mês seguinte, ainda não estava no meu melhor momento. E, claro, a primeira pergunta foi sobre o meu passado.

— Me desculpe — respondi, ao invés. — Já disse tudo que queria dizer sobre isso.

— Não vamos responder perguntas sobre a infância da Tish — Hope me defendeu. — Tish demorou mais de uma semana pra voltar a falar e se ela perder a voz de novo, como vamos nos apresentar hoje?

Foi só quando eu ri que as pessoas nos acompanharam e voltamos a programação normal, com perguntas sobre o novo álbum e o que estávamos apresentamos nele.

Infelizmente, não fui a única a pagar o preço alto.

Acordei em um susto com meu celular vibrando desesperadamente. Passava um pouco mais de cinco da manhã e me desvencilhei dos braços de Christopher para me sentar e alcançar o aparelho na mesa de cabeceira. Ele parou de tocar na hora em que tentei atender.

— Tudo bem? — Chris coçou os olhos e me perguntou. Dormia comigo todos os dias; ele ainda tinha uma casa, só quase nunca ia nela.

— Não sei… — respondi. Desbloqueei o aparelho e vi a mensagem de Hope enviada apenas dois minutos antes, exigindo que eu fosse para a casa de Hyelin com urgência. Franzi a testa e respondi um “ok” seguido de vários pontos de interrogação. — Hope quer fazer uma reunião.

— Agora? — Chris estranhou.

Estranhei também. Enviei os pontos de interrogação para Piper e Alika também. Estava quase enviando-os para Hyelin quando Alika me respondeu com uma foto.

— Ah, não — choraminguei. Virei o aparelho para Chris poder entender, o que ele respondeu com uma careta. Era uma montagem com três fotos, uma escura de Hye e Emilia se beijando dentro de um carro e duas mais claras delas sozinhas, Emilia dentro do carro e Hye na rua, com um sorriso, apenas para que não restassem dúvidas. — Urg. A gente socou um monte de entrevistas hoje pra deixar o fim de semana livre pro casamento. Vai ser um massacre.

Chris estava quase adormecendo novamente quando me levantei para começar a me arrumar.

— Boa sorte — murmurou, molenga, enquanto eu abria o armário para escolher uma roupa. Depois, sentou-se no susto, um pouco mais desperto. — Espera. Precisa de ajuda?

Dispensei com um sorriso e ele voltou a dormir quase imediatamente.

Meia hora depois, estava à porta da casa de Hyelin. Fui a última a chegar, mas minhas amigas ainda estavam batendo na porta e Hope informou que Hye não atendia ao telefone de forma nenhuma. Demos sorte que era cedo e só havia um fotógrafo fazendo plantão ali.

Hope estava inconformada e tocava a campainha sem parar.

— Como eu não sabia disso? — reclamou.

— Bom, eu sabia — Alika confessou. Olhei pra ela, arregalando os olhos. Esse tempo todo e eu podia ter fofocado com alguém que não fosse Chris? — Estava fazendo compras com Emilia e insisti que ela deveria experimentar alguma coisa e ela me deixou com o celular dela. Hye ligou e o nome era “meu bebê”, então…

Hope parecia que ia esganar alguém. Piper, por outro lado, começou a rir do apelido.

— Eu também sabia — contei, apenas para tentar salvar a vida de Alika. — Ouvi as duas se beijando e conversando. Naquele dia que descobriram sobre eu e Chris na entrevista. Elas estavam se pegando no camarim.

Alika me encarou do mesmo jeito que eu fiz com ela e soube que ela também adoraria ter conversado com alguém sobre, mas nós duas mantivemos a discrição.

— Por que ninguém me contou? — Hope indignou-se, ainda massacrando a campainha.

— Não era meu segredo pra contar — dei de ombros.

A porta se abriu naquele momento e Hye apareceu. Os cabelos bagunçados, os olhos vermelhos e o rosto todo inchado.

— Ah, querida — Alika a envolveu em um abraço ainda na porta.

— Entra — Piper exigiu. — O filho da puta vindo atrás. Entra agora.

Empurrei as duas para dentro, sentindo o flash da fotografia atrás de nós. Piper correu para fechar a porta quase na cara de Hope, que demorou um pouco mais para reagir.

Apertei o ombro de Hope, que encarava Hyelin chorando nos braços de Alika de uma forma dolorosa e alta, muito diferente de sua personalidade sempre contida.

— Não — disse, simplesmente, para minha irmã. Ela continuou encarando por mais alguns momentos e foi a última a se juntar no bolo que formamos para conformar Hye.

Ela não queria nos seguir para as entrevistas daquele dia e tudo estava uma bagunça porque Thomp insistiu que Emilia precisava ser afastada do trabalho e Karol, a segunda em comando, não estava 100% familiarizada com as coisas que precisavam ser feitas.

— Eu quero a Emilia aqui — exigi, no meio da conferência telefônica que estávamos fazendo. Não era de fazer exigências quando pessoas mais experientes que eu me falavam o que era melhor, mas também não era de aceitar as coisas que achava erradas. — Nenhuma de nós está ofendida que Emilia e Hye estão juntas. Ela é uma profissional incrível e, Karol é ótima, mas Emilia é a única que vai resolver isso tudo com um estalar de dedos. E, de quebra, talvez ela consiga fazer a Hye parar de chorar!

Emilia foi arrastada de volta à confusão no momento em que entramos no estúdio. Ela e Hye se afastaram da gente e tiveram uma conversa rápida que resolveu o problema do choro. Pedi a maquiagem e o cabelo mais rápidos para voltar à Hye. Empurrei sua porta enquanto ela ainda estava sendo maquiada, escondendo o inchaço e a vermelhidão do choro. Ela acenou para que eu entrasse e perguntou se eu estava chateada com ela por não ter lhe contado enquanto eu tentava ensinar técnicas de paquera para ela e Hope.

— Técnicas de paquera vão funcionar com qualquer pessoa — eu ri. — E, tudo bem. Eu já sabia há algum tempo.

Ela arregalou os olhos e curvou-se para frente, quase se borrando por inteiro.

— Como assim? — assustou-se. — Como sabia? Eu… Eu…

— Eu vi — respondi. — Vi vocês juntas pela porta um tempo atrás. Alika também sabia — contei-lhe. Hye estava chocada. — Acho que você deu sorte. Se você qualquer uma das outras duas, o mundo inteiro já estaria cansado de saber.

Ela riu, mas sem emoção nenhuma. Seus olhos estavam desfocados e era claro que o pensamento estava longe. Olhou para a maquiadora como se a avaliasse e, depois de um momento, acabou soprando o fio de cabelo que escapou da proteção.

— Meus pais não vão aceitar nunca — confessou. — Eu sabia que teria que anular essa parte minha se quisesse ser famosa e estava disposta… Mas conheci Emilia e… Agora…

— A gente tá junta, tá? — cortei-a. — Pro que você precisar.

Ofereci minha mão a ela e apertamos com força.

Os dias que se seguiram foram complicados para Hye. As entrevistas que acumulamos para termos uns dias de folga pra o casamento de Dave e Chelsy perguntaram incansavelmente sobre o assunto e não importava o quanto tentávamos disfarçar, sempre voltava para o mesmo lugar. Chegou ao ponto de desistirmos de um programa por ser muito invasivo.

Hye sequer conseguiu ficar muito tempo no casamento. Logo após a oficialização, ela abraçou os noivos e se retirou. Também não vi Emilia na festa.

Chris beijou minha cabeça ao ver minha expressão preocupada.

— Elas vão encontrar um jeito — murmurou, baixinho, passando o braço ao meu redor. — E a gente vai ajudar.

Eu sabia que sim, mas não conseguia evitar sentir aquele aperto no meu coração por ver minha amiga sofrendo.

— Não acho que atrapalhe, Thomp — insisti.

Estávamos em reunião já há quase uma hora. Hyelin foi poupada porque a maior parte dos assuntos envolvia o seu relacionamento recente. Tínhamos algumas coisas para reformular na banda e havia aquela instabilidade no ar, causada pelos últimos acontecimentos. Eu ainda sentia ecos do ataque que sofri e agora estava mostrando as caras novamente através do romance de Hyelin e Emília.

Que não era nada demais. Ninguém ligaria se as pessoas não fossem ridículas e preconceituosas.

— Será que não ia ser melhor para elas?— Alika perguntou.— Quero dizer, eles focam muito no fato de Emília trabalhar para gente

— A minha preocupação— Thomp iniciou, sua voz de trovão dominando o ambiente da nossa quase informal reunião. — É que as pessoas comecem a minimizar cada conquista de Hyelin. Como se ela pudesse ser favorecida por estar namorando com alguém de dentro da produção de vocês.

Continuei balançando a cabeça negativamente, insatisfeita. Piper estava muda, o que dificilmente significava boa coisa. Hope enfiou os dedos em seu cabelo cheio, tentando encontrar uma resposta para aquele problema que não causasse danos grandes as nossas amigas.

— É injusto demais— continuei reclamando.

— O que a gente precisa fazer agora é dar um jeito de proteger as duas e abafar esse acontecimento — minha irmã estava tentando ser prática em meu lugar, já que eu estava perdida em reclamações que não nos levavam a lugar algum. — Talvez se a gente desse férias para Emília e não tocasse mais no assunto. Fugisse das perguntas sobre Emilia se ainda está trabalhando para gente ou não... dar tempo ao tempo para eles esquecer em isso e ela voltar para a gente. É o tempo delas criarem proteção, mecanismos que ajudem elas a lidarem com a situação. A Hye nunca contou para família...

Thomp não parecia muito satisfeito. Ele queria muito tirar Emília da cena porque achava que mantê-la só faria as coisas piorarem. Encontrou muita resistência em todas nós, que adorávamos Emília como profissional e pessoa, além do bem que ela fazia para nossa amiga de banda.

— E aí ela pode voltar para nós assim que as coisas acalmarem— Piper finalmente disse alguma coisa.

— A gente pode tentar distrair eles com outras informações— Alika declarou. — Sobre o álbum, sobre as músicas. Sei lá

— As pessoas ainda estão muito curiosas sobre Christopher e eu. Tenho certeza que a gente pode fazer alguma coisa acontecer, ele vai topar.

— Podemos fazer alguma coisa os quatro — Alika concordou, incluindo Alex.

Hope soltou um longo suspiro. Franzi minha testa em sua direção, percebendo seu desconforto.

— Talvez fosse uma boa ideia eu falar sobre meu novo namorado? — perguntou. Hope Estava sempre com o novo namorado nunca era uma novidade muito empolgante. Sabia que ela estava com relacionamento com alguém e eu mesma não tinha tentado esmiuçar o mistério. — Acho que se ele for o Mark Hopkins... talvez ajude?

Puta que pariu. Ela ainda me perguntava se talvez ajudasse.

— Ai graças a Deus! — Piper soltou uma gargalhada aliviada. — Não aguentava mais guardar esse segredo.

Mark Hopkins era filho do maior hoteleiro do mundo. Herdeiro de uma fortuna bilionária, era conhecida por ser mulherengo e um dos solteiros mais cobiçados da atualidade. Eu estava comprometida, mas não era cega e mal podia acreditar que Hope guardou aquele segredo de mim enquanto reclamava do segredo de Hye.

Cerrei os olhos em sua direção e continuei balançando a cabeça negativamente. Hope deu de ombros e soltou um sorriso amarelo.

Thompson soprou o ar para fora de seu peito, cansado, mais ao menos parecia satisfeito com as soluções encontradas.

— Tudo bem, então— ele disse. — Vamos ao plano de contenção.

Por Hye, ela não sairia de sua casa. Mas nem sempre a gente conseguia o que a gente queria. No meio do anúncio do nosso segundo CD e com as músicas subindo como temperatura no verão nas paradas, havia muita coisa a ser feita apesar do seu drama pessoal.

Todas nós nos esforçamos para tirar o foco de Hyelin. Hope deixou que todos soubessem de seu relacionamento com Mark Hopkins o que já mudou o tipo de pergunta que recebíamos. Eu e Alika focamos em aparecer em todos os eventos e fotos e expondo nossa vida pessoal ao máximo para que as matérias fossem focadas em nossos relacionamentos e não no de Hyelin. Já Piper, que não tinha nenhum relacionamento, tentou causar deixando-se ser pega pichando uma ponte. Pelo time, ela foi presa e pagou fiança.

Quase todo mundo já havia esquecido do drama de Hyelin e Emília àquela altura do campeonato.

Quase todo mundo.

A nossa amiga sul-coreana vivia em um redemoinho problemas familiares. Seus pais sequer atendiam suas ligações, a ignoravam desde que haviam descoberto sobre Emília. Isso tirou toda a vida e alegria que antes emanava dela.

Mas devia confessar que jamais teria esperado mesmo vindo de Matt.

 

Capítulo 4

Quem

Quem é você?
Porque você não é a pessoa pela qual me apaixonei, amor
Quem é você?
Porque algo mudou, você não é a mesma, eu odeio isso

Eu contei para Christopher o que faria antes de tomar qualquer atitude. Ele não gostou da resolução, achava que qualquer outra pessoa poderia fazer, mas também apoiou. Talvez se não estivéssemos mais na lua de mel de início de relacionamento, teria rolado uma discussão mais acalorada. Eu, em seu lugar, com certeza não aceitaria tão bem.

Eu sabia que Matthew estava na cidade, Hye estava cansada de reclamar disso comigo. Seu irmão não respondia as mensagens mesmo estando de passagem por Londres. Conhecia muito bem o hotel onde estava hospedado e pedi para Karol dar uma pesquisada. Recebi uma mensagem fresquinha com informações, beijei meu namorado ciumento na boca e saí de casa, vestida para ser fotografada.

Apesar do aviso, achava ser quase uma justiça poética que parte do meu plano era criar boatos de que eu estava traindo Christopher com um antigo affair.

— Kim Matthew, por favor — retirei meus óculos escuros na recepção, não permitindo dúvidas sobre quem eu era.

Haviam algumas vantagens de estar com a cara estampada em todos os lugares porque o atendente nem titubeou em ligar para o quarto de Matt. Depois de algumas trocas de palavras, recebi autorização para subir.

Com instruções claras, não demorei a encontrar o quarto onde Matthew estava hospedado. Apertei a campainha e passos ecoaram dentro do quarto. A porta se abriu com uma força mais que exagerada e visualizei a expressão zangada de Matt para mim.

— O que você quer? —ele perguntou, sem delonga alguma.

— O que é isso, Matt? — perguntei, brincando, empurrando-o para o lado e entrando em seu quarto sem ser convidada. — Isso é jeito de tratar uma velha amiga?

Ele riu, demonstrando deboche. Nossa amizade quase foi destruída com nosso pequeno caso. Matt saiu machucado depois que eu não aceitei que nos tornássemos sérios, além de não conseguir esconder meus sentimentos por Christopher.

— Você não pensou muito nisso quando foi minha vez, né? — indagou.

Levantei o indicador ao ar sacudindo levemente e apontando para ele.

— Você tem um ponto aí.

Mesmo o assunto sendo esquisito, nossas almas tinham uma sincronia, então ele acabou rindo da minha brincadeira, aliviando o clima o suficiente para que voltássemos agir como os grandes amigos que sempre fomos.

— Não vai me dizer que terminou com Christopher e veio aqui afogar suas mágoas.

Peguei uma bolsa que estava sobre uma poltrona e joguei a sobre a cama, sentando em seu lugar. Cruzei as pernas demonstrando que não estava planejando ir ao lugar algum por algum tempo.

— Você sonha — brinquei. — E sabe que o assunto não é esse, Matt... — informei-o.

Matthew revirou os olhos e soltou o ar com força. Ele nunca foi muito bom em esconder seus sentimentos, ao contrário de sua irmã. Talvez por isso fosse tão bom ator.

Ele estava irritado, frustrado e havia algum quê de decepção em seu olhar, não sabia se de mim ou de Hyelin.

— Nós não vamos falar sobre isso, Letícia.

Gelei quando eu vi meu nome sendo pronunciado da maneira incorreta. Ninguém nunca me chamava pelo nome, raramente acontecia com tia Liah e era sempre quando eu fazia algo muito errado. Não achava que era o caso agora.

— Sua irmã está precisando de ajuda — aleguei, séria. — Ela tentou falar com você várias vezes. O que está acontecendo?

Ele desviou o olhar, mas mesmo de lado identifiquei sua raiva. Apesar de nossa história bagunçada, ele era meu amigo e eu conhecia bem o suficiente para vê-lo se mostrar uma pessoa completamente diferente de quem eu acreditei que fosse.

— Não tem nada acontecendo. Só não quero falar com ela.

— Eu não lembro de nenhuma vez que a Hye tenha te negado ajuda. Vocês estavam sempre andando para baixo e para cima juntos. O que que será que mudou agora? — minha pergunta era retórica, eu sabia muito bem o que havia mudado. Tudo que eu queria era saber o que ele diria. Qual era a sua justificativa? O que dizia para si mesmo para conseguir dormir à noite?

Matthew se encostou na parede ao lado da televisão, de frente para mim. Coçou a nuca, parecendo muito desconfortável. Deveria saber o que eu estava fazendo porque também me conhecia, mas deixou-se cair na teia que armei para ele.

— Eu amo minha irmã — ele disse. — Mas não concordo com essa... Coisa... Da vida que ela escolheu.

Pisquei repeti duas vezes para assimilar as palavras que ele disse.

— Escolhas? — repeti.

Ele continuava falando como se não tivesse me escutado balbuciar a palavra em choque.

— Não me incomoda que ela seja, sabe, isso... Mas precisava se exibir assim? Pra todo mundo ver?[6] 

Fechei meus olhos com força, sem querer acreditar nas palavras que estava ouvindo saírem da boca de Matt. Meu coração ficou pequenininho, de decepção com meu amigo, mas também da falta de apoio familiar que minha amiga teria. Ele era minha única esperança.

Respirei fundo e tentei controlar meu comportamento para ter argumentos para rebater. De nada adiantaria começar a gritar ou jogar coisas. Eu precisava ser sensata.

Eu precisava ser a voz da razão. Por Hye.

Peguei meu celular, desbloqueei a tela e logo encontrei o perfil de Matthew, porque ele estava sempre entre os meus favoritos. Procurei uma foto postada na semana anterior e virei o celular para ele.

— Essa é a Pamela Stevenson? — perguntei, mesmo que não tivesse dúvida alguma. — Ela é muito bonita. Vocês estão saindo? Devem estar, já que você está com a mão na bunda dela... — Levantei-me, virando o celular de volta para mim. — Deixe eu voltar um tempo... Ah, aqui está! Olhe só. — Virei o celular pra ele, que me encarava, lívido, já entendendo o meu ponto. — Essa sou eu. Qual o seu problema com bundas, aliás? Ah, olha só o que eu achei aqui! Amor é amor — Dessa vez, quase bati com o celular no nariz dele ao lhe mostrar sua própria postagem. — Quando você postou isso, hein? No dia do orgulho LGBTQIA+ do ano passado? Você é hipócrita, Matt! Esperava mais de você. Ainda bem que a Hye tem a gente pra cuidar dela agora que a mídia inteira está sendo cruel e falando as maiores atrocidades... Você já leu o que estão dizendo dela? Porque eu não recomendo. Mas, ah, é. Você também está dizendo coisas horríveis, não é? Ou não está dizendo nada?[7]  Às vezes é o silêncio que mais machuca. — suspirei. — Eu não vou nem te desejar uma boa noite porque não acho que você mereça. Adeus, Matt.

Sem aguardar por discussões ou por desculpas, fui embora, deixando-o congelado na parede do seu quarto de hotel.

***

As coisas começaram a tomar forma depois de muito trabalho e muito esforço na nossa cortina de fumaça para proteger Hyelin. Na noite que voltei do hotel de Matt, Christopher ficou levemente descontrolado. Em seu ciúme, mesmo na confiança me ofereceu, não me permitiu dormir nem por um segundo naquela noite e demos trabalho para minha maquiadora por uma semana inteira. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal e Hye voltou a se sentir menos desconfortável com as entrevistas e, quando entramos em turnê, já parecia quase feliz outra vez; e muito se devia ao fato de que ela estava viajando com Emília.

Pela primeira vez, não estava tão animada com uma turnê. Gostava dos shows, do público, dos sentimentos e da emoção. Gostava do meu trabalho gostava de me apresentar, mas estava morrendo de saudade de Christopher.

Eu não era a única. Enquanto o Hye era apenas sorrisos e músicas cantaroladas em todos os corredores por onde nós passávamos, Alika parecia muito emburrada e infeliz. Todas as vezes que tentei lhe arrancar alguma informação, ela apenas me dizia que estava com problemas em casa e não entrava em detalhes.

Descobri apenas quando Emília decidiu que não aguentava mais um monte de mulher na TPM, carente e emburrada pelos corredores e permitiu que, se fosse possível, recebêssemos visitas na turnê. Christopher chegou no segundo que foi liberado e trouxe fofocas fresquinhas de Alex, que o acompanhava, parecendo um pouco mais maltrapilho do que de costume. Mark estava atrasado, mas chegaria em seu jatinho particular, então Hope não parecia muito preocupada.

Depois de corremos para o quarto de hotel e matarmos a saudade, enrolados nos lençóis e abraçados, ele me contou o que sabia.

— Alex voltou a beber.

— Voltou? — Indaguei, impressionada.

— Ah... Você não estava aqui da primeira vez — soprou. Beijou minha têmpora e me apertou um pouco mais em seu abraço, como se não quisesse me deixar fugir. — Ele teve um problema sério com bebidas há alguns anos. Chegou no fundo do poço mesmo. Até tentou se matar.

— Meu Deus? — Minha voz aumentou e ficou mais fina com meu pequeno ataque de pânico.

— A gente internou ele e ele ficou bem, mas sei lá, tem umas duas semanas que ele voltou a beber e tá bebendo muito. Michael está super preocupado.

— Michael está sempre preocupado com alguma coisa — declarei.

— Isso é verdade. Pelo menos ele parou de pegar um pouco no meu pé — Olhei-o de rabo de olho, julgando-o por comemorar uma pequena vitória em detrimento da saúde de seu amigo. — Ah, é um "pelo menos", não um "que bom".

Fiz careta mesmo assim. Chris mordeu meu nariz e lhe dei alguns tapinhas de brincadeira. Entre todos e beijinhos, não consegui relaxar, deixando minhas sobrancelhas franzidas por tempo suficiente para ganhar uma massagem de polegar na região.

— Você é igualzinha ao seu irmão — riu. — Está sempre preocupada.

— Será que você está reprimindo seu amor homossexual pelo meu irmão e projetando em mim? — Brinquei, tentando disfarçar.

Foi na sua boca, na sua língua e na ponta dos seus dedos em meu sexo que ele me demonstrou o quanto eu estava errada.

— Boba — disse, os lábios roçando nos meus, encarando minha expressão mole de alívio. — Pra mim, só tem você.

Queria continuar relaxada, dizer juras de amor para Christopher e planos para nosso futuro juntos, mas minha cabeça ainda estava presa no drama de Alika e Alex.

— O que você acha que aconteceu pra ele voltar a beber? — perguntei.

Chris riu, revirou os olhos e jogou o corpo para trás, saindo de cima de mim. Respirou fundo e sua expressão ficou séria porque, eu sabia, a bebedeira de Alex já devia estar tirando o seu sono há alguns dias.

— Olha, se você quer mesmo saber... — ele soprou o ar. — Não fui eu que te contei, tá? É aquele lance de segredo de casais, lembra? — Concordei com a cabeça, vidrada. Ele apertou os lábios em uma fina linha, como se ainda estivesse decidindo se deveria me contar ou não. — Você lembra da Anna?

— Aquela moça que ele namorou antes da Aly? De cabelo curtinho?

— Isso. Ela — concordou. Torceu o nariz em desagrado. — Olha, eu não sei se foi isso, mas foi logo depois que ele ficou sabendo que voltou a beber...

— Sabendo o quê? Fala, não faz mistério.

Ele riu e mordeu meu nariz mais uma vez, só que de leve, quase como um carinho.

— Ela anunciou que está grávida e que vai casar e, sei lá, já tentei conversar com ele, mas ele...

— Ele sempre foi muito reservado, né? — completei.

— É... — Christopher concordou.

Namoramos um pouco mais naquela noite e Chris acabou dormindo, quase desmaiado de cansaço da viagem de meio mundo e depois de uma maratona de sexo, mas eu continuei desperta, pensando em Alex e Alika e no porquê Alex estaria tão preocupado com a gravidez de Anna se ele terminou com ela porque começou a gostar da minha amiga.

Capítulo 5

Anel de Humor

Agora todos os meus oceanos têm correntezas
Não consigo encontrar o que há de errado
O mundo inteiro está me decepcionando
Você não acha que o início dos anos 2000 parece tão distante?

Nossos namorados permaneceram conosco na turnê durante uma semana, viajando para três localidades diferentes. Christopher e Mark e ainda tentaram bolar um plano para ficar por mais tempo, enquanto o Alex parecia não se aguentar de vontade de ir embora. Precisaram ir, os três, nos deixando para mais dois meses longos de shows, entrevistas, fotos e vídeos.

Encurralei Alika assim que eles foram embora.

— Me deixa te ajudar — implorei, em português. — Eu sou sua amiga quero saber o que está acontecendo. Tô aqui contigo, cara.

Ela me encarou com seus grandes olhos escuros cheios de mágoas e dores. Demorou um tempo até decidir se deveria me contar o que passava ou não. Por sorte ou amizade, acenou com a cabeça de cima para baixo apenas uma vez.

— É o Alex — desabafou. — Ele está tão esquisito... Andou falando um papo sobre família sobre querer ter filhos e depois que eu disse para ele que agora era uma hora ruim por causa, sabe, da nossa carreira e eu e ele também não temos tanto tempo assim de namoro para pensarmos em filhos... — ela se jogou sobre a sua cama no quarto de hotel no meio dos Estados Unidos. — E agora ele deu pra beber. Eu ligo para ele e ele está bêbado. Meu pai falou que ele foi lá em casa brincar com o Kayin e encontrou Ales bêbado e sujo...

As coisas faziam mais sentido que a gravidez de Anna ter causado todo aquele estrago. Com a resposta de Aly, dava para perceber que ele queria ser pai e que estaria realizando seu desejo com Anna, mas queria que fosse com Alika e ela não estava pronta para ser (de novo). E aí ele entrou em um rodamoinho de autodestruição ao invés de conversar sobre isso. Era típico dele. Era típico meu também.

Alex e eu sempre fomos almas estranhas e parecidas.

— Aly, eu sinto muito — abracei-a. Acabei contando pra ela o que Chris me contou, sobre não ser a primeira vez de Alex bebendo. — A turnê tem mais dois meses pela frente, então vamos ter um tempo e você pode ajudar o Alex. Só precisa dar um jeito de controlar ele até lá. Eu tenho uma ideia.

Minha ideia era dizer a Alex que ela pensaria sobre ter um bebê ainda no próximo ano caso ele parasse de beber e surtiu algum efeito. Ela pelo menos pareceu aliviada durante os dois últimos meses de tuernê, que passaram como uma tartaruga sonolenta.

Estar de volta em casa foi um alívio durante os primeiros dias e, assim que meu corpo conseguiu relaxar, percebi que sentia falta do trabalho, sentia falta de cantar, de dançar, de conversar com as pessoas que gostavam da minha música. Christopher apenas ria da minha cara porque já havia percebido a mesma coisa há anos. Era muito trabalho, era cansativo, mas eu amava.

Lá estava ele, meu namorado, de volta a minha casa, como se fosse sua. Curtindo as minhas férias grudado aos meus tornozelo, dando beijinhos em cada pedaço de pele exposta do meu corpo. Comecei a me perguntar se nossa lua de mel nunca acabaria e eu preferia que continuasse assim.

Durante nossa pausa para descansar, a rotina começou a retornar pouco a pouco. Nós acordávamos, tomávamos café da manhã juntos, ele ia para academia, passava em sua casa para pegar alguma coisa, às vezes trazia almoço. Eu compunha, fazia alguns vídeos de dança ou canto, ligava para minhas amigas, minha tia ou meus irmãos. Assistíamos programas criminais juntos. E às quintas, nossa casa era invadida por nossos vizinhos mais queridos, Dave e Chelsy, com risadas, brincadeiras e conversas acaloradas.

A vida era boa, gentil. Eu quase me esquecia dos problemas. Quase.

Dave e Chris estavam gritando na sala em um jogo de futebol no videogame, um que desisti de tentar depois de perder de forma humilhante algumas vezes.

Na varanda dos fundos, acompanhada de uma garrafa de espumante e Chelsea, nós brindávamos ao nada e colocávamos o papo em dia. Houveram alguns causos na vizinhança que perdi durante a turnê e ela fazia questão de me contar um por um. As quintas eram um dos dias favoritos da minha semana; adorava nossas noites de jogos e bebidas, aquela descontraída de ficar com seus amigos mais queridos.

— E a Karen, aquela doida cheia de filho que fala engraçado, sabe quem é? — Chelsy me perguntou, mas mal esperou que eu concordasse para continuar. — Então, o mais velho dela é uma complicação. Dave adora o garoto, deu um patinete pra ele mês passado, agora ele passa na rua toda tacando bola de papel de cuspe nas janelas com uma zarabatana, menos lá em casa.

— Ai, meu Deus, era isso, então? — Apesar da sujeira, soltei uma gargalhada alta porque adorava criança arteira. — Vou ter que arrumar um jeito de subornar esse garoto também.

— É só você fazer esse negócio aí de chocolate, tenho certeza — Chelsy riu. — Eu já teria pedido pra você me ensinar, mas se essa receita entra na minha casa, meu marido vai virar um balão. Ele só fala disso. Será que a Tish vai fazer ... Brygarderro na quinta? Fala pra ela fazer, por favor. É sério. Você suborna qualquer um com isso.

— Já sei como vou conseguir minha habilitação permanente, então — brinquei.

Meu telefone começou a tocar e foi só uma olhada no visor para o meu sorriso se desmanchar.

— Preciso atender — avisei à Chelsy, que concordou com a cabeça. — Oi, Aly.

"Tish, pelo amor de Deus, preciso de ajuda"

— O que foi? — levantei-me, alerta. Chelsy franziu a testa, deu uma golada final de sua taça e levantou-se comigo.

"Por favor, você pode vir aqui?" ela parecia estar chorando, suas palavras rápidas em português estavam quebradas e vazias. "É o Alex, eu não sei ... Por favor".

— Tudo bem, fica calma — disse, em português, antes de virar a chave para o inglês em um estalo. — Eu já estou indo. Fica calma.

Desliguei o telefone e levantei o olhar para Chelsea, ensaiando um pedido de desculpas mentalmente, mas ela apenas acenou com as mãos e sorriu, negando com a cabeça.

— Pode ir, não tem problema — alegou, entendendo qual era o problema.

Estávamos todos preocupados. Alika vivia trancada com Alex em casa e nenhum dos dois saía para nada. Vínhamos nos revezando para levar-lhes suprimentos para que ele não ficasse sozinho nem por um segundo. Como um furacão, chegamos à sala, onde Dave e Chris continuavam gritando um com o outro.

— A gente precisa ir na Aly — anunciei.

— O que? Agora? — Chris nem pausou o jogo, mas franziu as sobrancelhas, prestando atenção no que eu dizia. Dave lhe roubou a bola naquele momento e ele, de raiva, pausou o jogo.

— Ela ligou, pediu ajuda — expliquei. — Desculpa, Dave. Eu ainda tô com a habilitação provisória e eu bebi um pouco também.

Passei na prova para a habilitação provisória há um pouco mais de uma semana, depois de Hope insistir que eu precisava, mas só poderia dirigir com alguém habilitado no carro por um tempo, antes de fazer a segunda prova.

Chris concordou e vi uma preocupação em seu rosto. Despedimos de Chelsy e Dave já do lado de fora, cada um indo para seus carros, Dave agarrado com uma travessa de brigadeiro de panela, lambendo seus dedos.

— Ela disse alguma coisa? — Chris pediu-me, ligando o carro.

— Não, só pediu ajuda. — abracei-me ao cinto de segurança, nervosa.

Alika estava morando com Alex há algum tempo. Kayin costumava ficar com eles, mas, desde que ele voltara a beber, o pequeno estava em casa com o avô e ela se mudou para a casa de Alex, tentando minimizar o contato dos dois, mesmo que Kayin sentisse saudades do amigo.

Ela destrancou a porta assim que chegamos e me abraçou com força. Suas bochechas marrons estavam molhadas das lágrimas que escorriam de seus olhos grandes, fazendo seus grossos cílios brilharem um pouco mais à luz da Lua.

— Eu não sei mais o que fazer — disse, baixinho. — Nós não saímos. Eu fui tomar banho e, quando voltei, ele estava completamente bêbado. Não sei como ele arrumou bebida, já revirei a casa toda — cada palavra se partia com um soluço. — Ele quebrou uma garrafa e ficou violento. Saiu de casa, e Tish... Ele pegou o carro. Fiquei desesperada. Me ligaram da escola do Kayin dizendo que ele foi lá buscar ele. Não deixarem ele pegar, mas Kayin viu tudo, está arrasado e eu perdi Alex pelo resto do dia... Agora ele tá trancado no quarto e eu não sei, não sei se consigo mais fazer isso – e seu choro ficou ainda mais alto e desesperado.

— Tô aqui agora — apertei-a ainda mais em meu abraço e traduzi suas palavras para Christopher, que acenou com a cabeça.

— Eu cuido dele — anunciou. — Você cuida dela e tenta dar um jeito de descobrir onde ele escondeu as bebidas. Vou tentar fazer ele dizer também, se vocês não conseguirem encontrar.

Se tinha uma coisa que havia aprendido com os ingleses era que muita coisa se resolvia com uma xícara de chá e essa foi minha primeira medida para acalmar Alika. Assim que conversamos e que ela conseguiu desabafar um pouco, ouvimos Christopher levar Alex para o chuveiro e procuramos em toda a casa, até entrarmos no quarto de hóspedes. Debaixo da cama, em um assoalho falso que ela não conhecia, encontramos quase dez garrafas de bebidas variadas.

Achava que nunca tinha visto Alika tão acabada como naquela noite.

***

— Lica! — acordei com o grito de Alex. No susto, nem me preocupei com a privacidade alheia, sentei-me imediatamente no sofá onde adormeci. Christopher estava sendo muito mais educado, dormiu sentado na poltrona e abriu um olho de lado para descobrir o que estava acontecendo. — Lica, por favor, não vai embora.

Alika estava com uma bolsa atravessada em seu peito, parada à porta com a mão na maçaneta. Alex tinha as mãos juntas numa posição de subserviência, implorando que ela não fosse embora.

— Você podia ter machucado meu filho — ela disse. — Eu tenho estado com você esse tempo todo, sem entender o que aconteceu. Te apoiei, tentei te ajudar a superar essa fase, mas você passou de todos os limites. Não posso mais aceitar essa situação, não posso mais te deixar chegar perto do Kay e não aguento mais, Alex. Não aguento mais assistir você se matando. Eu sinto muito. Eu te amo, mas não consigo.

Com essas palavras, ela foi embora e Alex caiu de joelhos no chão, chorando copiosamente.

Ficamos com Alex até o meio da tarde, quando Michael apareceu para levá-lo pra casa dele.

Chris o levou para o carro arrastado, enquanto eu e Mike ficamos encarregados de levar as coisas dele.

— Você limpou a casa? Não tem bebida nenhuma? — Indaguei.

— Já não costuma ter — ele riu. — Gabi tá amamentando, não vou beber sem ela.

— E você vai me avisar se ele precisar de alguma coisa?

— No mesmo segundo — prometeu.

Ajudamos Alex a se instalar no quarto de hóspedes da casa do meu irmão e fomos para casa. E eu não conseguia mais relaxar. Toda vez que o celular tocava, eu dava um pulo, alerta. Conversava com Alika todo dia, tentando ser imparcial e talvez gerenciar um perdão, se houvesse a oportunidade.

Chris também estava além da tensão e ficou ainda mais nervoso quando Michael nos disse que Alex ficaria alguns dias com a mãe, para matar as saudades da família.

— Mas é a família dele — tentei acalmá-lo.

— São relapsos — disse. — Seu irmão confia demais na boa vontade das pessoas. Da outra vez, a gente deixou ele ficar com a família porque iam cuidar dele e foi quando ele sumiu e tentou se matar.

Tentei relaxar, mas os dias em que Alex passou com sua família foram gastos esperando uma ligação ruim. Quase fui eu mesma buscá-lo para instalar em um dos meus quartos extras. Daria trabalho jogar fora todas as minhas bebidas, mas...

Havia um plano sendo formado em minha cabeça quando a ligação finalmente chegou.

Estávamos na cama, Chris e eu. Era uma noite de domingo e Thomp tinha começado a me perseguir para agendar as primeiras gravações em estúdio de músicas que não compuséramos ainda, então estávamos matando a saudade que começaria a nós perseguir assim que eu voltasse ao trabalho.

O meu telefone tocou primeiro. Ignorei porque tive certeza que era Thomp outra vez ou uma das meninas perguntando sobre qualquer composição pronta. Parou de tocar e, logo a seguir, o de Chris começou.

Descolamos as bocas e nos olhamos por um segundo, como medo do que poderia ser.

Ele atendeu e colocou no viva voz.

"Estou no hospital com o Alex" meu irmão anunciou, sem dar voltas.

— Puta merda, cara, onde vocês tão? O que houve?

Christopher já estava de pé, colocando suas roupas. Eu fiz que ia me levantar, mas ele pediu calma.

"No St. Mary. Ele saiu da mãe dizendo que ia voltar pra minha casa. Pegou o carro há horas, bebeu em algum pub e tentou voltar, mas... Bateu com o carro".

Não segurei a expressão.

— Ele tá bem? — perguntei, nervosa.

"Todo quebrado, mas é... Podia ser bem pior. O carro já era, perda total, mas ele..."

— A gente vai fazer isso de novo, então? — Chris indagou.

"É. Não tem jeito".

— Vou pegar o Dave no caminho. A gente já chega aí — eles se despediram e desligaram. Chris me deu um beijo leve na boca. — Vamos internar ele de novo. Já estávamos conversando sobre isso. Essa é uma daquelas coisas que a gente tem que fazer junto, sabe... Fica aqui, tá? Eu te aviso.

Concordei com a cabeça e deixei-o ir com um aperto em minha garganta.

***

Acordei sozinha no dia seguinte, Chris ainda estava no hospital com Alex, esperando ele receber alta para que pudessem interná-lo de novo. Ele estava bem, acordado e falando e as mensagens de Chris eram positivas, dizendo que Alex estava arrependido e queria melhorar. Já era o primeiro passo.

Quando mudei de conversa, percebi que nem tudo eram boas notícias.

Hope me enviara vários trechos de comentários e matérias.

"Quem essa vaca pensa que é? Olha o que ela fez com ele!", "Tomara que essa nojenta morra, tadinho do Alex" e vários outros.

As redes sociais de Alika estavam abarrotadas de xingamentos das fãs da DeLorean.

— Vim assim que soube — disse para Alika, após dirigir até sua casa sozinha, rezando para todos os santos para não ser pega.

Ela riu, mesmo com a cara inchada de tanto chorar.

— Você não foi a primeira a chegar.

Em sua sala, Piper e Hope já estavam fazendo degustação de biscoitinhos caseiros preparados pelo pai de Alika.

Segurei sua mão antes de entrarmos.

— Ele vai ficar bem — garanti-lhe. Ela apenas acenou em agradecimento.

— Ah, ela chegou — Piper gritou. Abraçou-me, espalhafatosa e me olhou com seus grandes olhos azuis arregalados. — Diz pra ela contar o que Alex fez. Que ele já tava assim antes do término e tal. Ela só escuta você.

Sorri amarelo e olhei para Alika. Ela apenas acenou negativamente com a cabeça, me informando que eu nem precisava me dar o trabalho.

— Ele não precisa de mais coisa na cabeça, eu acho — disse. E, nos vincos debaixo dos seus olhos, vi o quanto ela estava se culpando, o que só aumentava com as mensagens que recebia. — Eu posso segurar essa. É sério, está tudo bem. Não precisam ficar me rodeando.

Apesar de suas reclamações, Hye chegou um pouco antes do meio-dia, trazendo a única boa notícia do dia.

— Me desculpa, me desculpa — implorou, ao notar que estávamos todas lá, menos ela. — Eu... Eu estava tomando café da manhã com Matthew. A gente conversou e tal. Não podia... Perder a chance. Mas você sabe que eu te amo, não sabe? — perguntou a Alika. — Aposto que mais do que essas daí.

— Ah, não, mesmo! — Hope gritou.

Depois de algumas pequenas brigas, as quais venci reclamando a posse do amor de Alika para mim, resolvemos aproveitar o dia para conversarmos sobre o próximo álbum, com apontamentos importantes de Kayin, assim que chegou da escola e se juntou a nós.

Capítulo 6

Tratar você melhor

Eu não vou mentir para você
Eu sei que ele não é o certo para você
E você pode me dizer se eu estiver enganado
Mas eu vejo isso em seu rosto

— É hoje o grande dia? — Christopher perguntou, ao entrar no meu quarto.

Eu estava sentada no chão, rodeada por três caixas diferentes, uma era a que meu tio fez para mim antes de morrer, todas abarrotada de com músicas e composições que eu acumulei através dos anos, desde a minha adolescência.

— Oi — estiquei meu pescoço oferecendo minha boca para ganhar um beijinho rápido. Christopher fez uma viagem rápida para casa de sua irmã, que estava se divorciando e houve algum problema elétrico na casa que a estava deixando a flor da pele, então Chris, que estava em férias eternas, já que meu irmão continuava babando em sua cria e Alex estava internado, resolveu ir para ajudá-la a lidar com a pequena reforma. — Não é nada ainda. Só vamos começar a conversar sobre o próximo álbum. Tô aqui tentando encontrar um tesouro.

Ele riu e sentou-se à beira da cama que estávamos dividindo nos últimos meses.

— Essas são as antigas, é? — perguntou, a brincadeira dançando em suas palavras. — Devo ficar lisonjeado ou preocupado?

— Ambos, eu acho — ri. Porque era muito verdade. Muitas das minhas composições falavam dos meus sentimentos por Christopher, tanto de quando estávamos juntos e eu ainda era uma jovem menina e quando nós terminamos e eu era uma mulher quebrada perdida em um país que eu tentava entender para poder entender a mim mesma também. Ainda haviam algumas desde o meu retorno e outras um pouco mais recentes da confusão que resultou em nosso relacionamento atual.

— Não vai nem dar pra dar uma namoradinha? — perguntou, fazendo bico.

— Não, tenho que ir daqui a pouco — fiz bico de volta. — Tentei fazer a reunião ser aqui, mas Hope quer que a gente conheça a casa dela. A próxima vai ser na casa da Piper. Ela perdeu no pedra, papel e tesoura.

Ele riu baixinho, mas franziu as sobrancelhas e olhei em sua direção, estranhando. Conhecia Christopher o suficiente para saber que ele estava desconfortável com alguma coisa, então meneei a cabeça e esperei.

— Eu tenho uma notícia — disse, quase envergonhado de ter atraído tanta atenção.

— Uma notícia? É sobre o Alex? Ele está bem?

Seus lábios se moveram para cima aumentando suas bochechas e quase desaparecendo com seus olhos e isso já me deixava relaxar um pouco porque me dizia que a notícia não era ruim.

— Não, não é sobre o Alex — respondeu. — Mas eu falei com a clínica ontem. Ele ainda não pode ter contato externo, mas me garantiram que ele está muito bem e que ele está indo bem no tratamento.

Respirei aliviada. Estava pensando em eu mesma ligar para clínica, mas não queria ser enxerida e me segurei. Cheguei a perguntar para Michael, mas ele foi vago. Estava em um próprio drama pessoal com um bebê com dentinhos nascendo.

— Ai, que bom! — recostei me em suas pernas, apoiando minha cabeça em seu joelho e o olhando de cabeça para baixo. — Quando ele sair, se você quiser que ele fique com a gente aqui em casa, ele pode ficar, tá? Vou adorar dele aqui, a gente arruma um quartinho para ele e cuida dele porque meu irmão é um banana e a gente já viu que deu merda. Então a gente pode ficar de olho nele.

O sorriso de Christopher se alargou e ele me deu um beijo um pouco mais generoso naquela posição estranha.

— Aqui em casa, é? — perguntou.

— É, né? — respondi. — Acho que a gente já tá morando junto há algum tempo, só não oficializamos. Tô até pensando em abrir um pedaço do closet pra você. Eu gosto da ideia de você ter uma casa pra, sabe, quando eu enjoar de olhar pra sua cara ou pra você não bagunçar tudo quando eu estiver em turnê, mas... Acho que é isso. É.

Ganhei mais alguns beijos.

— Vou gostar de ter um pedaço do closet — respondeu, apenas.

Porque era isso que faltava, só. As palavras. Chris e eu tínhamos um longo histórico de não-dizer. E só o dizer já resolvia a maior parte dos problemas.

Voltei a atenção às minhas letras, vendo o relógio me avisar que meu tempo estava acabando. Comecei a juntar as pilhas com clipes de papel colorido e virei-me para Christopher, a sobrancelha franzida. Ele estava deitado na cama, o controle da televisão na mão, passando rapidamente entre as opções de filmes para assistir, sem demonstrar interesse em nada.

— E a notícia? — perguntei, notando que ele não me disse.

Ele abandonou o ar, desinteressado.

— Não é nada — respondeu, sem nem olhar para mim.— quando você voltar a gente conversa.

Fechei a cara. Respirei fundo e, em um pulo, joguei-me sobre ele, um pé de cada lado de seu corpo, quadril muito bem encaixado sobre sua pélvis. Comecei a escorregar as minhas mãos da altura do seu umbigo em direção aos seus ombros e ele cerrou os olhos para mim.

— Me conta, vai? — pedi. E só para reforçar o meu charme, deixei meu quadril se mover levemente, de forma quase imperceptível.

Pela forma com que suas narinas inflaram, soube que ele percebeu tudo.

Sua mão grande e calejada, das milhares de horas que passou tocando bateria, encaixou em minha coxa, bem abaixo da minha bunda, e não demonstrou pudor algum em apertar minha carne.

— Eu já te disse que você é muito gostosa? — perguntou.

— Tenho escutado bastante isso — respondi, brincando.

Ele não estava brincando mais e minha boca foi atacada com desejo e saudade. Menos acesa que ele, ondulei ao seu redor, desacelerando o beijo até o carinho.

— Me conta — pedi, minhas mãos bem posicionadas, uma em cada lado do seu rosto. — Por favor.

Ele tinha empurrado seu corpo para frente e se sentou comigo em seu colo. Abraçou-me, o lábio deslizando pelo meu rosto para me provocar, em direção a minha orelha. Segurei a respiração e comecei uma contagem para não perder a cabeça e a reunião da minha banda.

— Chuta só quem vai ser jurado da nova temporada do StarHunt?

Demorei pra assimilar as palavras, mas, quando o fiz, soltei um grito: — O quê?

Ele estava rindo, feliz da vida, orgulhoso do seu trabalho. Comecei a dar beijinhos em todo seu rosto, dizendo o quanto ele era incrível e quanto seria maravilhoso no programa.

— Foi de última hora — contou-me. — Me chamaram tem dois dias. Parece que pegaram Kevin em algum escândalo sexual e não queriam ele envolvido mais com programa, então pensaram em mim e eu pensei: bom, já que a DeLorean tá parada, e já que vai ser um trabalho de só alguns meses e o cachê é muito bom, por que não? Você não está chateada? Achei que ia ficar chateada por eu não ter te perguntado nada antes de dizer sim.

— É claro que eu não tô chateada! Você vai ser incrível! — comemorei. — Mas sabe o que eu tô? Atrasada. Quase. Preciso ir. Mas de noite a gente comemora, tá? A gente pode sair pra jantar. Ou encomendar um jantar. Vamos fazer algo bem legal, tá? Desculpa ir correndo assim. Te amo.

Ele riu e pediu só mais um beijo demorado antes de me soltar da prisão de seus braços, de onde eu não queria fugir nunca mais.

— Também te amo.

Esse foi o meu último segundo de paz antes de tudo virar de cabeça para baixo novamente. Bem quando os ataques contra a Alika estavam começando a diminuir.

Tivemos uma boa reunião, até. Com nossos celulares acumulados em um cantinho da sala de Hope, não vimos a bomba que estava estourando em nossas mãos até que ela estivesse em proporções gigantescas. Cheguei a entrar no carro com Alika e dirigimos em direção à minha casa por cerca de dez minutos. Eu estava até trocando mensagens com Christopher enquanto ela falava um pouco sobre como estava tentando superar Alex e como Kayin estava lidando com tudo como um garoto crescido de quase dez anos.

Foi Chris que me ligou.

"Você está com a sua irmã?" Perguntou.

— Já estou indo pra casa — eu ri, achando que era brincadeira. — Se prepara pra gente comemorar.

"Não, Tish, tudo bem. A gente comemora depois. Volta pra sua irmã e liga pro seu irmão”.

Não entendi o que estava acontecendo e porque eu precisaria estar com Hope e levar Michael comigo. Não tinha visto nenhuma rede social, nenhuma notícia.

"Chris?" Estranhei. "Chris, o que está acontecendo?"

Ele quase não conseguiu me dizer. E eu quase não consegui assimilar.

Mark Hopkins vazou um vídeo íntimo de Hope.

Capítulo 7

Titânio

Sou criticada, mas suas balas ricocheteiam
Você me derruba, mas eu levanto
Sou à prova de balas, nada a perder
Atire, atire
Ricocheteiam, você acerta o alvo
Atire, atire
Você me derruba, mas eu não cairei
Sou de titânio

— Como ela está? — Michael chegou o mais rápido que pôde e me deu um abraço rápido. Precisou esperar a mãe de Gabi chegar para ajudar com Andy, que estava febril, antes de sair.

Tia Liah já ligou cinco vezes. Tinha ganhado uma viagem ao Caribe nossa de aniversário com o novo namorado e era o único motivo pelo qual a porta do quarto de Hope ainda estava de pé.

— Não quer sair do quarto, não quer falar comigo. Talvez você...

Eu normalmente respondia ao Michael. Ele me fazia acreditar que eu estava segura e torcia para que fosse o mesmo com Hope.

Ele me encarou nos olhos, a preocupação ardendo em cada nuance do tom avelã. Parecia prestes a chorar, eu bem sabia que eu estava.

— Você assistiu? — perguntou. Desviei o olhar, envergonhada, e concordei com a cabeça. — É muito ruim?

— Qualquer um seria ruim, Mike — respondi, ainda sem olhar para ele. Mordi a parte interna da boca, desconfortável. — Mas é ruim.

Ele apertou os olhos e esfregou o indicador e o polegar em cima deles, buscando se acalmar.

— Nunca gostei desse desgraçado — disse. E não era novidade. Michael nunca gostava de ninguém que estava com a gente. — Eu disse pra ela sossegar, ficar na dela, mas aí ela arrumou esse... Esse desgraçado que filmou ela pra...

Agarrei seu pulso.

— A culpa não é dela — alertei-o. — Ela estava apaixonada e confiou. A culpa é dele que se aproveitou disso. Se você se atrever a dar uma bronca em Hope, eu mesma te chuto dessa casa e não se atreva a duvidar da minha capacidade.

Michael ainda se surpreendia quando eu o deixava ver toda a força que tinha dentro de mim. Ao invés de ficar zangado com minhas palavras, arregalou os olhos por três segundos, antes de aliviar a expressão e sorrir.

Com uma força conjunta, conseguimos convencer Hope a abrir a porta do seu quarto. Ela não conseguia parar de chorar, então administrei um calmante leve para ela e dormimos os três agarrados, como quando fazemos quando  éramos crianças. Minha irmã parecia partida em dez mil pedaços pequenos e não importava o quanto eu lhe dissesse que toda a nossa equipe estava trabalhando em excluir qualquer imagem de sua intimidade, a vergonha tomou todo o seu ser e quase apagou sua chama de vivacidade.

Michael precisou nos deixar de manhã para levar Andy em uma consulta médica e nos enviou mensagens desesperadas dizendo que a frente da casa estava tomada de repórteres e fotógrafos. Fechei todas as cortinas.

Hope estava em volta de uma coberta, mesmo que não estivesse frio. Tomava um chá quentinho de camomila, para acalmar seus nervos e tentar fazê-la ter um dia melhor do que o anterior.

Assim que conseguir nos dar um pouco mais privacidade, apesar dos zumzumzum de abelhas fofoqueiras do lado de fora de casa, sentei-me ao seu lado. Ela bebericava seu chá lentamente, soprando e degustando como se nada mais no mundo fosse digno de sua atenção.

— Todo mundo já viu tudo o que eu tenho — disse, por fim. — O que mais eles querem tirar de mim? Não posso nem curtir minha humilhação com um pouco de privacidade?

Já estava cansada de rebater seus comentários autodepreciativos naquela altura do campeonato. Hope sempre foi uma pessoa um pouco mais sarcástica, mais bruta com as palavras e não era diferente consigo mesma. A sorte é que ela era minha irmã, eu a amava e sabia como me comunicar com ela.

Hope não queria que eu a validasse, que a elogiasse ou protegesse de si mesma. Ela queria ajuda com seu outro problema, o que ela apontava claramente ali.

— Sei onde a gente consegue privacidade — disse.

Ela virou-se imediatamente para mim, como se fosse o anúncio da cura de todas as doenças do mundo.

— Onde?

Abri um sorriso porque, só de pensar, me trazia felicidade e paz de espírito.

— Na casa da areia.

Ela arregalou os olhos por um momento e depois acenou com a cabeça. Foi tudo o que precisei para começar a mexer os pauzinhos para levá-la para a segurança do meu mundo.

***

Minha comemoração com Christopher precisou ser breve. Quinze minutos debaixo do chuveiro, o que não era tão incomum, enquanto Hope aguardava na sala, achando que ele estava me ajudando a escolher as roupas que eu queria levar em minha mala.

Ou minha irmã foi apenas gentil em fingir que acreditava nas minhas palavras.

Fomos sem nenhum alarde. Foi uma fuga rápida e desesperada, com poucas mensagens enviadas para avisar. Pegamos o jatinho da banda logo ao fim do dia e chegamos ao rio de janeiro ao nascer do sol, para subir em um helicóptero e chegar na casa da areia, minha casa em uma pequena ilha particular em Angra dos Reis.

Eu não aproveitava tanto aquela casa quanto deveria. Christopher nunca foi até lá, nem meu irmão. Hope e as meninas já conheceram, entre turnês e viagens, passamos algumas vezes por lá, mas nunca tempo o suficiente. Era a primeira vez que chegamos à casa sem data de saída.

Foi complicado no começo. Hope estava além de qualquer ajuda. Apesar de estarmos em total privacidade e isso ter acalmado seua ânimos, ela ainda estava se sentindo completamente humilhada e haviam muitos problemas para serem resolvidos.

Uma investigação foi aberta após Michael e Thomp abrirem queixa em nome de Hope e nossos planos para começar a pensar no álbum precisaram ser adiados.

Ela passava a maior parte do dia na piscina, sempre acompanhada de seu celular ou de seu computador, vigiando todas as notícias e comentários que faziam sobre ela, procurando todas as coisas ruins e tudo mais que a pudesse deixar para baixo.

Eu já não sabia mais o que fazer.

"Queria estar aí com você, ajudando sua irmã" Chris reclamou, enquanto eu narrava os últimos acontecimentos. Hope permanecia na piscina, enquanto eu, da sala de casa, a olhava em mais uma busca investigativa em seu celular. Na cozinha, dona Marta estava preparando uma refeição e eu ouvia o bater de panelas e o cheiro incrível da comida. Ela e o marido eram os meus caseiros e viviam em uma casa menor na mesma ilha, fazendo a manutenção da casa e tudo mais que se precisasse.

— Não sei se você seria de muita ajuda — resmunguei. — Eu não estou sendo. Eu não tenho certeza que ela quer sair dessa e não sei como ajudar ela também — dei de ombros. — E você está sendo brilhante no StarHunt. Me conte mais, por favor. Dona Marta não aguenta mais eu a seguindo para baixo e para cima tentando bater papo.

Ele narrou mais um pouco sobre os jovens candidatos que estavam concorrendo naquele ano ao StarHunt, competição que as The Travellers ficaram em segundo lugar em nosso ano. De alguma forma bem esquisita, os 7Minutes To Paradise, os vencedores, nunca batiam nossos números. Mal conseguiam sucesso fora do Reino Unido.

"...E tinham esses três caras que eram muito bons" Christopher contava, animado. "Mas a gente só tinha mais uma vaga... Então o Will sugeriu que eles virassem um trio e eles toparam. Foi bem legal. Usaram vocês como exemplo porque vocês tinham acabado de se reunir antes do concurso e foi o que vocês passaram juntas que soldou vocês como uma unidade".

Ele continuou falando, mas eu parei de escutar. Enquanto ele narrava com muita animação todo o resto da história e como componentes passaram pela segunda seleção, eu lembrei como nós nos construímos como as viajantes: brigando, discutindo, morando juntas e descobrindo quem nós éramos umas para as outras.

— Amor... — interrompi-o. — Você acha que pode ser isso? Que as meninas tinham que estar aqui com a Hope?

Chris estalou os lábios do outro lado da linha e percebi que ele não ficou satisfeito com minha pergunta abrupta. Talvez meu relacionamento estivesse finalmente saindo da lua de mel.

"É, com certeza" ele ainda tentou ser gentil. "Todas vocês têm passado por poucas e boas ultimamente. Talvez precisem desse momento pra se alinharem de novo".

Respirei fundo como se um peso tivesse saído dos meus ombros naquele momento. Era resposta que eu precisava e, mesmo sem saber se elas poderiam se locomover em nossa direção, sentia uma esperança no fim do túnel.

Agora eu só precisava corrigir a minha desatenção com Christopher e torcer para que ele não estivesse muito chateado.

— É, acho que sim. Desculpa te interromper. Então eles foram muito bem nas seletivas e...? Você acha que eles vão longe na competição?

Christopher voltou a contar, com um pouco menos de empolgação no começo, e me esforcei e lhe dar toda a atenção. Quando desligamos, prometendo nos ver assim que fosse possível, enviei mensagem para cada uma, perguntando se elas não queriam se unir a nós na casa da areia.

Elas chegaram três dias depois porque Alika precisou de um pouco mais de tempo para preparar Kayin para ficar uns dias sem ela.

— Tisha? — Hope me chamou, mas quase não conseguia ouvir com o barulho do helicóptero. Percebi apenas pela movimentação de suas mãos. Larguei o livro que lia na rede da varanda e caminhei até ela, na espreguiçadeira. — Tão vindo sacanear a gente? O que é isso?

Ela, preocupada de que fossem fotógrafos repórteres invadindo para conseguir uma matéria, encarava o Héliporto acima da casa com olhar de pânico. Eu nem precisei responder a pergunta, pois, naquele momento, Piper desceu com uma mochila atravessada no peito, acenando animadamente para nós duas. Hope me encarou como se avaliasse meu plano e eu sorri para ela.

— Já chega de autoflagelação, não? — perguntei. Ela revirou os olhos. — Eu te amo, irmã. Só quero que você fique bem.

Ela soprou o ar com força.

— Eu sei — disse, rendida. — Obrigada.

As meninas desceram correndo, acompanhadas de três funcionários de Emilia, que reparei que estavam prontos para filmar qualquer respiro nosso. Dei um cutucão na costela de Hope no segundo anterior ao ver uma câmera apontada para nós. Ela ainda reclamou, mas foi soterrada por Piper e a Alika, que a abraçaram.

— Por que não viemos para cá na minha vez? — Hye me perguntou, esperando conseguir um espaço para adentrar no abraço.

— Você não pediu — brinquei.

Envolvi-a em meus braços e a carreguei até o bolo. Alguém se desequilibrou logo depois e Piper acabou caindo na piscina, levando Hope consigo. Piper passou o resto do dia de bico porque seu celular estava morto, até alguém chegar com um celular novo para ela.

Foram três dias de diversão em que vi minha irmã voltar ao normal, até que Hye tomou a iniciativa:

— A gente pode conversar sobre trabalho?

Eu me perguntava se escrever e falar de música à beira do mar naquela casa incrível e rodeado de algumas das pessoas que eu mais amava no mundo podia ser considerado trabalho e o tempo se mostrou ser uma negativa.

Em um pouco mais de uma semana, tínhamos planejado, escrito e composto todas as músicas do álbum sem nenhum esforço. Foi com diversão, bebidas, tranquilidade e amizade. Pareceu com nossas reuniões antes do contrato e da fama, sem pressão e sem pressa.

Sentia que tínhamos descoberto algo importante e que ninguém mais poderia nos derrubar.

Capítulo 8

Sinal dos Tempos

Nós nunca aprendemos, estivemos aqui antes
Por que estamos sempre presos e fugindo

Quando voltamos para Inglaterra, quase não consegui entrar em casa. Minha vontade era matar Christopher, cortar em pedacinhos bem pequenos e depois tacar fogo. O cheiro parecia infectar todo quarteirão, tudo por causa de um prato com resto de comida que ele esqueceu dentro da pia. Demorei cinco minutos com a mente piscando em imagens muito desagradáveis e senti como se retornasse aos meus dez anos de idade, calçando luvas de faxina e começando a tentar me livrar da podridão. Quando ouvi a porta de casa abrir, horas depois, não conseguir parar o que estava fazendo, ainda esfregando a pia com todos os produtos de limpeza que encontrei, água quente e sabão.

— Sai! — gritei com ele, assim que parou na porta da cozinha, encostando-se no batente para me olhar.

— O que foi? — percebi-o se aproximar. — Tô tentando falar contigo há horas. Você está esse tempo todo limpando?

Ele tentou segurar minhas mãos pela borda das luvas amarelas de limpeza que eu usava, mas apenas resultou em uma confusão de água e espuma.

— Você deixou comida aqui. Estragou minha cozinha. Ela nunca mais vai ser a mesma.

Christopher não pareceu se abalar com as minhas palavras, mas deu-me um pouco mais de espaço para continuar o que estava fazendo. Senti suas mãos em meu quadril e seu corpo moldou-se ao meu por trás, antes dos seus lábios encostarem em minha orelha.

— Desculpa, meu amor. Fiquei estressado com o trabalho novo e com você indo pra longe. Não vou fazer mais, tá bom?

Queria dizer que sua voz não provocava nenhum efeito em mim, mas ninguém acreditaria. Nem eu mesmo acreditava. Tentei fingir, mantendo minha postura rígida e concordando com a cabeça às suas palavras, mas, por dentro, a saudade fazia meu sangue borbulhar.

Ainda estava com raiva. Ainda queria picá-lo em pedacinhos.

Só que aí ele desceu os beijos para o meu pescoço e sentir aquele arrepio agradável subir pela minha espinha. Dei um empurrão de leve, tentando resistir.

— Para, Christopher!

Minha voz perdeu a firmeza e senti-o rir contra a minha pele. Manejou-me como uma boneca ela seus braços bem trabalhados, virando-me de frente para beijar-me a boca com saudade.

Havia uma parte de mim que exigia a resistência e foi essa que me fez dar-lhe três tapinhas molhados em seu ombro, mas Christopher colocou-me sentada sobre a mesa da cozinha e encaixou-se em mim e me derreti.

Era sempre assim, desde a primeira vez que me beijou. Podia estar com o problema que fosse, podia sentir a ansiedade traumática na beira do colapso, mas ele me beijava, me tocava, e parecia que nada mais no mundo importava. Era só eu e Christopher e todo o resto sumia da minha mente como um passe de mágica.

— Mais calma? — perguntou-me, assim que nossas respirações se acalmaram.

Sentia-me uma bagunça. Chris estava sem blusa, com a braguilha da calça aberta, encaixado em mim. Minha calça e a calcinha ainda estavam presas em meu tornozelo, a blusa estava embolada além do conserto e tinha um seio para fora, mas o cafuné que ele me fazia era tão bom...

— Ainda preciso limpar tudo — murmurei.

Ele riu baixinho e a boca estava de volta à minha, mais calma, mais relaxada, mais apaixonada, daquele jeitinho doce que mexia com todas as minhas entranhas, torcendo e revirando até que eu precisasse implorar por mais.

— É? — perguntou. — Será que você precisa de uma atenção mais demorada...?

E lá estávamos nós de novo.

Aquela foi a primeira vez que fizemos amor sem proteção. Com o passar dos meses que se seguiram, tornou-se mais comum. Nunca reclamei e também não conversamos sobre as implicações do que poderia acontecer, só deixamos como estava.

E obviamente não percebi que estávamos cometendo os mesmos erros novamente até que fosse tarde demais.

Durante seis meses, mais ou menos, tivemos paz. Os ataques as Travellers diminuíram, cada uma de nós encontrou conforto de alguma forma, superando nossas tribulações, mas cada uma em nossos dramas pessoais.

Hope se marcou para sempre. Desde seu vídeo íntimo vazado, não se relacionava com mais ninguém e nem ao menos parecia muito interessada.

Hyelin e Emilia tinham sofrido demais com o interesse da mídia e o relacionamento delas não resistiu. Estavam tentando serem amigas e terem uma relação de trabalho, sem muito sucesso.

Para Piper, que nunca fora atacada diretamente, ver o quanto as coisas eram cruéis conosco a fizeram amadurecer rapidamente, deixando de ser uma menina rebelde para uma mulher desconfiada.

Alika estava fugindo de Alex, que tinha saído da reabilitação e estava morando com Michael, apesar das minhas reclamações. E eu...

— As coisas estão tão estranhas — contei, acariciando sua barriga proeminente. — A gente nem tá conversando muito, eu até tento, mas ele responde rápido e fica na dele. O tempo que ele tem livre, vai pra academia e só.

Respirei fundo, cansada. Chelsea me abraçou pelos ombros, seus cinco meses de gravidez deixaram seu rosto um pouco mais redondo e seu sorriso ainda mais gentil.

— Ele deve estar estressado com o trabalho — tentou me acalmar. — Aposto que não é nada demais, vocês logo vão estar bem de novo.

— É, tem razão — suspirei. — E hoje não é dia disso, né?

Ela riu. Estávamos sentadas ao jardim da casa de meu irmão, crianças correndo de um lado para o outro para comemorar a festa de aniversário de um ano de Andy.

Verdade devia ser dita: meu sobrinho era um amor, mas estava se desenvolvendo um pouco mais lento que a maioria das crianças. Ainda não andava ou falava e tinha um pouco de receio que fosse a influência super protetora de Michael no crescimento dele.

— Oi! Posso roubar ela um pouco? — Minha irmã colocou as duas mãos em meus ombros e projetou seu queixo próximo de minha orelha direita, sorrindo para Chelsea. — Na verdade, por que você não vem com a gente?

Chelsea estranhou, mas acompanhou-nos enquanto Hope me puxava pela mão. Levou-nos para cozinha, onde havia uma grande bandeja de brigadeiros à nossa disposição. Michael e David já estavam lá, a borda das bocas sujas em um tom de marrom. Chelsea deu um soco na barriga de David.

— Mas nem pra me chamar.

Eu estraguei aquele grupo de ingleses para sempre.

— Encomendei para você — Meu irmão me disse, na maior cara de pau do mundo. Peguei uma das bolinhas em minha mão. — Tem uma moça na escola da mãe da Gabi que faz. A gente achou que todo mundo ia gostar.

Joguei o brigadeiro na boca e cuspi quase imediatamente. Minha língua se prostou para fora e fiz ânsia de vômito, sem me conter. Todo mundo me encarava de olhos arregalados, sem entender nada.

— Desculpa — percebi, tarde demais, a desfeita. — Mas tá parecendo uma pedra. Dá próxima vez, me pede que eu faço ou encomendo onde conheço, tá?

Michael parecia chateado, mas deu de ombros.

— Pra mim parece igual — Dave resmungou, como um grande apreciador de brigadeiros.

Deixei-o avaliando a bolinha para ver se encontrava alguma diferença e fui ao banheiro. Esbarrei com Christopher de babá de Alex e acenei com a cabeça, vendo-o levantar uma garrafa de água para mim. Achei que demorariam anos de casamento para que chegássemos naquele nível de indiferença, mas aqui estávamos nós, um pouco mais de um ano de relacionamento, nos ignorando sempre que podíamos.

Lavei a mão e a boca na pia do banheiro e ouvi 3 batidinhas características na porta. Abri, dando de cara com a feição preocupada de meu irmão.

— Tá tudo bem? — perguntou-me imediatamente.

Concordei com a cabeça, mas meneou seu rosto, me avaliando com aqueles grandes expressivos olhos castanhos que liam a minha alma do avesso.

— Não é nada — tentei fugir. — Sério.

Ele riu de lado, debochando da minha resposta porque sabia que não era a verdade.

— Sei que anda um pouco ausente, mas... — ele segurou meu braço com sua mão, me puxando para mais perto. — Você ainda é uma péssima mentirosa e sei que tem algo errado quando coloco meus olhos em você.

Ele foi educado o suficiente para me puxar para o quarto que dividia com Gabriela assim que ouviu o meu suspiro cansado de rendição.

— É o Christopher — confessei por fim. — Ele anda tão estranho. A gente não tem conversado direito, nem nada... As vezes a gente até namora, mas ele tá tão esquisito...

— Ai, vocês dois... — ele riu, se sentando na cama. Deu foi tapas ao seu lado, me convocando a ocupar o lugar. Sentei-me, deixando meus ombros caírem, mostrando o meu cansaço e minha fragilidade na frente da pessoa que sempre me protegeu. — Não acho que seja nada, Tish. A gente ainda tá meio perdido com a pausa da banda e ele tá esperando pra ver se renova o contrato com a StarHunt... Só deve estar com a cabeça cheia e não quer te incomodar.

Eu não estava convencida de que fosse apenas isso, mas dei o ombro e tentei parecer o mais sincera possível, porque queria com toda a minha força que aquilo fosse verdade.

— É, vai ver é só isso, né? — Sorri.

Meu irmão acreditou. Pediu desculpas pelo fiasco do brigadeiro e me deixou sozinha com meus pensamentos. Fiquei ali por vários minutos, deixei-me jogar na cama e refletir. Sabia que deveria voltar à festa em algum momento. Mal tinha conseguido falar com tia Liah, que estava agarrada a Andy, como uma vó coruja que era, mas tentei estender o momento ao máximo.

— Aí está você! — Piper pulou em cima de mim e da cama sem muito cuidado e senti uns respingos de algo caindo em cima de mim. — Ops! Seu irmão pediu pra eu te resgatar, disse que você estava chateadinha, então trouxe algo pra te animar.

Eu poderia ter dado um beijo na boca de Piper para agradecer, mas agarrei a taça de bebida que ela me oferecia e virei-a toda de uma vez, fazendo-a rir.

— Você salvou a minha vida — disse-lhe. — Quer um beijo? Vou ter que dar um beijo.

— Minha nossa, já está bêbada? — Ela riu, mas sua risada não demorou a murchar.

Os anos a tornaram um pouco mais séria, mas jamais triste. Piper manteve sua juventude com força, pegando um pouco de cada uma de nossas personalidades, suas companheiras de banda, sobretudo nossas coisas boas. De mim, conseguiu aprender a busca por fazer tudo sempre um pouco melhor, largando seu jeito despojado. De Hope, herdou a capacidade de parecer calma nos momentos mais desesperadores, nos passando segurança quando ela mesma não tinha. De Alika, tirou a responsabilidade. Não muita, mas melhorou bastante. Mas foi com Hye que aprendeu a ser mais séria, deixando as piadinhas constantes para os momentos propícios.

— Ei — chamei-a. — O que houve?

Meus problemas ficavam pequenos e irrelevantes quando minhas amigas precisavam de mim. E Piper, como a mais nova de nós, era nossa. Sempre protegida. Sempre com um sorriso no rosto e a juventude entalhada. Ela não precisava passar pelos sufocos que passamos. Nosso projeto era protegê-la a todo custo.

— Eu não sei... — deu de ombros. — Eu tenho pensado... Não. Deixa. É bobagem. É você que está triste.

Puxei-a para meus braços e a abracei com força, sentindo uma pequena resistência.

— Vai, boba. Fala comigo. Eu sou bem mais legal que as outras.

Ela riu e se afastou do meu abraço, abaixando a cabeça e deixando seu sorriso morrer mais uma vez.

— Você acha que tem algo estranho comigo, Tish? —perguntou. Quase pulei onde estava sentada, chocada com a pergunta. — É o que as pessoas tem falado. Que eu não sou normal porque nunca tô namorando com ninguém. Nunca tô interessada em ninguém...

— Quem tem falado isso, Pip?

— Minha irmã... Hope também — respondeu. Quase rosnei. Hope sempre foi ácida, mas os últimos acontecimentos a deixaram amarga como um quiabo. Ela me pegava de guarda baixa e me magoava algumas vezes também. Era um dos seus maiores dons. — Tem umas coisas que escreveram também.

— Não lê essas coisas, já te falei — ralhei com ela. — É claro que não tem nada errado com você. Vai ver você só não achou a pessoa certa. Antes de eu conhecer Christopher, também nunca tinha me interessado por ninguém, sabia? Até mesmo quando a gente terminou, sabe? E eu fui embora? Tive vários casinhos, mas nunca parei com ninguém.

Ela estava enrolando o lençol em seu indicador, demonstrando seu desconforto com seus próprios pensamentos.

— Mas tinha casos, né? — retrucou. — Eu nem isso.

Revirei os olhos de leve, rindo.

— Pip, se quiser ter um caso, vá e tenha um caso. Se diverte. Mas não faz isso porque os outros te disseram pra fazer, tá? Você pode não se interessar por ninguém também, se quiser. Se você está bem sozinha, fique de boas com isso. E se Hope te disser algo assim de novo, você manda ela à merda.

Ela riu, mas não pareceu tão convencida. Conversamos mais um pouco até Michael mandar Hyelin checar porque estávamos demorando tanto, então voltamos à festa. Sentei-me com Christopher pelo resto da tarde, tentando dar-lhe o benefício da dúvida e puxar papo, mas acabei conversando mais com Alex do que com ele. Voltamos para casa, ao fim do dia, quase em silêncio, mas ainda me esforcei um pouco mais e senti-o quase voltar para mim quando nos beijamos, tiramos nossas roupas e nos amamos.

E, no dia seguinte, Chris escapou pelos meus dedos mais uma vez, com desculpas e saindo de casa para seus compromissos.

Eu me esqueci como ele conseguia me deixar tão insegura.

Capítulo 9

Com Cuidado

Minhas inseguranças não entram de férias
Então, amor, se você acha que pode lidar comigo
Por favor, lide comigo cuidadosamente

Com a data de lançamento do novo álbum se aproximando, nossos preparativos alcançavam o ponto máximo e quase não tínhamos tempo para descansar. Para mim, era uma coisa boa. Sair de casa e parar de pensar tanto nos problemas de relacionamento com Christopher dava uma nova perspectiva.

O primeiro lançamento do álbum seria um single falando sobre a experiência de Hope em seu relacionamento com Mark Hopkins. Claro: ninguém disse isso com palavras, mas o nome da música, estúpido garoto rico, já dizia muita coisa.

Estávamos ensaiando a coreografia de forma incansável nos últimos dias e até mesmo eu já não aguentava mais.

— De novo? — Hye perguntou, quando Hope errou a entrada dela.

Gemi e choraminguei, colocando minhas mãos nas costas na altura da cintura, empurrando meu corpo para trás, tentando me alongar. Parecia que o mundo estava girando e disfarcei meu desconforto procurando minha garrafa d'água e me sentando.

Minha irmã não deixou a movimentação passar despercebida.

— Podem continuar sem mim. Vou fazer uma pausa.

Sabia que depois eu iria escutar. Hope viria atrás de mim para saber o que aconteceu para que eu largasse o ensaio pela metade para tirar um momento de descanso, enquanto normalmente eu ia além da da exaustão física, o que, para mim, eram algumas horas a mais de exercícios que minhas companheiras de banda.

Já faziam alguns dias me sentia fraca e um pouco fresca para comer. Achava que talvez fosse algum probleminha de estômago e, por não me alimentar direito, estava perdendo a resistência. Precisava fazer exames completos antes de começarem as maratonas de entrevistas e shows. Já estávamos participando de alguns programas para nos colocarmos de volta na mídia, já que deixamos tudo de lado após o vazamento de Hope.

Bebi alguns goles de água e fiz um alongamento em minhas pernas, observando cada um dos movimentos das minhas companheiras, procurando as mínimas falhas. Naquela altura do campeonato, nós já tínhamos nos acostumado umas com as outras e até gostávamos das nossas diferenças. Ninguém mais ficava completamente surtado por conta da minha obsessão pela perfeição. Depois de um tempo, na verdade, elas acabaram considerando uma qualidade. O mercado global da música era muito exigente e quanto melhor entregássemos nosso conteúdo, para mais gente chegava e éramos mais elogiadas. Se nos arriscássemos a fazer um trabalho mais ou menos, as críticas nos derrubavam e viriam sempre das pessoas mais próximas, que diziam nos apoiar.

Elas ensaiaram duas vezes completas antes de me chamaram de volta. Eu estava sentindo como se o mundo fosse se partir em dois de tanto que eu via dobrado.

— Acho que vou encerrar por hoje — resolvi dizer. — Não estou me sentindo muito bem. Vou ver se Chris pode vir me buscar.

Fui rodeada imediatamente, não só por elas, mas pela equipe que nos acompanhava, filmando, fotografando e documentando cada um dos nossos passos.

— O que você tem? — Hope perguntou, passando a mão pelo meu rosto. — Não é febre. Tá sentindo cheiro?

— Não é nada, é só um mal estar — tentei acalmá-la. — Não estou comendo direito. Deve ser isso. Prometo que amanhã alcanço vocês.

— Você vai descansar o dia inteiro e nós ainda não vamos te alcançar, essa é a verdade — Pip brincou.

Abracei-a de lado. Era bom ouvi-la brincar. Andava caladinha, pensativa e distante, magoada com as histórias que falavam sobre ela ser solterona e solitária.

Enquanto elas voltavam ao ensaio aos poucos, digitei uma mensagem para Chris, avisando que não estava me sentindo muito bem. Ele respondeu imediatamente.

"O que houve, linda?"

Digitei um breve resumo.

"Nada grave. Acho que só preciso comer e descansar. Você consegue me pegar?"

"Agora, agora, não". Respondeu. "Trouxe o Alex na terapia porque seu irmão não podia. Ele acabou de entrar. Quer que eu peça um carro pra te buscar? Vou ver se Chelsea e Dave estão em casa para darem uma olhada em você até eu chegar".

Chris estava me confundindo. Ou era completamente indiferente e, então, era magnífico. Atento, preocupado, gentil. Não fazia ideia do que estava acontecendo, mas tentava ouvir as palavras do meu irmão.

"Não precisa, amor. Eu peço alguém da equipe pra me levar e vou descansar. Mas leva comida?"

"Claro. Vou passar naquele restaurante que você gosta. Me avisa se precisar de mais alguma coisa? Te amo".

Respirei aliviada. Será que a gente ia conseguir caminhar de volta ao paraíso?

***

 — E trazendo pra gente em primeira mão seu novo lançamento, Estúpido Garoto Rico, as Travellers! — anunciaram.

Era o nosso primeiro programa desde que Hope teve seus vídeos vazados. Deixamos claro em todos os contatos que não responderíamos perguntas sobre o caso e, para poupá-la, fizemos alguns sacrifícios: eu, por exemplo, estava disposta a responder algumas coisas sobre meu passado no Brasil ou sobre meu primeiro namoro com Christopher. Alika e Hye também estavam dispostas a falarem de seus recentes términos, mas apenas perguntas pré-aprovadas. Piper não tinha exigências e talvez esse foi nosso erro.

Devíamos ter prestado atenção. Ela estava sensível aos seus assuntos pessoais e parecia que o mundo inteiro notou que havia um jeito de derrubar sua confiança.

Em defesa do programa, eles talvez tivessem pensado que estávamos todas abertas para proteger Hope. Não foi fácil para nenhuma de nós.

— Sim, eu ainda o amo — Alika respondeu, sem medo. — Mas o convívio acabou ficando complicado e tivemos algumas brigas na frente do meu filho, então achei que era melhor nos afastarmos.

— Agora que ele está melhor, você acha que teria chance de vocês voltarem? — Nathaly, a apresentadora, perguntou, cruzando as pernas e se curvando em direção à Alika, que se remexeu de forma desconfortável ao meu lado do sofá. Aquela era uma pergunta não-aprovada, com certeza. — Me desculpe a intromissão, mas que sempre shippei Alix...

Ela riu, tentando parecer mais simpática do que sua raiva normalmente lhe permitiria.

— Acho que isso é uma coisa que... Uma coisa que só poderíamos conversar nós dois — declarou. — Não vou te dizer que nunca irá acontecer, mas também não acho que esse é um momento adequado.

— A gente sempre espera que vocês tenham uma segunda chance... — Nathaly continuou e virou-se para mim ao mesmo tempo que percebi que era minha vez. — Assim como Tish e Christopher, não é mesmo?

— Ah, é — respondi. — Não é um caminho fácil, claro...

— Você e ele nunca falaram muito sobre esse namoro adolescente de vocês e sempre me corroí de curiosidade — Nathaly estava ciente do nosso desconforto, mas tentava, com jogo de cintura, deixar a entrevista divertida. Interessante estava. Iam falar daquilo por dias, meses talvez. — Vocês se conheceram pelo Michael?

— É. Eles estavam morando juntos em um hotel. Nós, Hope e eu, fomos visitar. Já tínhamos conversado algumas vezes, mas foi a primeira vez que nos encontramos cara a cara. Eu tinha... Meu trauma ainda me travava muito e Christopher foi muito compreensivo. Hope me acobertou e nós fugimos de Michael por alguns minutos. Nos beijamos. Foi meu primeiro beijo. Logo depois a gente continuou a sair e começamos a namorar.

Alika ainda estava irritada e parecia estar se intensificando. Deixamos aberto a perguntas, aceitamos para que evitássemos qualquer coisa sobre o vazamento íntimo de Hope, mas ainda era desconfortável.

— Vocês namoraram por mais de um ano, certo? — Indagou. Concordei com a cabeça. — E o término? Quem foi o culpado?

Ri, baixinho. Aquela sim era uma pergunta desconfortável, principalmente naquele momento em que Christopher e eu estávamos na corda bamba, nunca sabia se estávamos bem ou não.

— Se você me perguntasse isso há alguns anos, eu diria sem dúvidas que era culpa dele — respondi. — Só que não acho que houve um culpado. Nós dois erramos de maneiras diferentes. Eu... Eu era uma menina quebrada, sabe? Não conseguia me comunicar direito e várias outras neuras. Chris tentou me proteger de aparecer na mídia e essas coisas, mas, ao mesmo tempo, ele gostava da atenção. Das cantadas. Tudo começou a me incomodar, a gente sempre ficar escondido de todo mundo, as vezes que eu o via com outras garotas... Só que eu não conseguia dizer. Ele não podia resolver um problema que ele não sabia que existia. Chegou a um momento que foi insustentável, então terminei com ele e resolvi passar um tempo no Brasil. Acho que a gente só era... Imaturo, sabe? Penso que Christopher sempre foi a pessoa certa, mas que aquele era o momento errado.

— Que história incrível — ela disse. — Eu tenho mais uma pergunta pra você, Tish — comecei desde já a rezar para todos os santos que conhecia para que não fosse uma das perguntas ruins. — Quando você e Christopher se reencontraram, ele estava namorando com Ivonne Jackson. Um pouco depois que eles terminaram, vocês reataram. Há alguma relação entre as duas situações?

Quase rangi os dentes. Alika estava rangendo os dela, mais incomodada com minha saia justa do que com a sua própria.

— Não exatamente — resolvi ser sincera. — Christopher me procurou assim que retornei, mas eu não queria reatar, então seguimos nossas vidas. — resolvi contar a versão resumida. — Então, quando lançamos Balada dos Corações Partidos, que, sim, é sobre ele, ele me procurou outra vez. Nós conversamos sobre e decidimos que talvez fosse uma boa tentar outra vez. Terminamos nossos relacionamentos, mas só reatamos mesmo no aniversário dele, meses depois.

— Conta a história do brinco — Piper sugeriu, rindo. Ela adorava a história do brinco.

— Sim, o brinco. A gente decidiu fazer as coisas com calma, ir do começo, então nos aproximamos como amigos e fizemos todo o caminho de volta. Ele ficou com medo de eu pensar que ele estava só conversando comigo porque queria saber se já podíamos reatar, sabe? Então me deu um par de brincos para eu usar quando achasse que fosse a hora. Isso tirou um pouco a pressão porque a gente sabia que estávamos só conversando, sem pretensões.

— Uau! — Nathaly disse e eu forcei o sorriso, apesar do desconforto. — Adorei saber. Agora, Hyelin...

Ela ainda demorou um tempo perturbando Hyelin que, apesar de ser muito educada, não era tão paciente quando Alika e eu e soltou algumas farpas em suas perguntas até, finalmente, virar-se para Piper.

— Todas as meninas tem histórias incríveis de romance desse tempo que estão sob nossos olhos, mas ainda não ouvimos nada de você, Piper — brincou, como se estivessemos em uma toda de conversa. — Me pergunto se você não tem nada pra esconder como Hyelin nos escondeu por algum tempo...

Piper abriu a boca para responder, mas Hyelin já estava à frente.

— O que você está insinuando? — respondeu, com o sangue quente, cansada do massacre e das perguntas que saíram do roteiro acordado.

— Que algumas pessoas ficam muito tempo no armário sem necessidade — Nathaly respondeu. — O mundo está pronto pra acolher você, Piper.

Puts.

Cheguei a fechar os olhos e respirar fundo porque sabia que alguém começaria a gritar a qualquer momento. Esperei que não fosse eu.

— Ah, então arrancar alguém do armário como fizeram comigo? — Hye disse, em seu tom calmo, mas escorrendo malícia e raiva em suas palavras. — Sem respeitar meu tempo, minhas escolhas, minha individualidade, só para terem do que falar? Se Piper precisar sair do armário algum dia, e vamos deixar bem claro que aqui é um "se" bem grande, vai ser no tempo dela. Não vai ser em uma entrevista de merda, não vai ser com paparazzis de merda, vai ser na hora que ela quiser, tá me entendendo?

— Corta! — Alguém gritou. E eu conhecia muito bem aquela voz. Emilia saiu de detras das câmeras com a mão na cintura. — Puta que pariu, ein? Eu saio por dois minutos e esse tipo de coisa acontece? Mas vamos lá. Dá pra cortar essa parte? Vamos só finalizar e acho que vai ficar tudo bem. Estava assistindo aqui e já tem um material muito bom, então, vamos só esquecer essa pequena discussão e seguir, o que acham?

Hye ainda estava irritada ao extremo e Piper, ao seu lado, tinha os olhos azuis marejados e arregalados. Alika tinha deixado os ombros caírem, cansada. Eu estava esfregando as mãos em minha perna, tentando me conter. Hope torcia suas mãos no colo porque sabia que aquele fiasco eram nossa tentativa de protegê-la.

— Tudo bem — Nathaly foi profissional. — Vamos pular para o final.

Capítulo 10

Alguém que eu Costumava Conhecer

Você não precisava me afastar
Fingir que nós nunca acontecemos e que não éramos nada
E eu nem sequer preciso do seu amor
Mas você me trata como um estranho e isso é muito difícil

— Oi — quase me engasguei com a saladinha que estava comendo por causa do tamanho susto que levei. Christopher sorriu de leve e se jogou ao meu lado do sofá. Buscou minha boca em um beijo rápido. — Nunca te vejo mais.

Ainda girava a chave de casa entre os dedos, batendo o molho nas costas da mão e girando de volta até bater na palma.

— Muito trabalho — respondi. — Já nem lembrava mais que você morava nessa casa.

Ele deu de ombros e mexeu a cabeça de um lado para o outro, parecendo desconfortável. Para mim, era claro que ele também estava sentindo nosso distanciamento e que, como eu, não estava gostando muito. Eu não sabia como resolver e esperava que ele tivesse a resposta.

— Eu tenho vindo — sua mão livre deslizou pela minha coxa. — Não te pego em casa, então vou embora.

— É... — metade da minha concentração foi embora. — A gente tem ficado juntas. As coisas estão um pouco emboladas.

— Podia me avisar quando estiver em casa. Aí eu venho pra cá ficar com você — pediu.

Encarei-o longamente. Estava tão insegura quanto nós dois que nem pensei em fazê-lo. A aproximação, tanto quanto o afastamento, me deixava nervosa. Ele percebeu minha pausa e curvou-se para frente, lentamente, quase perdindo permissão. Encostou sua cabeça em meu ombro e senti o nariz em meu pescoço.

— Posso — dignei-me a responder.

Seus lábios começaram a traçar beijinhos e mordidinhas em meu pescoço, subindo para minha orelha.

— Pensei em te levar pra viajar uns dias antes da sua turnê — murmurou contra a minha pele. — Thomp costuma deixar uns dias livres pra descansar, então queria aproveitar pra gente ficar junto. Acha que dá?

— U-hum — foi tudo o que consegui murmurar. Se daria mesmo: não sabia. Para Christopher, foi suficiente.

Acabamos namorando no sofá, meu prato de salada abandonado pela metade na mesa de centro. Ele ficou comigo até de manhã, quando saiu mais cedo para a academia, para se exercitar antes de se apresentar no planejamento de mais uma temporada do StarHunt.

Naquele dia, tive certeza que íriamos resolver e que Michael estava certo: era coisa de momento. Encontraríamos nosso caminho de volta um para o outro, cada um cedendo um pouquinho sobre seus receios e Deus sabia que eu tinha um montão.

***

— Tá tudo bem? — Alika me encurralou na saída do ensaio. Eu segurei a onda até o final, mas assim que Hye reclamou de exaustão e Pip e Hope pareceram aliviadas, eu avisei que ia ao banheiro e saí correndo.

Vomitei.

Talvez Alika tivesse ouvido.

Eu queria que não porque estava eu já mal podia conceber a possibilidade que se passava na minha mente, ter alguém dizendo aquilo em voz alta só pioraria tudo. Limpei minha boca e dei descarga. Pelo reflexo do celular apagado, verifiquei se estava apresentável e saí do reservado do vestiário do nosso estúdio de ensaio. Arrisquei um sorriso.

— Tá sim — confirmei. Sem encará-la, passei direto para a pia e comecei a lavar as mãos.

Demorei um pouco mais que o costume e ouvi Alika suspirar.

— Você sabe que pode me falar qualquer coisa, não sabe? — as palavras em português me pegaram de calça arriada e quase soltei todos os meus pensamentos em uma corrente de palavras desesperadas.

— Eu sei, Ali — murmurei, finalmente desligando a torneira e virando de frente pra ela. — São só uns problemas em casa que estão me deixando sem sono. Mas as coisas vão se resolver.

Ela concordou com a cabeça. Alika era a minha amiga mais próxima e achava que muito se dava por conta do respeito aos limites que eu impunha. Enquanto Piper e Hope estavam sempre empurrando os meus muros e Hyelin dava de cara com ele e virava as costas, Ali admirava a construção e dava tapinhas até que eu estivesse disposta a abrir a porta. Acreditava que ela poderia tentar escalar o muro se achasse necessário, mas nunca fez.

— Sei como é — sorriu. — Mas você tá tão fraquinha esses dias que estou ficando preocupada. Se continuar assim, vou ter que ligar pra sua tia. Ou pro seu irmão.

Tudo o que eu menos precisava era da minha família me rodeando e fazendo perguntas que eu mesma não sabia responder.

— Por favor, não — ri, mas soou nervoso e sem jeito. — Eu prometo que vou descansar hoje.

— E ir ao médico? — sugeriu.

— Vou marcar um médico, tá — aceitei.

Ela me olhou com aqueles grandes olhos escuros e experientes que me diziam que suspeitava da mesma coisa que eu, mas esperaria até que eu lhe dissesse. Que o médico confirmasse.

Eu não queria que médico nenhum me confirmasse nada.

O conhecimento podia destruir mundos inteiros.

Alika respirou fundo, aliviada pela minha fácil cooperação e fomos conversando amenidades até nossos carros. As outras três integrantes da nossa banda já tinham sumido, mas o carro de Hyelin ainda estava estacionado a duas vagas do de Alika.

Já em casa, tomei meu banho e comecei a preparar o jantar. Na porta da geladeira, encontrei um bilhete de Chris que devia estar lá desde de manhã.

"Oi,

Meu dia tá lotado hoje, mas me avisa se você quiser que eu venha à noite, tá? Se você estiver muito cansada, posso ficar na minha casa".

Suspirei. Ele devia ter tentando me encontrar em casa porque não tinha dormido comigo. Peguei o bilhete do resto de comida que encontrei na geladeira. Encarei a garrafa de vinho por alguns segundos, ponderando se deveria tomar ou não, mas considerei uma boa ideia, então enchi uma taça.

Sentada no chão da sala, colei o postit na mesa, uma lembrança de que as coisas dariam certo, então abri meu laptop e busquei o site de agendamento médico enquanto bebericava o vinho. Eu precisava tirar aquela dúvida logo, por mais medo que tivesse.

Meu telefone começou a vibrar. Assim que virei a tela para cima, franzi a testa ao ler o nome.

A ligação caiu antes que eu pudesse atender, mas eu já estava preocupada o suficiente para ignorar minha refeição.

A mensagem de Noah, o blogueiro gentil que havia me entrevistado há alguns meses, chegou logo a seguir.

"Me chama assim que puder. Preciso conversar com você".

E, logo a seguir:

"É urgente".

Gelei.

Por sorte, estava sentada, porque vi o mundo inteiro girar. Tentei controlar a minha respiração e fiz o máximo para responder de forma educada, sem transpassar meu desespero.

"Estou aqui. Aconteceu alguma coisa?"

Fiquei encarando a tela por alguns segundos, esperando que ele me respondesse. O tempo se arrastava na minha frente e o ar parecia não preencher meus pulmões. O celular começou a vibrar uns momentos antes da tela exibir a ligação.

Atendi no primeiro toque e arfei, quase em colapso pelo que viria pela frente.

— Sim?

"Oi, Tish. Boa noite. Desculpa incomodar..."

Torci o nariz. Noah era gentil, mas preferia que ele fosse direto ao assunto e me poupasse da ansiedade de preparação. Achei que seria mais fácil indicar o caminho para que pudéssemos terminar logo com aquele sofrimento.

— Não tem problema. Você é sempre bem-vindo — elogiei-o, esperando que ajudasse. — E parece algo sério, de qualquer maneira, então... O que houve?

Ouvir Noah instalar a língua na boca, exprimindo seu desconforto. Algo me dizia que sua vocação não era ser fofoqueiro, mas tinha acontecido e ele fazia o melhor com o que tinha.

"Tem uma coisa que uma informante acabou de me mandar e eu preciso postar porque ninguém postou ainda, mas..." Ele se pausou e senti meu coração pular uma batida em expectativa. "Achei que seria muito errado postar sem falar com você porque... Você foi tão gentil comigo e eu não queria ser um imbecil com você..."

Levei minha mão até testa e desci meus dedos até o canto dos olhos levando o polegar e o dedo médio até o nariz e esfregando. Noah precisava ser mais direto e falar logo ou eu entraria em colapso.

— Só me diz logo o que aconteceu, Noah — pedi. — Sei que é o seu trabalho e você tentar me avisar antes de qualquer problema maior é mais do que eu poderia pedir.

Eu já estava conformada com o preço da fama, com aquelas fofocas e mentiras incansáveis. Não era culpa de Noah; ele realmente tentava não passar dos limites e sempre era gentil comigo e com minhas irmãs. Não costumava se unir ao bando de gralhas quando alguém caía, tentando exibir o lado positivo de cada situação.

Ele suspirou, aliviado com minha compreensão e aguardei enquanto ele avaliava qual a melhor forma de me contar o que vinha por aí. Eu já sabia que era bomba antes que as palavras tomassem forma através do autofalante do celular.

"Recebi vídeos e fotos do Christopher andando com a ex noiva dele. Eles parecem... Íntimos. Posso te mandar, se quiser, mas assim que eu desligar, preciso postar. Já está tudo pronto."

Engoli a seco. Chris estava distante há algum tempo, estávamos tentando nosso caminho de volta um para o outro, mas eu sentia que sempre esbarrava em uma barreira. A notícia me pegou desprevenida, apesar do nosso histórico, mas não me deixou tão surpresa. Tudo pareceu se assentar, explicando as atitudes e o que acontecia. Não era culpa minha, afinal, não eram meus medos, minhas limitações. Era só Christopher e sua cruel indecisão.

— Entendi — respondi, tentando manter a calma e ignorar a frustração e a vontade de chorar. — Agradeço o aviso. Se puder me enviar o material, agradeço de coração. Acho que vou precisar ficar algum tempo offline.

"É claro" ele responde imediatamente. "Se eu puder fazer algo..."

— Você já fez, Noah. É muito melhor saber assim do que... — as palavras não se formaram e não precisava. Noah se lembrava de como havíamos nos conhecido e do que eu lhe falara.

Agradeci mais algumas vezes e desligamos. Meu celular apitou cinco vezes seguidas e vaguei, apavorada, até a conversa de Noah. Havia um vídeo de Chris e Ivonne andando lado a lado na rua, com sorrisos e toques. Os dois estavam de roupa de ginástica e reconheci os arredores da academia que ele frequentava.

Isso também explicava o porquê ele estava tão obcecado com musculação nos últimos meses.

Desci para a sequência de fotos. Toques gentis nos braços e nos ombros. Um abraço apertado e carinhoso.

Um beijo.

Virei a foto ao contrário e o avesso. O ângulo não era muito bom e não dava para dizer se era um selinho ou um beijo na bochecha.

Mas Chris sabia.

Sabia do monstro que se formava em meu ventre toda vez que Ivonne era mencionada. Ele sabia das minhas inseguranças e devia compreender que o motivo de nosso primeiro término precisava ser evitado.

Eu evitava Matt porque sabia que minha amizade com o ator o deixava inseguro. Só esperava que pudesse ter a mesma gentileza comigo.

Mas Christopher sempre mexia e provocava o meu pior. E olhando aquela foto, meu cérebro visualizou os diversos beijos que presenciei entre os dois.

Aquela cicatriz em meu coração com o nome dele, massageada e tratada nos últimos dois anos, começou a se desfazer e abrir.

Dentro do meu peito, um rio de sangue começou a jorrar para os lugares errados.

O postit ainda estava ali, brilhando em amarelo, capturando minha atenção. Antes que pudesse me impedir, abri a conversa de Chris e avisei que gostaria de vê-lo. Ele respondeu apenas alguns momentos depois com um emoji de carro.

Recostei minhas costas contra a perna do sofá, beberiquei o resto do meu vinho e contei as frágeis batidas do meu coração quebrado.

Capítulo 11

Nada Quebra Como Um Coração

Esse mundo pode te machucar
Te cortar profundamente e deixar uma cicatriz
As coisas desmoronam, mas nada quebra como um coração

Aos faróis do carro iluminaram a sala escura e o barulho do motor ressoou até o silêncio retornar, quebrado por um eventual barulho de porta se fechando e chaves batendo umas das outras.

Eu não estava pronta. Talvez nunca estivesse.

Tirei o som da TV, prestando atenção no barulho de passos no caminho de pedra que levava até a entrada de casa. Minha taça de vinho estava abandonada na mesa de centro de um jeito incomum e brilhava em cores a cada nova cena que se alterava na televisão.

A chave tintilou outra vez e ouvi a porta de casa se abrir.

— Leticia? — Chris perguntou, estranhando a escuridão e o silêncio da casa. Os anos fizeram com que ele conseguisse pronunciar meu nome com a perfeição de um brasileiro nativo. Segurei a respiração e foi impossível segurar a carranca. — Olá?

Não adiantava nada amarelar ali, naquele ponto. Muito em breve ele veria as notícias e entenderia que eu sabia o que estava acontecendo. Passei minha adolescência fugindo de ter aquela conversa e não podia mais; era outra pessoa agora. Melhor, eu achava. Precisava ter mais controle do que era capaz, mais coragem para atravessar meus desafios.

— Estou na sala — anunciei.

Chris encaminhou-se imediatamente em direção à minha voz. Me dignei a subir até o sofá e aproveitei mais uma taça de vinho porque merecia uma dose extra depois do que descobri.

— Tá tudo bem? — perguntou, entrando já sala. — Por que está tudo escuro? O que você está assistindo?

De uma coisa não poderia reclamar de Chris: ele sempre tentava me entender. Sempre se esforçava para lidar comigo quando eu estava em um dia ruim — e para ele já era óbvio que era o caso, naquele momento —, então me dava a opção de não querer conversar sobre o assunto, se fosse melhor para mim.

Como ele conseguia ser meu céu e inferno ao mesmo tempo?

— Você podia me responder isso — falei, no tom que confessamos nossos maiores medos.

Olhei para ele apenas para vê-lo franzir as sobrancelhas em dúvida. Apoiou a mão no braço do sofá e, em um impulso, se jogou ao meu lado.

— Te responder o quê, meu amor? — Perguntou. — Não entendi.

Peguei meu celular entre meus dedos e comecei a girá-lo em meu colo, nervosa e irritada. Sabia que depois que dissesse as palavras, que exige explicações e mostrasse o que eu tinha, nada seria como antes. Eu me lembrava bem de de quando tomei coragem de encará-lo com fotos da última vez. Fizeram Hope me acompanhar em um trem para o outro lado do país só para jogar tudo que eu descobri em algumas horas pesquisando na internet, e mesmo que Christopher tivesse me convencido de que não era o que eu estava pensando, a dúvida ficou ali no fundo da minha mente e culminou no nosso fim.

Era verdade, afinal. Mesmo que ele não pudesse admitir na época, minhas as suspeitas eram verdade.

E lá estávamos nós de novo. No mesmo lugar. No mesmo exato momento. Com a mesma pessoa entre nós.

Sentia que andava em círculos.

Desbloqueei o aparelho por fim e virei a tela para ele, a conversa com Noah ainda aberta.

Seu rosto se alterou no mesmo segundo, de uma preocupação divertida, tornou-se uma visão do mais puro pânico.

— Meu bem... Ela começou a frequentar a mesma academia que eu há umas duas semanas — a frase, a explicação inocente, tudo parecia um déjà vu. — A gente teve uma história, não é fácil só fingir que ela não existiu. Só fui gentil. Só conversamos sobre a vida, sobre você, até. Não aconteceu nada.

Eu queria acreditar que era verdade, tanto quanto apertava o celular em minhas mãos, deixando a ponta dos dedos clarearem perante minha força, mas eu já assisti aquele filme, já escutei aquelas desculpas.

Nada? — minha voz estava descontrolada como não costumava acontecer, e seu tom subiu duas oitavas, ficando esganiçada e frágil. — Esse nada é o mesmo da última vez?

Sua expressão era de total incredulidade. Chris sempre foi muito convencido, achava-se mais esperto que os outros e eu o deixava pensar assim para massagear seu ego. Ele não gostava quando era pego no pulo.

— Você não pode trazer isso de volta toda vez que ficar chateada — ele exigiu. — Estou te contando o que aconteceu. Não contei antes porque você já está estressada e não queria que fosse mais um problema, mas não significa nada. Foi só um encontro de velhos conhecidos.

— O seu nada é claramente diferente do meu — retruquei. — Qual será esse nada? É como você flertava com Ivonne na minha frente e me dizia que não tinha nada acontecendo? Ou será que é um nada como quando você disse que me amava em um dia e a pediu em casamento no outro? Ou como você estava de casamento marcado, mas vinha aqui me pedir uma segunda chance? Qual nada é esse, Christopher?

Minha voz perdeu a tremedeira, ficando firme e subindo a cada item listado da falta de fidelidade que Christopher exibiu ao passar dos anos e que eu tentava ignorar, calar as dúvidas no fundo da minha mente em prol do amor que ele sempre me mostrava. Agora, porém, todas elas voltavam em fila e eu sabia que estava magoando Chris, sabia que ele não gostava de ouvir e vi seu humor afundar à minha frente, até os cristais iluminados de seus olhos se apagassem, opacos e magoados.

— São coisas completamente diferentes — disse.

— Pra mim, parece tudo igual.

— Você está maluca — ele resmungou. Arregalei os olhos e percebi que ele se arrependeu das palavras assim que disse, mas engoliu a seco com raiva e não as retirou. — Eu sei que você tem seus ciúmes, principalmente com a Ivy, mas nunca te dei motivos...

— Tudo o que você me deu foram motivos, Christopher! — retruquei.

— Fica difícil quando você é incapaz de confiar em mim. Fica realmente difícil quando sou eu que tenho que segurar a gente sozinho.

Foi minha vez de segurar a respiração e engolir a seco. Sabia que estava me afastando dele nas últimas semanas, até chegava a evitá-lo porque sentia que algo estava errado e não conseguia só pensar nisso toda vez que me aproximava. Chris tentava, mas erqui meu muro e ele estava com dificuldade de atravessar.

— Você que me dá motivos pra duvidar de você — falei.

Não era bem verdade. Eu duvidava, às vezes, porém ele sempre tinha uma carta na manga para me fazer relaxar e sorrir. Confiava nele de olhos fechados e um sorriso no rosto, só que o medo me cobria. Ali, com aquelas fotos na mão, estava apavorada de repetir a mesma história, os mesmos erros de anos atrás. Não podia me deixar cegar por aquela dor de rasgar o peito.

Ele sentiu a força das minhas palavras. Fechou os olhos e virou o rosto para longe, evitando me encarar. Quando voltou a mover as pálpebras, libertando seus cristais da prisão autoinfligida, eles voltaram a brilhar, mas de um jeito diferente: estavam molhados pelo desespero.

Sua resposta foi apenas o jeito que encontrou de me atingir.

— Então talvez a gente devesse... ter... dar um tempo — falou.

Senti que ele iria terminar, mas no último segundo, mudou de ideia. Não entendi sua motivação, mas recebi os farelos do meu coração estilhaçado em meu estômago, subindo mal estar pela minha garganta, até que o gosto ruim preenchesse toda a minha boca.

Ele se levantou, como se fosse me dar espaço para pensar e me desesperei, vendo-o ir.

— Vai usar esse tempo para ficar com Ivonne sem culpa, é? — Indaguei, irritada.

Quando ele virou o rosto em minha direção, as lágrimas de dor ainda estavam lá, prontas para se derramarem, mas seu olhar era pura raiva e decepção.

— Talvez eu use — respondeu.

Antes que ele sumisse pela porta da sala, o controle da TV voou em direção à sua cabeça e espatifou-se contra a parede quando ele desviou no último segundo.

Chris me olhou uma última vez e vi quando a primeira lágrima percorreu seu rosto antes de se virar e sair, batendo a porta com força.

Um grunhido desesperado escapou de meu peito e me curvei em meus joelhos e finalmente deixei toda aquela dor escapar em sons e lágrimas.

Capítulo 12

Fotografia

Amar pode curar
Amar pode consertar a sua alma
E é a única coisa que eu sei, sei
Eu juro que vai ficar mais fácil

As meninas já estavam ensaiando quando eu cheguei no estúdio, a cara amarrotada e os olhos exibindo toda a glória do meu choro e da noite sem dormir. Não contei pra ninguém da briga com Christopher, apesar de ter conversado com Dave sobre estar triste quando ele me chamou para fazer brigadeiro para ele à uma da manhã, usando a desculpa de que era um desejo de grávida de Chelsy. Preparei uma panela de manhã e deixei na janela da casa deles antes de dirigir até o estúdio, o que me garantiu um atraso.

Peguei a coreografia na metade da passagem, mas me inseri no meio e fingi costume. Meu atraso passou despercebido. Minha cara de derrotada não.

Encarei expressões preocupadas em minha direção através do espelho durante toda a manhã e quando pausamos o ensaio para almoçar, Hyelin e Hope me seguiram para fora do estúdio, enquanto Piper corria em direção ao banheiros aos pulinhos e Alika estava em uma ligação, provavelmente com o pai ou com Kayin.

— Fala aí — Hye exigiu, cruzando os braços. Paramos na frente do elevador para subir até o restaurante na cobertura.

— Falar o que? — me diz de desentendida.

Hope revirou os olhos e Hye bufou com minha audácia.

— Não é óbvio? — Hope reclamou. — Tu fica com essa cara de bosta mole e não quer que a gente se preocupe?

O elevador chegou e entramos. Tinham duas pessoas lá que olharam duas vezes para checar que éramos nós mesmo.

Suspirei.

— Me sinto como uma bosta mole — respondi.

Ninguém falou mais nada ate que a mulher desceu do elevador dois andares acima de o homem cinco andares antes da cobertura.

— O que aconteceu? — Hye perguntou, baixinho.

Respirei fundo. Não queria conversar sobre a que aconteceu, mas sabia que não me deixariam em paz até que eu falasse algo.

— Chris e eu discutimos feio ontem à noite. Estamos dando um tempo.

— Ah, merda, lá vão vocês dois de novo — reclamou Hope. Seu braço passou pelo meu ombro, porém, e me apertou em um abraço de amor.

— Você está bem? — Hye estendeu a mão em minha direção e a pousou em meu braço.

— Claro — debochei. — Não poderia estar melhor — sabia que não fazia sentido algum atacar minhas companheiras de banda e me arrependi no momento que as palavras saíram da minha boca. — Desculpa.

Hye não levou para o coração.

— Está tudo bem — sorriu. — Mas só dessa vez.

Sorri de lado, agradecida. As portas do elevador se abriram e respirei fundo o ar fresco que entrava pela área externa da cobertura. O cheiro da comida fresca adentrou minhas narinas e senti meu estômago embrulhar.

— Eu... Já volto — me dignei a dizer.

Corri em direção ao banheiro e cheguei a levar a mão até a boca antes de conseguir entrar no reservado e colocar tudo pra fora.

Fazendo ânsia, rezei para que fosse apenas a ingestão de álcool da noite anterior, as duas taças de vinho que me deram coragem e anestesiaram meu coração.

A porta do banheiro se abriu enquanto eu despejava mais um pouco de mim no vaso sanitário.

— Puta que pariu — ouvi a voz de Hope, alta e clara. Ela bateu nas portas dos reservados ao meu redor e depois ouvi um tapinha de leve no meu e seu sussurro: — Você está grávida, não está?

Quase tampei meus ouvidos. Não queria ouvir, mal conseguia pensar naquela possibilidade. Sabia que meu corpo mostrava os sinais há algum tempo e que meu ciclo, sempre irregular, não dava as caras há três meses, mas não podia. Não.

Meu silêncio disse tudo o que Hope podia querer saber.

— Abre, irmã — pediu. — Deixa eu te ajudar.

Abri. Hope me envolveu em seus braços, fechando a porta atrás de si e chorei baixinho em sua barriga, naquela posição estranha e apertada, enquanto ela acariciava meus cabelos.

Hope ouviu minhas lamúrias baixinhas naquele reservado de banheiro. Secou minhas lágrimas e traçou leves retoques de maquiagem para esconder meu sofrimento. Só então trouxe o assunto da gravidez a tona novamente.

— Tem quanto tempo? — indagou. Com cuidado, sua mão pousou em minha barriga, testando a rigidez.

— Não estou grávida — cortei-a de imediato. — Não posso estar grávida — disse, mais pra mim que para ela. — Esse momento é péssimo. Não.

Hope torceu a boca, mas me presenteou com seus raros momentos de silêncio empático e não disse mais nada.

Consegui comer um pouco depois disso. As meninas pareceram não se incomodar em pedir detalhes do que havia acontecido — Hyelin talvez tivesse lhes contado o que eu confessei no elevador e isso era o suficiente pelo momento.

Voltamos ao ensaio e dei tudo de mim para manter meu corpo em movimento com a mesma destreza de sempre, embora uma fadiga muscular me acompanhasse por conta da noite mal dormida. Mesmo assim, foi uma tarde produtiva e conseguimos finalizar duas coreografias. Agora faltava apenas mais uma e voltaríamos para mais uma semana de fotos antes do lançamento do primeiro single. Então, após as entrevistas, teríamos uns dias de folga antes da próxima turnê.

Um dia após o outro. Eu conseguiria.

— Valeu, Karen! — Hope agradeceu quando a mulher lhe entregou uma sacolinha discreta. Eu estava me preparando para sair e sabia que Hope me seguiria pelas próximas horas, isso se não me arrastasse até a casa de Michael e o convencesse a fazer uma grande caneca do melhor chocolate quente dos Fosters. — Vou contigo pra casa — cutucou-me na cintura. — Vamos só no banheiro comigo antes? Tô apertada.

Concordei com a cabeça em um aceno. Não tinha forças para tentar fugir de Hope e nem queria, talvez um pouco de chamego da minha irmã fosse exatamente o que eu precisava.

Segui-a até nosso vestiário e apertei as sobrancelhas juntas quando ela trancou a porta, minha glabela parecendo um pequeno triângulo de pontas arredondadas.

Hope abriu a bolsinha de zíper, apoiando-a contra a pia. Tirou uma caixinha de lá e eu dei um passo pra trás, querendo fugir.

— Vai fazer xixi — ordenou. — Agora.

Neguei com a cabeça e o medo começou a encher meus olhos de lágrimas, como se todo o meu esforço para contê-las durante o dia fosse ridículo e se perdesse na primeira situação de adversidade.

— Eu não quero — reclamei.

Ela sacudiu a caixinha do teste de gravidez na minha frente, esticando o braço em minha direção, exibindo uma expressão de desafio em seu rosto.

— Não tô nem aí pro que você quer — suas palavras duras eram cheias de preocupação e amor, apesar de tudo. — Fingir que nada aconteceu não vai sumir com uma gravidez, Tisha, chega de fugir. Vai lá, faz xixi e volta aqui. E aí a gente vê o que faz depois do resultado.

Eu não podia estar grávida. Não podia.

Chris e eu estávamos em um péssimo momento, o álbum estava prestes a ser lançado e os meses seguintes seriam de trabalho, cansaço e mais trabalho. Não cabia, não tinha espaço.

— Eu tô com medo — confessei.

Hope desmanchou a postura de general e atravessou os dois passos que nos separavam, abraçando meu corpo bem apertado. Demorei um pouco para envolver meus braços ao seu redor e ela escorregou as mãos até meu rosto.

— Não precisa ficar com medo — sussurro pra mim. — Eu vou estar com você o tempo todo.

Encarei seus olhos cor de mel, exibindo um raro momento de doçura em toda a rigidez que ela criou ao seu redor, principalmente após os últimos acontecimentos em sua vida. Sentindo a firmeza do seu apoio, concordei com a cabeça em um breve e único aceno.

— Tudo bem — murmurei.

Hope levantou o canto esquerdo de seu lábio e empurrou a caixinha em minhas mãos. Girei, lendo as instruções brevemente, antes de rasgar o lacre e segui-las. Entreguei o pequeno medidor nas mãos de Hope e virei-me de costas, enfiando meus dedos pelo cabelo.

Com o braço livre, Hope me abraçou, dando-me um beijo na linha da mandíbula e apoiando a cabeça no meu ombro. Ela começou a cantarolar Hey Jude baixinho, seus cachos dourados e indomáveis faziam cócegas em minha nuca conforme as notas eram emitidas. Fechei os olhos com força e não me esforcei em esconder as lágrimas apavoradas que escorreram pelo meu rosto.

A canção alcançou seu ápice e Hope me distraiu por mais alguns momentos com a repetição ao final, enquanto me embalava em seus braços e eu chorava baixinho.

Ela suspirou, por fim, terminando a canção.

— É — murmurou, quebrando o silêncio que ficou desde que terminou a canção. — Parece que eu vou ter mais um sobrinho pra estragar.

A expressão que escorregou da minha boca não tinha nenhuma tradução em qualquer língua falada. Minha mão escorregou para minha barriga, encontrando a de Hope já lá, em um carinho gentil de boas vindas. Encarei o tecido da minha blusa de ensaio e a barriga por detrás dela, sentindo as lágrimas voltarem a escorrer com força total.

Não sentia mais desespero nenhum.

Medo, sim.

Medo de tudo o que mudaria a partir daquela descoberta, desde os desdobramentos do meu relacionamento com Christopher até o que poderia causar na minha carreira e na banda.

Mas havia algo em mim que parecia florescer como uma mistura de certeza e felicidade. Deixei meu rosto exibir o novo formato dos meus pensamentos e Hope sorriu de volta, me dando um beijo na ponta do nariz.

— Parabéns, mamãe — disse, apenas.

E meu sorriso se alargou um pouco mais.

Capítulo 13

Casaquinho

Um amigo para todos é um amigo de ninguém
Persiga duas meninas, perca a escolhida
Quando você é jovem, eles supõem que você não sabe nada

— Bom... — acabei de comer um prato bem grande de filé de peixe com fritas sem enjoar ou vomitar, o que era um grande avanço. Hope encarou-me com seus olhos brilhando de felicidade em me ver bem, ainda mordiscando as últimas batatas do seu prato. — E o que eu faço agora?

Hope me lançou um sorriso sincero que levantou suas bochechas e quase escondeu seus olhos. A última das batatas estava em sua mão e ela jogou pra dentro da boca antes de me responder, enquanto mastigava.

— Agora você descansa — disse. — Pode dormir comigo na minha cama, se quiser — concordei com a cabeça porque não negaria um pouco de descanso e cuidado vindo da minha irmã, não quando era o que eu precisava. — E amanhã você vai mandar uma mensagem para Christopher e conversar com ele.

A calmaria em meu rosto se desfez no mesmo segundo e senti minha garganta fechar com medo.

Sabia que era a coisa certa a se fazer, mas...

— Não posso — murmurei. — Se eu falar com ele da gravidez agora, nunca vou saber... Nunca vou saber se ele me escolheu ou só ficou comigo por causa disso.

Hope revirou os olhos e riu baixinho. A batata já tinha sido engolida e ela se levantou em um pulo para recolher as louças da mesa.

— Você é muito boba, Tisha — disse. — Não sou a maior fã do Chris...

— Você não é nem um pouco fã dele — ri.

— E você sabe que eu nunca fui... — continuou como se eu não a tivesse interrompido. — mas o homem te ama. Não acho que ele te traiu com a Ivy, senão não teria sido fotografado, estaria escondido. E também acho que você tem a escolha de não ficar com ele, se não quiser, mas ele vai precisar saber da gravidez de qualquer maneira. E antes que o Michael descubra isso tudo.

Falar de nosso irmão aliviou um pouco o clima e me fez rir. Geralmente era ele que me socorria quando eu precisava, mas a banda aproximou Hope e eu de uma forma única e depois do nosso período na casa da areia, era difícil desentrelaçar nós duas.

— Ele vai pirar, não vai? — brinquei.

Ela virou o rosto por cima do ombro, de onde lavava nossos pratos e talheres.

— Vamos deixar Michael grisalho antes dos 35, com certeza.

— Ele vai ficar um grisalho bonito — sorri, imaginando. — Charmoso.

— São os genes da família — Hope brincou, ainda lavando a louça e virando-se em minha direção a cada nova sentença. — Por isso precisamos nos multiplicar. Estou atrasada na corrida, mas sou mais nova.

— Você é dois meses mais velha, Hope — corrigi-a.

— Eu ouvi dois anos mais nova? — Levou a mão cheia de espuma até a orelha, deixando um pouco em seu cabelo volumoso. — É isso mesmo.

Ri um pouco mais alto, me sentindo leve. Sabia que Hope estava me distraindo, mas era sempre bom poder contar com ela. Desejava que pudéssemos ter nos encontrado assim quando ainda éramos novas, mas eu não me permitia e ela também não.

Algumas só coisas aconteciam na hora certa, mesmo que tentássemos por anos sem conseguir. Outras aconteciam no tempo errado e mudavam todo o mundo de lugar para poder se encaixar.

Levei as mãos até a minha barriga.

Eu sempre sonhei em ser mãe, sim. Quando ganhei certa idade, refutei aquele desejo: não tinha como lidar com meus traumas e com um bebê. E, então, me esforcei em melhorar para poder realizar meu sonho, mas não havia ninguém com quem eu quisesse formar a família... Até que havia alguém. Até que Christopher estava lá e a minha carreira também, não podia parar tudo enquanto estávamos no auge. Dava para esperar uns anos e fazer como a DeLorean, como meu irmão... Pausar a carreira para ser mãe, para curtir tudo.

Agora lá estava eu, com um álbum a ser lançado, uma turnê mundial agendada, sem Christopher e grávida.

Senti a mão de Hope sobre a minha. Estava limpa, mas ainda molhada e senti-a gelada contra a minha pele.

Levantei o olhar para ela e minha irmã me encarou de volta com aquele sorriso de olhos escondidos que a deixava a mulher mais bonita do mundo.

— Vocês não estão sozinhos, você sabe, né?

Tinha muito tempo que eu não pensava em mim sozinha, não desde que voltei a morar na Inglaterra e até antes disso. Mesmo assim, suas palavras encheram meus olhos de emoção.

— Eu sei — murmurei com a voz falhando. — Obrigada.

Ela se ajoelhou ao meu lado, encostando a orelha contra minha barriga como se fosse ouvir algo além do meu sistema digestivo. Seus olhos melados estavam fixos no meu, atentos e carinhosos.

— Conversa com ele — pediu. — Chris é um idiota, mas não é um babaca. Ele vai ficar feliz, Tish. Vocês vão ser uma família linda.

Concordei com a cabeça porque entendia sua linha de pensamento, mas não respondi.

Pelo resto da noite, Hope me mimou enquanto eu refletia suas palavras e todas as minhas opções e não me cansava de pensar sobre minha mãe. Sobre os erros que cometeu, tentando acertar.

Ela tinha todas as pistas de que o marido não era bom para ela. Estava pronta para deixá-lo para trás e voltar para a Inglaterra... E aí ficou grávida de mim.

E apesar de todas as pistas e da inconstância do relacionamento deles, ela achou que seria uma boa ideia ficar em um lar instável e me criar ali. Porque éramos uma família linda.

E se eu estivesse no mesmo momento agora, que escolha faria?

Quando Hope desmaiou de cansaço e começou a roncar baixinho, me apertei em um casulo, protegendo minha barriga, meu bebê.

Porque ele agora era meu tudo e eu o protegeria.

Não importava o custo.

***

Hope insistiu que eu deveria tirar uns dias de folga, alegando que eu conhecia todas as coreografias de cor, então não precisava participar das sessões de tortura coletivas que aconteceriam, pelo menos até a semana seguinte.

Isso me garantiu quatro dias sem correr de um lado para o outro com compromissos e aproveitei para... colocar minha casa em ordem.

Fazia um tempo desde que consegui fazer uma faxina completa, então aproveitei cada segundo. Com uma música alta, produtos de limpeza sem cheiro e várias conversas com minha barriga ainda plana. Foram longos e divertidos dias ignorando chamadas de Christopher no meu celular.

No domingo de manhã, minha campainha tocou. Eu estava reorganizando meus talheres com um novo suporte que adquiri por sugestão de Hyelin e uma entrega express.

Atendi a porta com um pouco de receio que fosse Christopher, mas deixei meus dentes aparecerem em um sorriso aberto ao identificar os cabelos dourados do meu irmão brilhando ao Sol.

Ele me olhou de cima abaixo, meus cabelos ondulados embaraçados presos de mal jeito com uma presilha velha, a blusa rasgada curta demais para um dia de outono, mostrando meu umbigo, uma calça de moletom escuro e com um rasgo mortal no joelho, os pés descalços, mostrando os esmaltes das unhas descascando.

— Você ainda me mata de susto — ele disse.

— O que eu fiz agora?

Dei espaço para ele entrar em casa e ele olhou ao redor, deixando os ombros caírem, parecendo aliviado.

— Você não me responde há dias. Não posta nada online, nem tenho visto nas postagens da banda — ele listou. — Hope disse que você ganhou umas folgas e que devia estar dormindo, Christopher me mandou cuidar da minha própria vida quando perguntei de você. Até pensei que vocês estivessem só... Juntos, mas ele saiu com Chelsea e Dave e, novamente, nada de você — ele continuou a falar. Eu já tinha fechado a porta e cruzado os braços em frente ao meu peito, franzindo a testa e tentando selecionar todas as semelhanças que meu irmão tinha com um psicopata. — Então você está só fazendo faxina. Não que faxina seja um bom indício. Não nesse nível.

Era fácil enganar qualquer um. Se eu falasse para as pessoas que minha casa estava imunda e que passei os últimos quatro dias limpando e organizando cada cômodo, elas saberiam que era só eu.

Michael não. Michael nunca se enganava. Michael conhecia todos os meus trejeitos e manias e o que cada um deles significava. Uma faxina de quatro dias não seria facilmente justificada como um passatempo.

Não podia lhe contar sobre a gravidez, porém.

Não estava pronta para dividir. Ainda não sabia o que fazer. E, por mais que sempre pendesse para o meu lado, a lealdade de Michael ficaria dividida nesse caso.

— Nós brigamos — contei a ele, sabendo que a meia verdade era melhor. Parte do problema poderia justificar a crise. — Brigamos feio.

— Hope? — perguntou. Estava checando o brilho incomum do porta retrato que ficava pendurado na parede do hall de entrada, uma foto de nossa família completa no dia da formatura dele.

— Christopher — corrigi-o. Ele me olhou como se estivesse tentando me ver do avesso, sentindo a mentira no ar. Precisava ser mais firme. — Saíram fotos dele com a Ivonne. Eu recebi do Noah, aquele blogueiro que fizemos a live, sabe? — suspirei. Me coloquei em movimento, indo para a cozinha. Meu novo organizador estava sobre a mesa, os talheres todos separados por tamanho e cor, prontos para serem guardados em ordem. — Questionei ele e ele alegou que estavam frequentando a mesma academia há semanas e que ele só foi gentil com ela porque eles tem uma história. Disse até que conversaram sobre mim — essa parte estava saindo com raiva e eu deixei uma pilha de garfos cair com um pouco mais de força dentro do organizador. Michael tinha ficado encostado no batente da porta, admirando cada movimento meu com seus olhos avelã que pareciam enxergar minha alma. — Ele não me disse nada. Eu fiquei tão... Ur! — Gemi de frustração. — Então eu disse que não confiava nele... E ele achou melhor a gente dar um tempo. E agora eu estou aqui... reorganizando a casa... porque cada bosta de canto tem um troço dele e eu não consigo... não consigo pensar.

A minha meia verdade se tornou uma verdade inteira quando minha voz falhou e um choro escapou de meus lábios junto com grandes lágrimas inconformadas escorrendo pelo meu rosto. Michael cruzou a cozinha em três grandes passos e me envolveu em seus braços gentis.

— Ah, Tish... — Michael beijou o topo da minha cabeça, um pouco acima de onde meus cabelos estavam presos e eu chorei em seu colo. — Eu sei que ela te deixa nervosa porque...

— Porque tem motivos — resmunguei.

—Tem — ele concordou. — Mas eu não acho... realmente não acho... Chris não… ele é louco por você. Ele terminou o noivado com ela só pela possibilidade de você aceitar ele de volta.

— E ele me procurou várias vezes enquanto ainda estava com ela — expliquei. — Nos beijamos. Se eu não tivesse a cabeça no lugar, teríamos feito mais.

Michael suspirou, como se não gostasse de saber o que estava ouvindo, embora já conhecesse parte da história — sem noção dos detalhes, poupados para que Chris não corresse risco de vida.

— Não estou dizendo que foi certo, mas... ele queria te namorar de novo — tentou me convencer. — Eu vi ele tentando te conquistar de novo. Ficava nervoso toda vez que íamos encontrar vocês. Eu conheço aquele mané e ele só fica assim com você. Ele não arriscaria isso por nada.

Meu choro estava diminuindo e sendo substituído por um aperto doloroso abaixo dos meus seios, quase me sufocando. Provavelmente era algum dos estilhaços do meu coração provocando mais dano.

— O problema é que ele já fez isso antes.

A memória era amarga para todos nós. Os desdobramentos das atitudes de Christopher nos afastaram por seis anos. Ainda era uma sombra em cima da nossa família, como a ausência de tio Robert, que era quase uma presença física em nossos encontros. Às vezes, quando fechava meus olhos, ouvia o rasgar da madeira característico da sua atividade manual favorita.

— Você era a mesma pessoa que é hoje dez anos atrás? — ele me perguntou. — Não mudou nada, não aprendeu nada? — Michael sabia exatamente tudo que tinha mudado em dez anos. — Ele também mudou, Tish. Pode não ser tão visível assim quanto você, mas mudou. Nem acredito que estou defendendo ele pra você, mas eu amo vocês dois e quero ver vocês bem e se tem uma certeza que eu sei dele é que ele te ama quase tanto quanto eu amo você.

Ouvir meu irmão defender Chris fechou minha garganta e me fez engolir a seco.

— Será que ama mesmo? — perguntei baixinho.

— Então é aí que tá o problema — Michael apertou meu nariz. — É ele que não te mostra que ele te ama ou é você que não quer enxergar?

Não sabia responder aquela pergunta, então fiquei em silêncio enquanto Michael me apertava em seus braços.

Capítulo 14

Esquecer

Pois vivi a minha vida com dívidas
Passei dias em profundo arrependimento
É, estive vivendo no vermelho
Oh, pois não consigo perdoar e esquecer

Meu celular foi recarregado no domingo à noite e me deixei tomar um grande copo de suco de uva (fingindo que era vinho) enquanto lia as notificações.

As mensagens de Michael estavam no topo. As de Christopher vinham logo depois. Abri a conversa.

"Me desculpa por não ter te falado da Ivonne. Eu sabia que você ia reagir mal e não queria que brigássemos. Meu plano deu errado, como pode ver".

"Você vai no Dave hoje?"

Abaixo das duas primeiras mensagens ignoradas, havia um resumo de tudo o que Chris achou do último programa criminal que assistiu.

Por fim, me enviou uma mensagem naquela tarde:

"Não estou achando minha camisa vermelha de botão. Aquela que Alex me deu. Acho que deixei aí. Posso ir buscar?"

Tive que segurar meus dedos para não responder a pergunta, até porque seria um sonoro não. Estava vestindo a camiseta naquele momento e nada no mundo me convenceria a tirá-la. Não depois da conversa que tive com minha barriguinha, falando de como o pai dela era um idiota cheiroso.

Era coco. Chris sempre cheirava a coco. Sabia que eu adorava e trocou todos os seus produtos de higiene pessoal para me agradar, meses antes sequer de eu cogitar voltar a me relacionar com ele. E, então, quando me enfiava em seus braços depois de um banho quentinho e escondia meu nariz na curva do seu pescoço, era como estar em casa. Fechava os olhos e parecia que estava sentada à beira mar na casa da areia.

Saí da conversa e haviam reclamações de Dave sobre a minha ausência em sua casa na quinta à noite. Chelsea, mais sensível, me perguntou se eu queria conversar. E depois enviou dois modelos de vestidos amarelos que pareciam incríveis.

O grupo das The Travellers também estava lotado mensagens, mas só passei os olhos por cima, a maioria eram reclamações de cansaço, lembretes e vídeos engraçados. Ali me mandou mensagens privadas educadas e alegava estar com saudades, em português mesmo. Hye compartilhau um vídeo coreano de um novo tipo de organizador de guarda roupa. Piper enviou um vídeo do gatinho que sua irmã adotou correndo atrás de uma bolinha, o que me fez sorrir. Hope só queria saber se eu estava me alimentando direito ou se teria que ligar para tia Liah e contar tudo. Respondi-a imediatamente dizendo que estava tudo bem e que só tirei um tempo longe do celular.

Esperava que não fosse tarde demais.

No meio do mar de mensagens, a conversa de Noah se destacou. Entrou em contato comigo na sexta de manhã e protelei um pouco para abrir, com medo.

Fui com medo mesmo.

"Oi, Tish, sei que você pode achar um pouco invasivo, mas meu trabalho é tentar. Muita gente está relatando que você e Chris terminaram. É verdade? Foi por conta do que conversamos na última vez?"

Por todos os céus, eu nem ia abrir mais nada além daquelas conversas se precisasse lidar com perguntas piores que aquela.

Mas resolvi responder. Se tinha alguém que poderia mudar a maré a meu favor era Noah.

"Oi, Noah. Desculpa a demora. Deixei meu celular longe de mim por uns dias. Chris e eu não terminamos, não, mas estamos em uma fase ruim. Nada incomum... Vamos resolver".

Eu mesma tentava me convencer que iríamos. Precisaria conversar com Chris em algum momento em breve... Mas não naquele dia. Ali, naquele fim de noite, só queria assistir TV e comer pipoca.

Estava na metade do primeiro episódio do documentário quando a campainha tocou. Novamente, fiquei apavorada que fosse Christopher; não estava pronta para encará-lo, muito menos se estivesse vestida com sua blusa desaparecida, mas peguei-me lembrando que ele tinha a chave. Podia só entrar se quisesse.

Dei pause na série e abri a porta. Não sabia se senti alívio ou desespero ao ver minha irmã segurando uma travessa de batatas gratinadas e uma cesta de frutas não tão frescas.

— Já chega de autoflagelação, não? — ela repetiu a mesma frase que lhe disse meses antes. — Teria trazido sorvete, mas o tempo não está muito firme e não quero que meu sobrinho ou sobrinha pegue um resfriado. Então trouxe batatas, frutinhas e alguns sachês de chá — ela invadiu minha casa mesmo que eu não tivesse lhe dado espaço. — Ur. Você e esses seus programas estranhos. Vamos assistir outra coisa.

Ela já estava em meu sofá, zapeando a programação para chegar em algo que a agradasse quando me sentei ao seu lado no sofá. Queria pegar um pouco mais de pipoca, mas sua mão estava pausada em garra em cima da vasilha e esperei até que ela liberasse espaço.

— Eu não estou em autoflagelação — pontuei. — Estou só contente com minha própria companhia.

Era mentira. Hope sabia e revirou os olhos ao encontrar um filme de comédia que pareceu gostar. Seus olhos estavam divididos entre analisar o trailer e a minha expressão.

— Ah, sei — murmurou. — Então você e Christopher já conversaram sobre aquele assunto importante?

Minha irmã sabia qual era a resposta e não esperou que eu lhe dissesse nada antes de apertar o botão para iniciar a programação.

Enquanto os créditos iniciais passavam, ela virou-se para mim por um momento.

— Usar a blusa dele não vai te ajudar em nada. Vocês precisam conversar, Tisha — Ela puxou minha mão para si e acariciou-a. — Você não pode fugir disso pra sempre.

Eu sabia que não.

***

Segunda era dia de regravação. Alguns vocais e instrumentais não estavam perfeitos como deveriam e precisavam ser melhorados, então lá estávamos nós cinco, no estúdio. Resolveram gravar uma por vez e Hope estava na voz. O resto de nós estava na cabine, eu sentada no sofá com um copo de suco verde que Hope arrumou em algum lugar, Alika no braço do sofá, balançando a perna no ritmo da música. Pipper e Hyelin estavam de pé, observando Hope cantar; a australiana acenava de tempos em tempos, cada gesto aumentando a cor rosada no rosto de minha irmã, demonstrando sua irritação.

— Você pode fazer aquela parte de novo — o produtor pediu. — Um pouco mais agudo agora... — ele cantou como queria e Hope concordou com a cabeça, voltando a colocar os fones.

— Ei — Ali me chamou, assim que Hope voltou a cantar. — Conseguiu ir ao médico?

Bufei de frustração. No meio daquela confusão com Christopher, tinha me esquecido. Embora soubesse o motivo de meu mau estar, precisava começar a fazer o acompanhamento gestação logo.

— Não... — murmurei. Encarei Alika no rosto e suspirei. Decidi que tudo bem. — Mas fiz um teste.

Ela não precisava saber qual teste, a suspeita dela era clara, só me deu mais espaço que Hope.

— E aí? — indagou. Encarei a parede escura e acolchoada do estúdio e balancei a cabeça de cima a baixo só uma vez. Alika sorriu. — É, dava pra ver. Se precisar de alguma ajuda, sabe... Eu fiz isso uma vez já.

Soltei todo o ar de meu pulmão de uma vez só e me virei para ela.

— Por favor, sim — implorei. — Eu só contei pra Hope e tudo o que ela faz é me dar sucos e frutinhas.

Alika riu e acenou, despreocupada. Pegou o celular que estava no bolso traseiro de sua calça e começou a digitar.

— Vou marcar uma consulta pra você, sim? — sugeriu. — Se quiser que eu te acompanhe, vamos juntas.

Segurei seu pulso gentilmente em um pequeno aperto.

— Obrigada — murmurei. — Não sei o que faria sem você.

Ela apenas sorriu e digitou mais um pouco no celular antes de se voltar para mim. Logo a consulta estava marcada para dali dois dias. Contou que conheceu a médica na época que ainda era ilegal, quando uma colega Síria engravidou e recebeu a ajuda dela.

Ela ficou em silêncio por algum tempo e acompanhamos Hope errar a nota mais uma vez. Hye estava quase desistindo de ajudar, mas Piper continuava pulando e acenando, o que provavelmente era o que tirava a concentração de Hope porque ela parecia irritada com nossa caçula.

Eu percebi que Ali queria me dizer algo e não sabia como. Ela suspirou algumas vezes e curvou-se para frente, perdendo a postura ereta que sempre fazia questão de se exigir. Seus dedos longos, acostumados a tocar as notas graves do baixo, giravam um contra o outro.

Para ajudar, me virei de frente para ela e arqueei uma sobrancelha. Ela riu e suspirou mais uma vez.

Eu lembrava que a tinha escolhido porque era talentosa, mas também por ser alguém com quem podia conversar em português. Os anos dividindo nossa língua materna uma com a outra nos deixaram ficar em uma bolha só nossa, criando uma sintonia ímpar. A gente se entendia no olhar, nos pequenos gestos, como Hope ou Michael.

Alika sorriu de lado, parecendo envergonhada por eu tê-la pego em sua reflexão, mas suspirou mais uma vez e começou a falar:

— Sei que você e Chris brigaram, mas eu queria te dizer... — Ela torceu os lábios grossos em um sorriso de lado, meio sem jeito. — Eu e Alex conversamos nesse fim de semana. A gente vai tentar de novo em algum momento, quando estivermos prontos. Ele ainda não está 100% bem e tem medo de magoar o Kayin e eu vou levar um tempo pra confiar nele de novo, mas estamos dispostos a tentar. A conversar. E, Tish, foi você que me fez acreditar que segundas chances podem dar certo. Você e o Chris. Então... Obrigada.

Estava feliz por ela, de verdade. Chamei-a para um abraço, ao qual ela correspondeu e Piper acabou de jogando em cima da gente quando viu.

Mas aquele gosto amargo e esquisito estava em minha boca porque tudo o que escutei nos últimos dias eram elogios e defesas a Christopher.

E eu só queria conseguir esquecê-lo por alguns minutos.

Capítulo 15

Você não se Lembra?

Eu sei que tenho um coração inconstante e uma amargura
E um olho errante, e um peso na minha cabeça
Mas você não se lembra?
Você não se lembra?
A razão pela qual você me amou antes
Amor, por favor, lembre de mim mais uma vez

Eu não gostava de cheiro de hospital. Sempre evitava médicos, se fosse possível. Eu sabia que foi o primeiro lugar que me levaram depois que me encontraram com a minha mãe, mas as lembranças eram poucas. Tomei soro, fiquei um pouco mais de um dia sendo cuidada e depois fui para o abrigo. Mas foi o suficiente.

Nas minhas primeiras crises, tia Liah e tio Robert não sabiam o que fazer e me levavam para o hospital, só para aumentar o problema. Depois que entenderam o padrão, nós passamos a evitar.

Mesmo na vida adulta, mesmo sozinha no Brasil, sempre que podia, tentava passar longe de consultórios e exames. Ficou mais difícil com o tempo: como uma das bandas mais rentáveis da atualidade, era preciso fazer um check-up de tempos em tempos para saber se a galinha dia ovos de ouro estava bem.

Era necessário. Como aquela consulta.

Alika sabia do meu desconforto e tinha uma de suas mãos embolada com as minhas duas em cima do meu colo e nem reclamou da força que eu a apertava.

— A primeira coisa que temos que fazer é um exame — a médica começou a escrever o pedido. — Falsos positivos em testes de farmácia são raros, mas existem. Você precisa retornar quando o resultado sair pra gente poder prosseguir, tá bom? — a médica sorriu. Seu tom de pele era ainda mais escuro que o de Alika e parecia brilhar na luz clara do hospital.

— A gente volta ainda hoje — Alika garantiu.

Suspirei. Era a primeira hora da manhã. Pedimos liberação para poder resolver um problema; Hope nos deu cobertura, mas Karen, que suspeitava o suficiente do que estava acontecendo, insistiu em nos acompanhar.

— Ótimo — doutora Malena respondeu. — Tenho um horário livre às quatro e quinze de um cancelamento. Vou encaixar vocês.

Saímos do consultório antes das nove da manhã e Karen nos levou diretamente ao hospital em que nos tratavam há anos. Era um dos melhores do Reino Unido, com equipamentos de última geração e uma política de sigilo ainda mais rígida.

Paramos para comer no aguardo do resultado do exame. Karen estava quieta o dia inteiro e não era usual, mas achava que estava respeitando o meu momento ou, como eu, pensando em todas as implicações que o resultado positivo poderia ter na banda. Era o trabalho dela, afinal.

— Não sei se consigo comer — murmurei.

— É isso ou o suco verde que você ama, bebê — Alika provocou. — Ficar sem comer não vai.

Suspirei e fiz um pouco mais de esforço para engolir a comida.

— Vai dar tudo certo — Karen finalmente falou. — Eu vou cuidar de tudo.

Parei com a comida a caminho da minha boca e sorri, concordando com a cabeça. Karen assumiu o lugar de Emília depois de ter sido treinada por ela. A gente gostava muito da nossa antiga assessora, mas depois que o relacionamento dela com Hyelin começou a complicar, Thomp achou melhor afastá-la do tratamento direto conosco. Ela ainda trabalha com Thomp; depois de ter conhecido a mulher e sua capacidade, achava dificil que ele a deixasse ir muito longe.

— Eu sei. Obrigada — murmurei. Porque era verdade. Emília a treinou bem e eu confiava tanto em Karen quanto um dia confiei nela.

Meu celular apitou no fim da minha refeição e quase vomitei tudo quando vi que era uma notificação do laboratório, avisando que o exame estava pronto. Cliquei no link do resultado e lá estava: o meu índice de HCG estava acima dos 20 mil.

Soprei o ar com força e senti a mão de Alika em meu ombro, um breve aperto de apoio.

Fechei os olhos. Uns meses a frente, seguraria meu bebê em meu colo e ele teria o meu nariz perfeito, a cor dos meus cabelos, escuros como a noite, mas talvez fosse abençoado com os belos cachos cheios que Hope herdou de nossa avó, não os meus ondulados, mas os olhos... Seus pequenos olhinhos seriam de cristal azul como os de Christopher. As bochechas também seriam dele, assim como o queixo quadrado forte que era marca registrada da sua família.

Por Deus, como a gente podia amar tanto alguém que ainda nem conheceu?

— Preciso conversar com ele — murmurei minha epifania.

Alika riu e o aperto em meu ombro foi um pouco mais forte quando ela se curvou em minha direção para deixar um beijo em minha bochecha.

— Precisa mesmo — disse. — Ele vai morrer de felicidade.

O problema com Ivonne parecia irrelevante em meio àquela perspectiva. Eu não precisava mais que Christopher me escolhesse, ou a ela, apenas dar melhor para o meu bebê.

E achava que Chris seria um pai incrível. Sempre achei.

Eu fechei o exame e, sem pensar, abri minha conversa com ele. Não recebia mensagens dele há alguns dias, mas duvidava que fosse me ignorar.

"Podemos conversar hoje?" Enviei.

Alika se afastou para me dar privacidade e concentrou-se no copo de café que estava em suas mãos. Karen digitava freneticamente no celular, provavelmente criando um plano de contingência para minha gravidez inesperada.

Encarei o telefone por quase cinco minutos. Ele visualizou a mensagem e não respondeu. Segurei o celular com força, sabendo que seu silêncio era minha culpa, então me esforcei um pouco mais.

"Devo chegar em casa por volta das cinco ou seis. Pode ser?"

Ansiosa e ignonorada, bloqueei o aparelho. Não tinha fome e aquela minhoca de nervoso andando pela minha barriga deixava a ingestão de alimentos um pouco mais complicada, mas engoli a seco e terminei a refeição.

Meu mal estar era irrelevante. Eu precisava fazer o melhor para o meu bebê.

Capítulo 16

Bola de demolição

Nunca amei dessa maneira
Tudo que eu queria era romper suas barreiras
Tudo que você fez foi me destruir
Sim você, você me destrói

Estacionei em casa e engoli a seco. A luz da sala e da cozinha estavam acesas e eu tinha certeza que apaguei antes de sair naquela manhã. Olhei para a sacola no banco do carona; uma roupinha de bebê amarela que Alika comprou para mim e que estava planejando mostrar para Christopher.

Será que o mundo dele ia mudar tanto quanto o meu?

Desliguei o carro, tirei o cinto de segurança, peguei a sacola e saí. Controlei minha respiração nos passos pelo caminho de pedra da entrada de casa e girei a chave na porta, tirando meus sapatos para entrar, um dos meus TOCs que permanecia porque era um hábito higiênico que fazia sentido e não me esforcei em desfazer.

Soube que algo estava errado no momento em que entrei em casa, mas não ouvi minha intuição. Deveria ter subido escada acima e me recusado a falar com ele, mas não o fiz.

A primeira coisa que reparei foi o cheiro. Sempre fui sensível a odores, mas a gravidez intensificou ainda mais.

O cheiro de coco que acompanhava Christopher a todo o lugar não estava mais com ele. Havia um cheiro mais adocicado no ar que, se eu pudesse chutar, diria ser flor de laranjeira.

Era o cheiro que ele tinha quando estava com Ivonne.

Meus passos incertos para a sala abriram a visão do aposento. Chris estava sentado no sofá, curvado à frente e sua postura estava errada.

Quando convivemos tanto com alguém, percebemos pequenos trejeitos nos mínimos gestos e até mesmo na maneira da pessoa respirar.

E estava errado.

Quando ele virou em minha direção, minha expressão já tinha se desmanchado de frustração. Eu sabia que ele estava bêbado antes de reparar no cheiro do álcool ou ver o copo em sua mão, mesmo que nunca tivesse visto Christopher naquele estado.

— Aí está ela — ele disse. — A dona perfeita, rainha da verdade, imaculada julgadora de todos nós.

A fala arrastada da bebedeira não amenizou a dor das palavras que ele proferiu. Minhas narinas inflaram com a força do ar que convoquei aos meus pulmoes para não perder a paciência. O amargo na minha língua informava que meu estômago estava doido para devolver toda a alimentação do dia, mas que respeitaria meu momento. Me deixar resolver as coisa primeiro.

— Você está bêbado — as palavras em voz alta apenas externaram minha decepção. — Eu te chamei para conversar e você está bêbado.

— Já começou — ele revirou seus olhos azuis, que estavam apagados de todo o brilho como jamais tinha visto. — Precisei beber para aguentar mais uma sessão de julgamentos. Ela nunca para, pessoal.

Ele falava como se tivesse plateia. Olhei ao redor, esperando encontrar qualquer pessoa ou até mesmo uma câmera, mas não havia nada.

— Tá certo — soprei. — Pode dormir aí no sofá, se quiser. A gente conversa outro dia.

As coisas saíram do controle no momento em que eu virei-me em direção à escada. Minha falta de interesse no que ele dizia o colocou de pé e o copo de bebida foi jogado em minha direção, batendo contra a parede à minha frente, onde eu estaria se não tivesse me assustado com a movimentação brusca. O vidro se estilhaçou, caindo em cacos de tamanhos variados, espalhados pelo chão. Descalça, não tinha muito lugar que pudesse pisar sem me machucar.

Meus olhos escureceram quando olhei os cacos no chão e o cheiro do álcool e a falta de visão me fez arregalá-los. O flash de memória veio nítido; uma cozinha em tons de marrom em uma manhã quente de verão, meu pai havia passado a noite fora, mas mamãe e eu estávamos cozinhando. Então ele chegou com uma garrafa. Mamãe me mandou ir para meu quarto como sempre fazia quando papai estava andando torto. Ele se irritou com ela. A garrafa de quebrou contra a parede. O cheiro... O cheiro era o mesmo.

Voltei ao presente com os gritos.

— ...Vai ouvir o que eu vou dizer — ele bradava em minha direção, o sofá ainda entre nós. — Por que você faz isso comigo? Por que você sempre precisa achar que eu vou fazer a pior coisa possível?

Aquela porra de pressão estava de volta à minha mandíbula, dificultando a fala, mas não podia me deixar silenciar. Precisava ser mais forte agora que tinha alguém para proteger.

— Você está fazendo a pior coisa possível agora mesmo — foi tudo o que consegui dizer.

Ele não pareceu me ouvir ou talvez minha voz não tivesse saído com tanta força quanto eu planejei.

— Eu mudei meu mundo todo por você e você não consegue confiar em mim — falou, amargando ainda mais o gosto em minha boca. — Eu me pergunto... Será que você me ama mesmo ou só ama ter alguém que faz as coisas do jeito que você quer?

As palavras doeram e pareceu como um soco na boca do meu estômago. Fechei os olhos por um momento e aquela cena da minha infância voltou, mas consegui me controlar. Não podia lidar com aquilo, era muita coisa acontecendo. Não adiantava falar nada com Christopher naquele estado também.

— Vai embora, Christopher — pedi. — Sai daqui — gritei, com raiva.

A reação dele foi o exato oposto ao que eu queria. Ao invés de se afastar, Chris avançou contra mim e segurou meu braço. Tudo aconteceu muito rápido: no momento em que sua mão fechou em meu punho, meu corpo reagiu com tudo que podia para se proteger e minha força foi concentrada em fazê-lo me soltar. A bebida não o deixava firme e apesar de ser muito mais forte, me desvencilhei dele com mais facilidade do que esperava. O pânico da proximidade, então, me fez dar um passo para trás e uma dor excruciante percorreu pelo meu sistema nervoso, me jogando sentada no chão com força.

Tinha um caco de vidro enfiado na sola do meu pé e o ferimento parecia um pouco profundo porque o sangue começou a brotar e a escorrer, sujando o chão de piso de madeira.

Minha visão escureceu de novo. Uma faca ensanguentada. Uma poça de sangue seco.

Empurrei-me de volta ao presente, vendo Christopher confuso, se aproximando para me ajudar. Tentei me levantar, mas não consegui, então me arrastei de costas pelo chão para longe dele, até me encostar com as costas contra a lateral da escada, no corredor que levava ao jardim dos fundos, deixando uma linha de sangue borrado no chão.

— Tish... — ele tentou se aproximar mais uma vez, agora que eu estava encurralada.

Minha mão tateou o chão buscando alguma coisa, qualquer coisa, e encontrei um caco de vidro que ficou preso em minha calça enquanto me arrastara. Peguei em minhas mãos e levei à frente do corpo, em uma torpe ameaça à aproximação de Christopher.

— Vai embora — e, dessa vez, minha voz saiu forte e poderosa como um trovão, fazendo-o parar. A dúvida estava estampada em seu rosto, se deveria me ajudar ou fazer o que eu mandava. — Vai embora — falei, tentando. As lágrimas estavam queimando em meus olhos e começavam a escorrer. — Por favor, só vai embora.

Ele deu um passo para trás e o brilho voltou aos seus olhos, mas era raiva. Ou tristeza. Tirou a chave da minha casa de seu bolso e jogou de qualquer jeito aos meus pés antes de ir embora, batendo a porta.

Ainda segurei a respiração por dois minutos inteiros até que não podia ouvir mais nada. O choro escorria forte, molhando a gola da minha camisa, meu pé ainda escorrendo sangue.

Mas havia algo mais urgente acontecendo.

Com pavor, levei minha mão ao meio das minhas pernas, sobre o tecido fino da calça que estava usando. Quando meus dedos voltaram à minha frente, estavam vermelhos.

— Não — chorei. — Por favor, não.

Tentei me levantar mais uma vez, mas com aquele caco enfiado no meu pé, era impossível. Se tirasse dali, sangraria mais e também não achava que conseguia dirigir naquele estado.

Eu precisava de ajuda.

Michael. Pensei a princípio tirando o celular do bolso traseiro da calça. A tela rachou no meu tombo e praguejei baixinho, mas consegui usá-lo. Michael morava a uma distância considerável da minha casa, quase vinte minutos de carro. Hope morava fora da cidade e era totalmente fora de cogitação. Tia Liah... Não sabia se tia Liah estava em casa, mais perto de mim, ou em um de seus clubes noturnos de leitura ou ministrando a aula em uma faculdade sobre escrita criativa.

Mas tinha alguém que podia ligar que chegaria rápido se estivesse em casa. Era tudo o que eu precisava.

Procurei seu nome na minha agenda e disquei. Ele atendeu no segundo toque, enchendo minha esperança com sua voz grossa e melodiosa.

— Por favor, me ajuda — implorei. — Por favor. Aqui em casa.

Não precisei dizer mais nada.

Capítulo 17

Arranha-Céu

Você pode pegar tudo o que tenho
Você pode quebrar tudo o que sou
Como se eu fosse feita de vidro

Dave irrompeu pela porta exatamente três minutos depois, arfando. Xingou um palavrão ao entrar na sala e correu em minha direção assim que me viu. Pôs a mão sobre a barriga, tentando controlar a respiração depois de correr todo o caminho de sua casa para a minha.

— Puta que pariu — xingou. — Puta merda, o que houve?

Eu estava me acabando de chorar e com as duas mãos em minha virilha, tentando conter o sangramento de alguma forma. Levantei as mãos em sua direção e ele arregalou os olhos.

Dave era lento. Sempre foi lento. Mas sua esposa, Chelsea, entrou na sala naquele momento com uma barriga avantajada e a mão no coração. Dave sabia o que aquilo significava porque estava em seus piores medos nos últimos meses.

— Não posso perder ele — chorei.

Ele me ergueu nos braços no instante seguinte. Chelsea achou a chave do meu carro no chão em meio aos cacos de vidro e correu para abrir a porta de trás para mim, se acomodando ao meu lado. Dave partiu em seguida.

— Calma — ela me abraçou com força enquanto eu me sacudia. Meu pé estava doendo feito o inferno, mas eram as cólicas que tomavam toda a minha atenção. — A gente está aqui. Vai ficar tudo bem.

Dave apoiou o celular no suporte e o vi selecionar seus contatos enquanto virava a esquina. Ele estava na letra C.

— Não fala pra ele — chorei, assim que ele selecionou o nome de Christopher. — Não fala com ele — minha voz subiu uma oitava perfeita em meu desespero.

Não era maldade de Dave. Era a pessoa a chamar. O pai.

Ele desligou imediatamente.

— Filho da puta — xingou de novo.

Ninguém precisou dizer nada para que eles entendessem como eu me machuquei. Não depois do pânico em minha voz e nas minhas lágrimas.

— Minha família — pedi.

— Claro, meu bem — foi Chelsea que me respondeu. Pediu o celular de Dave e começou a ligar.

Chegamos ao hospital e Dave gritou até que me colocaram em uma cadeira de rodas e me levaram direto ao atendimento. Em algum momento entre me colocarem no soro e costurarem o rasgo no meu pé, apaguei.

Acordei já me colocando sentada em um pulo. Senti uma mão em meu peito enquanto respirava acelerado.

— Calma... — foi a voz de Michael que me alcançou, com seus cabelos dourados brilhando na luz clara do quarto branco. Ele segurava minha mão com força, sentado à beira da minha cama.

— Avisa o médico que ela acordou — escutei a voz de Hope ao fundo.

Tentei focar. Estava em um quarto de hospital, com certeza. Tia Liah estava à minha cabeceira, beijando meus cabelos com carinho. Michael ao meu lado, segurando minha mão com força. Hope foi até a porta, mas voltou. Seu lugar era aos pés da minha cama.

Relaxei e aceitei voltar a me deitar, sabendo que minha família estava ali. Tudo ficaria bem.

Uma fisgada me incomodou em meu braço e olhei. Ainda estava tomando soro.

— Você nos deu um beira susto, filha — tia Liah falou. — fiquei apavorada quando Chelsea ligou.

— Onde ela está? — perguntei porque estava com medo de perguntar o que realmente importava. — E Dave?

— Lá fora — foi Michael que respondeu. — Era muita gente e você estava apagada com o calmante que te deram, então eles disseram que só a família podia ficar no quarto.

Concordei com a cabeça e me afundei ainda mais na cama, minhas mãos escorregando para a barriga como haviam se acostumado nos últimos dias.

Senti o toque de Hope em meu tornozelo e levantei os olhos para minha irmã.

— Está tudo bem — ela murmurou. — Ele está bem.

Arregalei os olhos e quase me projetei para frente de novo.

— Ele está bem? — perguntei, afobada.

Tia Liah choramingou ao meu lado e me deu vários beijos pelo rosto, a mão escorregando para a minha barriga.

— Nem acredito que vou ser avó de novo — chorou, emocionada.

— Mamãe está chorando há meia hora — Hope contou. Sorri, acariciando os cabelos de tia Liah. — Desculpe por ter contado. Eu tive que perguntar ao médico.

Concordei com a cabeça, não me importando. Na verdade, estava agradecida. Sonhei em fazer um grande anúncio como o de Michael ou um jantar com nossas famílias. Depois do que aconteceu... Só estava feliz por tudo estar bem.

Michael estava ali ao meu lado, estudando minhas expressões com cuidado. Tinha um sorriso de lado no rosto, a mão apertada na minha e dei beijos carinhosos nela, mas seu olhar de avelã estava molhado com lágrimas de preocupação.

— O que houve? — perguntou. — Dave disse que te achou em uma poça de... — ele se cortou antes de dizer a palavra que acionava meu gatilho, sacudindo a cabeça. — disse que tinha cacos de vidro por todo o lugar. Você caiu?

Engoli a seco. Não queria ter aquela conversa, não com Michael. Mas Dave já tinha ligado as pontas soltas e Michael era bem mais inteligente. Era óbvio que ninguém se movimentou para ligar para Christopher.

E eu precisava falar daquilo com alguém.

E minha família estava ali, atenta e carinhosa ao meu redor.

— Saí com Alika hoje para confirmar a gravidez. Resolvi falar com Christopher quando o teste do laboratório deu positivo e chamei ele lá para casa — contei. Ao falar o nome do seu amigo, Michael se afastou da cama, recostando-se na cadeira, parecendo exausto. — Quando eu cheguei em casa, ele já estava lá. Abriu meu uísque e estava bêbado. Me disse umas coisas ruins e eu mandei ele dormir no sofá porque não queria conversar com ele assim. Eu ia embora pro meu quarto e ele tacou o copo em mim. Acertou na parede. — as palavras saíram como torrentes raivosas. Hope se aproximou, ficando ao lado de tia Liah. As duas estavam acariciando meu braço esquerdo enquanto o toque de Michael em minha mão direita era distante e distraído. — Nós discutimos e ele me segurou. Quando eu me desvencilhei dele, pisei em um caco de vidro e caí no chão. Me arrastei pra longe dele e mandei ele ir embora. Ameacei ele com um caco de vidro e então ele foi. Aí percebi que estava sangrando e pensei... Pensei que ia perder ele — apertei minhas mãos contra a barriga. — Então liguei para Dave porque ele morava mais perto.

Olhei para Michael e sua expressão se alterou por completo. Os olhos estavam mais fechados, as bochechas proeminentes e os lábios se apertavam em uma única linha fina, além da mão estar apertando a minha com força.

— Eu vou matar Christopher — anunciou.

— Michael... — tentei alertar.

— Você não vai fazer nada — tia Liah ralhou ao mesmo tempo.

— Eu ajudo — Hope ofereceu.

Michael estava de pé, ignorando a mim e a tia Liah, pronto para arrumar confusão com Christopher.

— Michael, ele estava bêbado — lembrei-o. — E deve estar ainda. Não vai adiantar nada fazer qualquer coi...

A porta do quarto se abriu e um homem entrou, vestido inteiro de branco, barba branca cortada curta, acompanhado de um outro rapaz vestido de azul que correu para o meu acesso.

— Olá — o médico sorriu enquanto o rapaz verificava meu acesso e ambos ignoravam tia Liah e Michael de pé, com a cara vermelha. — Sou o doutor Carmel. Como está a senhorita?

Olhei para Michael e ele respirou fundo, voltando a se sentar, então tia Liah fez o mesmo. O enfermeiro terminou a troca que estava fazendo e se retirou.

— Um pouco enjoada. Tonta — respondi.

— Isso é normal, você perdeu uma quantidade considerável de sangue — explicou. — Não precisou receber, mas um pouco de cuidado nos próximos dias, além de não poder pisar no chão por algum tempo, pelo menos até removemos os pontos — ele levantou a coberta um pouco e deu uma olhada no meu pé. Alguém tinha lavado o ferimento, mas estava quase todo enfaixado. — Você teve um sangramento gestacional moderado, o que já nos deixa alerta porque a gravidez gemelar já é considerada de risco, com um sintoma claro já no começo...

— Gravidez o quê? — foi tia Liah que o interrompeu.

Eu escutei também, mas não estava processando.

— Gemelar — o médico repetiu, olhando para mim com um sorriso de que estava feliz por me dar aquela notícia. — É uma gravidez de gêmeos bivitelinos. Fizemos um ultrassom um pouco depois de você apagar e estão saudáveis, os dois. Calculamos que são seis semanas de gestação.

Capítulo 18

Minhas Lágrimas Ricocheteiam

Eu não tinha em mim o necessário para ir em paz
Então os navios de guerra vão afundar sob as ondas
Você teve que que me matar, mas isso te matou da mesma maneira
Amaldiçoando o meu nome, desejando que eu tivesse ficado
Você se tornou seus piores medos
E você está fudindo da culpa, bêbado nessa dor
Riscando os bons anos
Amaldiçoando o meu nome, desejando que eu tivesse ficado
Veja como minhas lágrimas ricocheteiam

Houve o momento de comoção em que o médico nos deu espaço para comemorar a informação. Hope não parava de repetir "dois sobrinhos", tia Liah não parava de chorar e dizer que minha mãe teria ficado muito feliz e Michael ainda estava tenso, mas exibia um sorriso e se arriscou a dar beijinhos na minha cabeça e na minha barriga.

A comemoração durou até o médico se aproximar da minha cama e olhar a mesma medicação que o enfermeiro acabou de checar.

— Essa é uma gravidez de risco alto, querida — disse, atencioso. — A gravidez de gêmeos em si já é, mas você teve um sangramento moderado e isso pode indicar tendência a problemas na gestação. Minha opinião médica é repouso. Minha sobrinha não vai ficar feliz porque ela é muito sua fã, mas seria prudente você se afastar das apresentações durante a gestação, ficar longe de exercícios físicos, dança e sem aborrecimentos. Também precisa seguir uma dieta rigorosa, você está com sinais de anemia e é isso que estamos tratando no momento, além da sua hidratação. Vamos te segurar por essa noite, mas vou te dar alta amanhã pela manhã, antes de encerrar meu turno.

Pisquei longamente e concordei com a cabeça. Ele se retirou, pedindo que o chamassem se precisássemos de algo.

Eu tinha meus dois braços apertados sobre a minha barriga, nervosa. Ansiosa. Confusa. Eu amava o meu trabalho, lançaríamos um novo álbum no mês seguinte e a turnê já estava agendada...

— Hope — chamei-a.

Minha irmã estava na mesma sintonia que eu e apenas beijou minha mão, curvando-se sobre minha barriga.

— Nem se preocupar com isso — sorriu aberto. — A gente vai se virar sem você. Tudo o que você precisa se preocupar é em ficar bem e trazer essas belezinhas pro mundo pra eu mimar.

— Não deixe Hope dar doces a eles — Mike me alertou. — Ela não sabe o que acontece depois que açúcar bate. É tipo heroína de criança.

Ri baixinho. Tia Liah apertou meu nariz e continuou a acariciar meu cabelo.

— Você devia ir pra casa — sussurrou. Pisquei, virando meu olhar para ela. — Você sempre fica mais calma quando vai pro Brasil. Hope disse que sua casa lá é super tranquila. Talvez seja melhor pra você e pros bebês.

Minha garganta se apertou enquanto eu vislumbrava a possibilidade. Passar alguns meses na casa da areia até a gravidez estar avançada parecia o paraíso. Olhei de volta para minha irmã que apenas concordou com a cabeça, já que sentiu a calmaria do lugar ajudá-la quando vazaram seu vídeo íntimo. Virei-me para Michael e ele estava irritado de novo, mas ao invés de falar algo contra, pontuou:

— Eu vou com você.

Respirei fundo. Ter Michael comigo realmente seria o melhor dos mundos, mas ele tinha uma vida, uma família e não podia deixá-lo abdicar de tudo.

— Você tem Andy e Gabi, Mike. Eu vou ficar bem — murmurei. Haviam mais coisas a dizer, mas Mike negou com a cabeça, cruzando os braços.

— Vou conversar com a Gabi. A gente só está com uns projetos que podem ser resolvidos no remoto — explicou. — Você não pode ficar sozinha e eu não vou deixar. Hope vai estar ocupada e mamãe está tentando conseguir uma cadeira fixa na faculdade. Eu e Gabi só cuidamos do Andy na maior parte do tempo e dá pra manejar todo o resto.

— Mike...

— Não vou discutir, Tish — ele me interrompeu. — Sempre cuidei de você e não vai ser agora que vou te deixar sozinha.

Encarei Michael e ele estava com o olhar decidido. Focado. Ao menos não queria mais matar Christopher por alguns momentos.

— Tudo bem — cedi. — Mas ao menos conversa com Gabi antes de me dar sua decisão final, ok?

Hope jogou-se sobre mim assim que percebeu que a discussão estava acabada, levando tapas de tia Liah no braço e avisos intensos de "cuidado".

— Queria ser eu a ir — choramingou. — Lá é incrível. Eu estava meio deprimida e não aproveitei tanto da última vez.

— Eu vou te ver sempre que te ver assim que o período terminar — tia Liah avisou. — Mas vamos nos falar todo dia.

— Todos os dias — Hope concordou. — E eu vou fazer questão de aumentar a folga quando formos para lá e aí ficaremos todas na sua casa fazendo bagunça.

Sorri e concordei. Ainda me sentia um pouco perdida e sem saber o que fazer, mas daria um jeito.

Com minha família do meu lado, sempre dava.

 ***

Pilhas separadas de roupa estavam acumuladas sobre a minha cama e várias nem eram minhas — foram cedidas por Chelsea, que estava me ajudando a escolher o que seria mais confortável para usar com uma barriga grande de grávida que logo despontaria, ainda mais sendo de gêmeos.

— Vou perder o nascimento do Scott — comentei, chateada.

Ela acenou no ar, como se não importasse. Estávamos arrumando a mala o dia inteiro. Tinha recebido presentes, também. Logo pela manhã, minha casa foi invadida pela minha banda inteira para se despedirem. Precisavam regravar minhas partes e rever algumas das coreografias, já que foi decidido que o melhor a se fazer era me cortar do novo álbum, me deixando apenas como compositora por aquela temporada. Michael e Gabi estavam resolvendo pendências para viajarem comigo, então Andy estava no andar inferior com Dave enquanto tia Liah não retornava com as compras que eu listei para ela.

— Não tem problema — murmurou. — Você precisa se cuidar. Podia ficar por aqui, claro, mas imagino que você precise ficar... Longe.

Parei de dobrar o vestido, sentindo o assunto ficar pesado. Ela não continuou e eu apenas concordei com a cabeça que estava tudo bem.

— Eu não posso nem imaginar como você se sentiu — continuou. Mostrou mais um dia vestidos da sacola que minhas companheiras de banda levaram e concordei com a cabeça, aprovando, antes que ela guardasse do jeito que eu havia lhe ensinado. — Sério. Eu fiquei com medo só de ver como você estava. Foi assustador. Entendo porque você precisa ir. Então tudo bem não estar aqui. Eu vou te mandar fotos do Scott todos os dias.

Sorri e me estiquei na cama para encostar nela, apenas um pequeno toque de agradecimento. Estava em uma posição ruim porque não podia pisar no chão ainda. Tinham cinco dias desde minha noite no hospital e ainda faltavam dois até que eu pudesse retirar os pontos e verificar se conseguia pisar. Depois mais dois dias antes de embarcarmos para o Brasil e cada dia era um sofrimento, medo que Christopher batesse em minha porta.

Michael estava doido para meter a porrada nele, mas pedi que não fizesse porque ele sequer sabia da gravidez e eu planejava que fosse assim até o anúncio oficial da banda saísse. Até então a mídia apenas sabia que eu me acidentei e passei uma noite no hospital, nada mais.

— Acho bom mesmo você me enviar — eu lhe disse, rindo.

Chelsea riu também, mas um pouco desconfortável. Ainda não disse o que queria, podia perceber. A campainha tocou e respirei aliviada, sabendo que a pizza chegou — não era para eu comer porcarias o tempo todo, mas desde que tia Liah estava fora, Michael e Gabi ocupados, era isso ou arriscarmos comermos as gororobas que Dave preparava. Chelsea até gostava, mas meu paladar brasileiro era um pouco mais requintado.

— Acho que você devia falar com ele antes de ir — ela disse rapidamente, sabendo que nosso momento a sós estaria para se encerrar em breve. — Sei que ele te machucou e que vocês não estavam bem antes, mas... Ele não merece saber junto com o mundo todo, sabe? Nem que você mande uma mensagem ou escreva um e-mail. Qualquer coisa.

Encarei Chelsea por um longo momento, ouvindo os passos na escada e a risada estrondosa de Dave enquanto conversava com Andy, se aproximando passo passo.

Tudo o que eu pensava era afastar meus bebês de Christopher porque ele machucou eles. Me machucou. Algo dentro de mim criou um medo quase irracional dele depois daquela noite, quando ele acionou tantos dos meus gatilhos, e vê-lo sair do lugar de meu namorado para pai dos meus bebês me deixou em outro lugar complicado; todos os meus traumas causados por um pai violento com a mãe. E aquilo acabou de explodindo na minha cara.

Mas eu entendia. Era um caso isolado. Chris nunca tinha levantado a mão para mim, sua explosão com o copo era consequência da bebida e o resto todo poderia ser considerado um acidente. Não podia julgá-lo inteiro por um erro, por uma confusão.

Só não queria que ele chegasse perto de mim e dos meus filhos por um tempo. Ao menos até eu conseguir trabalhar minha cabeça ou ele provar que não explodiria mais daquela forma comigo.

Dave entrou no quarto e o cheiro de pizza entranhou no ambiente ao mesmo tempo em que Andy correu e subiu em cima da cama, se jogando sobre mim com suas risadas infantis. Meu sobrinho era lindo, com seus olhinhos de carvão seco iguais os da mãe e cabelos dourados indomados como os do meu irmão, mas seu riso solto e barulhento que era de tio Robert sempre me fazia rir junto.

Acenei para Chelsea abraçando meu sobrinho com força e mordendo sua orelha de brincadeira, fingindo que achei ser um pedaço de pizza e o fazendo rir ainda mais alto.

Chelsea tinha razão. Christopher era complicado, mas merecia mais que saber que seria pai através de uma matéria de fofoca.

Eu só precisava descobrir como fazer isso sem encontrar com ele.

Capítulo 19

Dê um Tempo ao seu Coração

Não quero quebrar seu coração
Quero dar um tempo ao seu coração

Eu sei que você está com medo de ser errado
Como se você fosse cometer um erro

Eu estava com o jatinho particular das The Travellers reservado para mim para os dias após a remoção dos meus pontos e, apesar de ter sido difícil convencer Michael, uma pequena alteração no nosso plano de vôo parecia a coisa certa a se fazer. Então, naquela manhã de final de outono, vesti um bom agasalho e viajei para o norte do país com meu irmão, sua esposa, meu sobrinho e Emilia, que, por insistência dela e de Thomp, me acompanharia durante aquele periodo.

Não conhecia Glasgow direito. Já viajei para lá algumas vezes, mas nunca visitei seus irmãos, já que ele sempre os fazia ir até Londres, mas sabia onde sua mãe morava.

E, se eu não soubesse, Michael saberia.

Rose Williams preferiu se mudar para perto de seus filhos que estudavam em Glasgow depois que ficou viúva. Na época, Chris ainda estava na escola, mas logo se mudou de volta para Londres sem a mãe para entrar na DeLorean.

Mike estacionou o carro em frente a casa azul e branca, bem cuidada e com uma boa coleção de plantas (provavelmente Chris estava certo quando dizia que tínhamos mais coisas em comum do que queríamos admitir) e desligou o motor, virando-se pra mim.

— Tem certeza? — perguntou. — Eu posso ligar pra ele e contar quando estivermos no Brasil.

Neguei com a cabeça.

— Tá tudo bem, Mike — expliquei. — Ela também merece saber de outra maneira.

Ele não concordava, mas me ajudou a sair do carro. Minha pisada ainda estava dolorida, mas o caminho era curto o suficiente para negar sua ajuda e me firmar sozinha com a bengala que Emilia me ofereceu naquela manhã.

Toquei a campainha e segurei a respiração. Ouvi os passos e depois a chave girando na porta. O sorriso dela se desmanchou no momento em que me viu ali.

— Oi, Rose — cumprimentei-a.

— Foster — disse, apenas.

Rose não conseguia pronunciar meu nome e me chamar de Tish parecia muito pessoal para ela. Foster era uma escolha sabia e apropriada.

— Gostaria de conversar com a senhora — aleguei. — Posso entrar?

Ela chegou para o lado, me dando espaço para passar, mas começou a reclamar no mesmo instante:

— Se veio aqui pedir que eu te ajude com Christopher, acho melhor desistir — disse. Então pareceu reparar na minha bengala e franziu o cenho. — O que houve?

A educação inglesa prevaleceu e ela apoiou minha cintura e me ajudou a caminhar até o sofá de sua sala. Podia ver as engrenagens do seu cérebro tentando compreender porquê fiz uma viagem longa para vê-la estando machucada daquela forma.

— Eu quero que você ajude Chris comigo, na verdade — expliquei, assim que consegui tirar meu pé do chão, desencaixando-o da sandália. O olhar dela se fixou no curativo da sola com confusão. — Preciso te contar algumas coisas.

Ela levantou a mão e pediu um momento.

— Antes gostaria de te dizer uma coisa que estou querendo há algum tempo — pediu. Concordei. — Não gostei de você quando te conheci porque achei que você era burra. Não sabia responder nenhuma pergunta que eu te fazia e tive certeza que você queria se aproveitar de Chris, então não gostei. Não queria isso pro meu filho. Uma menina interesseira e fútil que só se interessava na fama dele.

— Eu entendo — murmurei.

Ela me interrompeu.

— Eu assisti sua entrevista. No ano passado. — sabia de qual ela estava falando. — E queria te pedir desculpas. Não posso nem imaginar como foi pra você, tão pequena, passar pelo que passou. Isso não muda o fato de que eu não gostei que Chris tenha trocado a noiva dele por você. Mas... Eu te respeito. E agora entendo porque Chris gosta tanto de você. Acho que até poderia gostar de você com o tempo, mas..

— Nós terminamos — eu lhe interrompi, avisando.

Rose respirou e passou a mão pelos cabelos como se não soubesse o que fazer.

— Eu fiquei sabendo — disse. — Chris disse que vocês discutiram e que ele achava que tinha te machucado. Você passou a noite no hospital?

Ela me encarou e seus olhos eram espelhos dos de Christopher. Fiquei sem fôlego por um momento, admirando o medo brilhando no meio daqueles cristais. Uma mãe que não sabia o que fazer pra ajudar o filho.

Eu achava que conseguia entender.

— Passei — respondi. — Vim conversar com a senhora para te explicar o que houve e para pedir que você dê um recado para Chris porque não quero... não posso falar com ele agora.

E então lhe contei. Fui um pouco mais além do que havia feito com minha família e lhe contei dos flashes que tive da minha infância e como o comportamento dele me lembrou do homem que assassinou minha mãe e como isso estava me assustando. Contei como me machuquei e que pedi ajuda a Dave.

Rose estava transtornada antes mesmo de lhe contar da gravidez.

Abri minha bolsa e lhe entreguei uma pequena sacola. Ela aceitou, um pouco temerosa, e abriu. A roupinha de bebê amarela ainda tinha uma mancha de sangue na perninha porque caiu em cima do rastro de sangue que escorreu do ferimento do meu pé e eu me recusei a lavar, como um lembrete.

— Eu ia dar isso a ele naquela noite — contei-lhe. — Tinha acabado de fazer o exame. Chamei ele pra minha casa pra contar. Não tive a oportunidade. A confusão, o tombo, minha própria mente... eu quase sofri um aborto.

Rose se projetou para frente, as mãos procurando meus pulsos.

— Não sofreu? — perguntou.

Sorri e neguei com a cabeça. Ela respirou, quase aliviada, e soube que era pela culpa que Chris sentiria se tivesse acontecido, mais do que pela alegria de ser avó mais uma vez. Então, alguma chave virou dentro dela e encarou o macacão mais uma vez e o apertou contra si.

— Ele ainda não sabe, sabe? — perguntou.

Neguei.

— Espero que você possa contar por mim, Rose — pedi. — Não posso lidar com Chris agora. Eu... eu me sinto culpada até de me sentir como me sinto por ele depois do que aconteceu. Eu sei. Eu sei que foi um acontecimento atípico. Sei que ele não é assim, mas tudo dentro de mim me diz para correr para longe dele e...

Sua mão voltou até mim, segurando a minha com carinho. Rose perdeu toda sua hostilidade em algum momento daquela conversa.

— Respira — pediu. — Respira fundo.

Nem percebi que estava me atropelando, mas fiz o que ela pediu antes de continuar.

— Estou instável — disse, embora não precisasse. — Já tem algum tempo que me sinto assim, aquela noite foi só o pico da montanha — dei de ombros. — Eu queria ser perfeita, não ter nenhum problema...

— Ninguém é assim, querida.

— Mas sou só uma colcha de remendada tentando sobreviver ao inverno — murmurei. — Não consigo fazer tudo ao mesmo tempo e não posso lidar com Christopher agora, não depois do que aconteceu. Os médicos classificaram minha gravidez como de risco alto e preciso me estabilizar, relaxar e ficar bem. Então... estou indo viajar. Meu irmão vai comigo com a esposa, o filho e tem uma equipe pequena me acompanhando pra cuidar do que for preciso. E logo as notícias vão começar a sair porque vou ser afastada da banda por mais ou menos um ano — o aperto de Rose aumentou um pouco mais e só parte era sobre o que Chris enfrentaria. Havia algo na compaixão dos seus olhos que me dizia que ela entendia o que eu estava fazendo. — E eu vim te pedir para contar para ele antes porque não acho que ele devesse saber de outra maneira. Michael queria contar, mas ele é meu irmão e está com raiva. Thomp também se ofereceu, mas seria parecido com uma reunião de negócios. E isso é pra ser contado com amor. Porque, apesar de tudo que aconteceu, foi feito com amor.

Não percebi que estava chorando até que as lágrimas alcançaram minha boca. Sorri e soltei minha mão de Rose para secá-las, antes de voltar a pegar dois envelopes de dentro da minha bolsa.

Rose se levantou por um momento segurei os envelopes no meu colo, aguardando-a. Ela retornou com um copo de água e um pedaço de papel.

— É meu telefone — explicou, colocando o papel na minha mão após me incentivar a tomar a água. — A partir desse momento, qualquer problema que eu tivesse com você... Vou deixar de lado. Não acho que você seja a mulher que pensei que fosse, de qualquer maneira, mas, sendo mãe dos meus netos, vai ser como minha família. Quero conversar mais com você, conhecer você, entender o porquê meu filho falou tanto de você... E eu me orgulho muito de ser uma avó presente e vou querer saber de cada detalhe da sua gravidez. Meu netinho vai precisar se acostumar com a minha voz.

Ri e concordei com a cabeça. Rose, apesar de todas as implicâncias que tivemos uma com a outra pelos anos, era uma boa mãe para Chris e criou três filhos educados e inteligentes com muito amor e disciplina. Eu queria aquele tipo de devoção para meus filhos e estava bastante satisfeita que ela pudesse estar disposta a me aceitar junto também. Fosse para amenizar o erro de Christopher ou porque aquela conversa sincera mudou algo primordial entre nós duas, não importava. Era bom tê-la jogando a favor dos meus filhos.

— Na verdade... — murmurei, pegando e maior envelope e abrindo. Assim que percebeu que era um exame de imagem, Rose levou uma mão à boca e a outra tentou tirar o papel de minha mão. Estendi as imagens sobre minhas coxas e ela se curvou para frente. — Esse aqui é o seu netinho — eu lhe disse, apontando para um dos pequenos fetos. Rose já tinha soltado uma exclamação antes que meu dedo de movesse para a outra imagem. — E esse aqui é o outro.

Conversamos por mais algum tempo, antes de ela me levar até o carro, onde meu irmão aguardava lendo um livro. Ela me abraçou antes de abrir a porta do carro para mim e me ajudar a entrar. Trocou cumprimentos gentis com Michael, que franziu a testa para nosso envolvimento amistoso.

— Vou conversar com ele e dar um jeito nesse menino — prometeu. — E vou entregar sua carta.

Concordei com a cabeça, agradecida que ela tivesse escutado os meus pedidos, mesmo no meio de toda aquela emoção.

— E eu vou lhe mandar uma mensagem assim que chegar lá — lhe disse, confirmando que também a escutei.

Ela sorriu e nos despedimos.

Michael permaneceu em silêncio por longos minutos, dirigindo de volta ao aeroporto, pensativo.

— Correu tudo bem, entao? — perguntou, por fim.

Minha mão direita saiu de cima da minha barriga até a coxa dele. Suspirei, soprando o ar por um longo momento, como se sempre estivesse segurando aquilo dentro de mim.

— Foi incrível — confessei. — Não poderia ter sido melhor.

Capítulo 20

Adorável

Não é adorável, estar completamente sozinha?
Coração feito de vidro, e a mente feita de pedra
Rasgue-me em pedaços, da pele ao osso
Olá, bem-vindo ao meu lar

As risadas de Andy ecoavam pela praia a cada onda que alcançava seus pés, junto com a voz doce de Gabriella, que apontava para as conchinhas que se acumulavam na areia, cada uma conquistando a atenção do pequeno por apenas alguns segundos antes da nova onda bater em seus pés e arrancar gargalhadas dele, enquanto arrastava as conchas para cima, para o banco de areia, e para baixo, para além mar.

O cheiro da primavera no hemisfério sul era diferente, tinha mais a ver com o verde intenso do que a polarização. Ali, no meu pequeno pedaço de mata Atlântida quase intocada, eram gotinhas de sal marinho, vento campestre e coco. Meu cheiro favorito no mundo todo.

Senti a movimentação do meu lado quando Michael se jogou contra a canga forrada na areia por Gabriella, para que eu pudesse ficar ali sem deixar areia entrar no meu curativo. Ele me estendeu o suco preparado por Maria, que estava recebendo instruções de Emilia sobre todas as recomendações dos médicos que cuidavam das The Travellers sobre minha gravidez e alimentação.

— Sua casa é realmente muito linda — Michael comentou. — Agora entendi porque você sempre arruma uma desculpa pra vir pra cá.

Ri baixinho. Chegáramos há apenas duas horas. As malas estavam abandonadas em algum lugar da casa sem que eu me importasse; Maria ainda estava terminando de arrumar os quartos, a aquisição de Emilia não estava em nossos planos e havia algo sobre receber uma equipe para registrar algum tipo de material para que as pessoas não achassem que sumi e todas as visitas que com certeza apareceriam em algum momento. Emilia estava acompanhando e auxiliando a mulher, as duas em posse de um bom tradutor automático pra ajudá-las com qualquer mal entendido que pudesse acontecer.

— E ainda assim não venho o suficiente — aleguei. Andy agora tentava salvar uma conchinha da onda e estava com a calça toda molhada de água do mar, dando ainda mais cor aos olhos brilhantes do meu irmão, inundados de amor. — Eu amo esse lugar. Queria nunca ter que sair daqui, mas... Eu também amo o meu trabalho. E amo vocês todos. Então...

— Então você arquitetou um plano pra engravidar de gêmeos e conseguir férias — meu irmão me acusou, arrancando uma gargalhada minha. — Parece que tudo correu bem.

Eu deixei que ele me abraçasse. Escorreguei minha cabeça até seu ombro e continuei a beber meu suco.

— Não tanto quanto o planejado.

Nunca levei Chris até a casa da areia. Sempre que podia fugir até lá, ele estava ocupado com algo, então comecei a pensar que deveria guardar aquilo para um momento especial.

A experiência da gravidez parecia incompleta sem ele ali.

Michael olhou para mim e depois virou o rosto para o horizonte, enquanto eu admirava Andy dar conchinhas para a mãe proteger do mar.

— Ele já sabe — ele disse, o laranja do pôr do sol começando a pintar o céu e o mar e brilhando nos cabelos dourados de meu irmão e meu sobrinho. — Meu celular não parou de tocar desde que liguei.

Acenei com a cabeça. Meu novo celular estava em posse de Emilia para que ela filtrasse o que chegava para mim. Tudo o que eu menos precisava era estar distraída em meu celular e acabar lendo algo que me fizesse mal, então pedi para ela que cuidasse de tudo.

— Não posso pensar nele agora — tentei me convencer. — Preciso pensar em mim e nos meus bebês.

Mike beijou o topo da minha cabeça com carinho. A temperatura começava a cair junto com o Sol. Andy estava no colo da mãe agora, apontando para uma gaivota que mergulhou no mar e pegou um peixe, fazendo o pequeno bater palminhas.

— E precisa descansar — ele beijou minha cabeça. — Acho melhor irmos comer algo e descansar, não? Emilia comentou algo sobre você gravar um vídeo pra anunciar seu afastamento amanhã. Acho que eles estão querendo fazer um espetáculo disso.

Mike torceu o rosto todo em preocupação, mas apertei os meus braços ao seu redor.

— Eu autorizei, meu lindo — disse-lhe. — Acho que tudo bem. Recebi tanto carinho dos meus fãs... E sei que vão ficar preocupados e felizes e curiosos. Quero dividir isso com eles. Esse momento. Essa felicidade — respirei fundo e me desvencilhei do abraço de meu irmão, que me encarava com carinho, a mesma expressão que dedicava para mim cada vez que percebia o quão diferente me tornei daquela garota que vivia sempre debaixo de sua asa. — Já que eu não vou poder dividir com ele porque ele é um idiota, vou compartilhar como mundo inteiro.

Michael soltou uma risada anasalada e abriu os braços para Andy que correu em sua direção e se jogou contra ele.

Os dias na casa da areia se passavam com preguiça. Aos poucos, fui tomando confiança para caminhar na areia fofa até o final da praia que ficava em frente de casa, mantendo o portão fechado para Andy não sair correndo para o mar em uma distração de alguém.

Maria e o marido não moravam mais na ilha e faziam a manutenção apenas algumas vezes no mês e, embora tivessem se oferecido para permanecer por perto, ficou combinado que eles continuariam com a mesma frequência da manutenção. Emilia, a pequena equipe que montou pra me acompanhar e a enfermeira dedicada que Michael exigiu por estarmos em um lugar remoto, ocuparam a segunda casa, apesar de ser menor e um pouco mais remota na ilha.

Foi quando, finalmente, me prepararam para aparecer em uma chamada de vídeo diretamente em um programa em que minhas companheiras de banda cantariam o primeiro single pela primeira vez, ao mesmo tempo que lançaram nas plataformas virtuais.

— Você precisa ficar calma... — Michael pediu, preocupado, embora eu estivesse tranquila.

Fiz apenas um legal para ele enquanto a cabeleireira contratada terminava de fazer os últimos ajustes.

Como o tempo estava firme, preferimos gravar na praia porque era o lugar que eu mais passava tempo e o fundo das árvores contrastava de um jeito quase perfeito com a blusa estilo ciganinha amarela que vestia, larga o suficiente para esconder que minha barriga não estava mais completamente plana.

O maquinário estava posicionado afrente de mim e uma parte da mobília da piscina foi arrastada até ali, a cadeira, onde estava sentada, e a mesinha com um pouco de água, suco e biscoitinhos, caso a entrevista fosse demorada. Duas telas estavam viradas para mim, além da câmera, uma era um teleprompter com um texto ensaiado sobre o meu anúncio, embora eu soubesse quase de cor, ainda era uma boa cola para não esquecer nada na hora da emoção, a outra exibia imagens do estúdio, onde Mary Ann começava o programa ao vivo.

— Nós vamos entrar em trinta — Emilia avisou. Estava com o tablet em que controlava toda a minha vida em suas mãos, minhas próximas consultas agendadas, minhas postagens nas redes sociais e até a ideia que eu lhe dei de lançar músicas e covers enquanto eu estivesse em pausa estava sendo desenvolvido ali. — Michael, você está no enquadramento — avisou para meu irmão, que relutava em se afastar. Sorri para ele, o tranquilizando e ele deu um passo para o lado. — Isso. Perfeito. Dez.

Minhas companheiras já estavam no palco e eu ouvia a introdução da conversa no fone enfiado em meu ouvido, mas o grito de Gabriella ecoou naquele momento, chamando por Andy e virei o rosto em direção à casa. Entramos no ar no momento em que eu estava distraída e Michael passava na minha frente para ir checar o que aconteceu. Emilia quase enfartou, mas acenei para a câmera, empurrando a preocupação para trás da mente.

— Oi, gente! — disse. Emilia acenou incansavelmente até eu entender. — Sim. Sim. Já estou melhor. Quase andando.

Minha noite no hospital foi noticiada como o caco de vidro e os pontos, apenas. Para todo mundo, minha ausência era a recuperação do ferimento. Ao menos com as informações que ainda tinham.

"Ai, meu Deus, o Michael não se controla. Ele tá pegando muito no seu pé?" Hope perguntou.

"Olha como ela é ridícula exibindo essa praia pra gente que tem que trabalhar" Piper reclamou.

— Pip, você cortou o cabelo? — perguntei. Ela começou a balançar as madeixas que agora estavam acima do ombro. — Ficou ótimo! Mike é o Mike, só que tem estado um pouco exagerado nos últimos dias e eu não vou reclamar porque tô adorando ser mimada — Olhei para o lado para ver meu irmão surgir e parar no portão com Andy em seu colo, coçando os olhinhos molhados pelas lágrimas. — Tudo bem? Machucou? — perguntei. Emilia fez um Ok com a mão, mas pediu calma. A audiência adorava as entrevistas leves e familiares, mas não podíamos perder o foco.

"Quem machucou?" Mary Ann perguntou, mas espelhos de frases parecidas ecoavam em meu ouvido.

— Andy está adorando aqui, mas está desenvolvendo um espírito aventureiro que tá enlouquecendo os pais — ri. Mike deixou Andy no chão e ele correu em minha direção, ainda um pouco choroso. Me curvei para frente e sequei seus olhinhos. — Fez dodói? — Perguntei. — Ele me mostrou um pequeno ralado em seu cotovelo e dei um beijinho. Apontei para a tela abaixo da câmera. — Ali a tia Hope. Dá tchau pra ela.

Ele olhou para a tela, mas também olhou para a câmera e os aparatos e apertou minha perna em um abraço inseguro. E ainda deu um tchau tímido pra Hope.

"Juro que ele cresceu uns dez centímetros desde que eu o vi pela última vez" Hope garantiu, acenando de volta.

Emilia chamou por Andy, que aceitou ir até ela. Ela o pegou no colo e passou para Michael, que já estava por perto de novo, mas se afastou para Andy não atrapalhar a entrevista. Acompanhei os dois enquanto ouvia Mary Ann introduzir o assunto da minha ausência.

"E me falaram que vocês tem um anúncio importante porque esse álbum vai ser um pouquinho diferente" ela completou.

"É verdade!" Alika tomou a frente. "Nós estamos querendo compartilhar isso com vocês há algum tempo, mas... vamos contar hoje".

"Tisha vai contar, na verdade" Hye riu. "Hoje ela é a grande estrela do show"

"Mas é só hoje" Pip cortou. "É bom ela não se acostumar"

Soltei uma gargalhada alta. Se tinha algo que me fazia falta era a dinâmica das minhas companheiras de banda. Saber que estaria distante por um período, mesmo que fosse necessário, era escruciante.

"Estou ficando curiosa..." Mary Ann riu. "E preocupada. Isso tem a ver com seu acidente na semana passada, Tish?"

— Em parte tem — concordei. Emilia fez o sinal e o teleprompter começou a exibir as palavras que eu precisava dizer, mas ignorei a maioria. — Olha... A minha família sempre foi sobre arte e música e, com a The Travellers, criei uma segunda família, tão entrelaçada quanto a primeira e com milhares de membros no mundo todo. Todos os nossos fãs, todo mundo que ouve e curte nossa música, são pequenos pedaços dessa família que a gente tem cultivado nos últimos três anos e preciso dizer que meu coração está em pedaços ao dizer que vou precisar me ausentar por essa próxima fase. Nesse álbum e na próxima turnê, não estarei presente. Então Piper tem razão, só vou ser a estrela do show hoje e depois vai demorar um tempo até que eu seja de novo.

Emilia estava fazendo legal com as duas mãos, o tablet enfiado embaixo do braço.

A expressão de Mary Ann era impagável. Thomp não devia ter autorizado ninguém a contar nada pra ela para ter aquele choque em frente às câmeras. Os benefícios do programa ao vivo.

"Meu Deus, como assim? Você vai trabalhar em um projeto solo? Você se machucou tanto assim?" Ela não sabia nem o que perguntar e era uma das apresentadoras mais experientes do Reino Unido.

— Não vou ter um projeto solo, nem penso nisso — afirmei, porque sabia que aquele era um boato que sempre corria solto por sites e revistas de fofoca. — É tudo por um bom motivo. Hoje tenho o prazer de informar a vocês que a família Foster vai crescer um pouco mais no segundo trimestre do ano que vem.

Hope estourou confetes no estúdio naquele momento e foi um imagem engraçada, principalmente quando um dos confetes caiu na boca aberta de Mary Ann.

— Caramba, parabéns! Vocês devem estar explodindo de felicidade, como Hope acabou de demonstrar no nosso palco — Seu jogo de cintura estava voltado ao lugar junto com seu profissionalismo. — Então você escolheu curtir a gravidez e maternidade antes de voltar?

Alguém devia ter alertado para não citar Christopher porque senti que ela estava se coçando para falar dele, mas respeitou.

— Calma — pedi. — Ainda não terminei de contar — ri. — Depois que Hope me encurralou com um teste de farmácia e Alika me levou para fazer um exame de laboratório, eu tive aquele pequeno acidente na minha casa... Quando pisei no caco de vidro, caí no chão e tombos desse porte no começo da gravidez são perigosos, então tive problemas... No hospital, depois dos exames, acabei descobrindo que são dois — levei a mão a barriga, acariciando. — Gêmeos — pontuei, para reforçar. — E, infelizmente, devido a esse tombo e ao espaço de coliving sendo construído na minha barriga, é uma gestação complicada, então minhas férias foram forçadas e bem justificadas. Por isso, estou curtindo um pouco de Sol e praia enquanto essas mocinhas aí vão ter suor escorrendo pela bunda — brinquei, arrancando risadas.

O resto da entrevista foi leve, cheio de parabenizações, cuidado e saudades. Fiquei em espera enquanto as meninas se apresentaram e fiz comentários empolgados antes de encerrar.

Recostei-me na cadeira, aliviada. Emilia aproveitou o cenário para algumas fotos e microvideos antes de me liberar, entregando meu celular pela primeira vez nos últimos três dias.

— Você deveria dar o número de Michael para Rose — sugeriu. — Ela pergunta de você todo dia, tenho enviado fotos e conversado com ela, mas ela continua querendo falar com você.

Concordei com a cabeça. Rose estava mais próxima do que poderia imaginar e estava se esforçando em criar uma relação comigo como disse que faria. Passei o olho pra sua conversa e além de perguntas e conselhos, havia algumas menções a Christopher. Em uma delas, pedia que eu considerasse uma conversa com ele porque estava muito arrependido. Respondi aquela mensagem primeiro.

"Oi, Rose, por enquanto ainda não acho uma boa ideia, mas prometo que vou considerar".

Não iria considerar por um bom tempo, na verdade. Sabia que Christopher também estava tentando contato através de Mike, mas ele sequer mencionava. Só me passava os recados de nossa família e nossos amigos.

Após isso, enviei o contato de Michael e avisei que era mais fácil me encontrar no número dele porque o meu ficava com Emilia.

Estava para bloquear o aparelho para evitar olhar alguma notificação indesejada quando Rose começou a digitar uma resposta.

"Tá bom, filha! Acabei de te ver no programa, está linda. Ficando bochechuda, já dá pra ver!"

Mandou algumas risadinhas depois que me fizeram rir junto.

"Posso ligar para esse número e falar com você, então? Quero saber detalhes, se tá tudo bem, como estão as coisa..."

Sorri. Se uma coisa boa saiu daquela confusão toda era a aproximação de Rose. Deixar aqueles velhos preconceitos para trás e criar uma ligação. Talvez fosse tarde para ela se tornar minha sogra, mas seria a avó dos meus filhos e queria poder contar com ela.

Conversei mais um pouco por mensagens com Rose antes de começar a desmontar a produção feita em mim para vestir minhas roupas confortáveis e relaxar.

Capítulo 21

Perder Você para me Amar

Você prometeu o mundo e eu acreditei
Eu te coloquei em primeiro lugar e você adorou
Colocou fogo em minha floresta, e deixou queimar

Os dias que se seguiram após a entrevista foram calmos para mim, mas intensos para Emilia. Vários lugares entrarem em contato para agendar entrevistas, mas aceitamos apenas um dos programas principais da Esfera, emissora brasileira. Eu tinha certeza que haviam muitos boatos sobre meu término com Chris e que estavam considerando se minha entrada no hospital realmente foi causada por um acidente, mas pouca coisa chegou para mim porque minha única fonte era Gabriella e só quando eu insistia.

Meus amigos brasileiros também estavam atrás de mim, querendo falar, me visitar, mandar presentes. Capitu fez questão de não ouvir nada do que Emilia falou e apareceu dois dias antes do combinado com um grupo de cinco dançarinas que eram da equipe antiga e tinham convivido comigo.

— Mulher... — Capitu me puxou para um cantinho. — Cade seu namorado? Ele te largou? Tenho que meter a porrada nele?

Abracei minha antiga chefe e amiga de longa data. Capitu me preparou para aquele mundo de fama e música antes mesmo que eu soubesse que era o que queria; e ela sempre dizia que eu chegaria lá, mesmo que não quisesse que eu saísse de sua asa.

— Não precisa bater em ninguém — acalmei-a. — A gente estava discutindo muito e eu preferi me afastar pela saúde dos bebês, isso é tudo.

Capitu não acreditou em mim. Antes de ir embora, peguei-a tentando subornar meu irmão para obter informações sobre Christopher, o que rendeu uma discussão ciumenta entre ele e Gabriella no final do dia.

Quando não recebia visitas de Leo, Maria e as crianças, meus colegas das faculdades que trabalhavam na ONG e alguns vizinhos, me enfiava na coisa que mantinha minha sanidade no lugar: a música. A minha pilha de composições só aumentou e Michael adorava sentar comigo na varanda da frente de casa com um violão e me acompanhar nas melodias. Muitas daquelas sessões eram gravadas, mas em um tom descontraído de quem estava convivendo no mesmo ambiente por algumas semanas. Nossa família, Emilia e a equipe de preparação (Lola, a cabeleireira e maquiadora e Marcel, o câmera e fotógrafo) criou uma rotina e intimidade no decorrer dos dias.

A primeira bateria de exames chegou e Gabriella resolveu me acompanhar no lugar de Michael.

— Sou perfeitamente capaz de acompanhar sua irmã em consultas enquanto você fica em casa com Andy — ela alegou, quando ele não pareceu muito feliz em me deixar, mesmo que por algumas horas. — Sem contar que podemos fazer comprinhas. As roupas da Tish estão começando a não caber.

E, embora Lola tivesse se oferecido para olhar Andy e Emilia alegasse que poderia encomendar qualquer coisa que quiséssemos, Michael achou melhor não contrariar Gabi.

Então partimos em quatro, Gabi, Emilia, que nunca me deixava, Marcel, que fez uma lista de lugares próximos em que eu poderia fotografar, e eu.

— Eu sei que você não reclama — Gabriella comentou, enquanto ainda estávamos no barco, — mas sei que ele te sufoca. É bonitinho de ver, sempre achei linda a preocupação dele com as irmãs, principalmente com você.

Eu ri. O porto do continente não ficava muito longe, quinze minutos de lancha e ele começava a surgir em nosso campo de visão.

— Eu acho que vou ser sempre aquela garotinha assustada pra ele — concordei. — E tudo bem. Porque as vezes eu me faço de durona, mas sou aquela garota ainda.

Gabi me abraçou. O barco começava a desacelerar para conseguir atracar no porto.

— Eu sei. Alguns desafios são mais complicados. Felizmente... — ela levou a mão à minha barriga, que já estava bem ovalada, apesar de apenas três meses. — Eu tenho alguma experiência nisso pra te ajudar. E... — ela abaixou a voz. — Pode ser que eu esteja na mesma condição que você.

Eu ia dar um berro, mas ela apontou o indicador na boca, pedindo silêncio, então só sorri e a abracei de volta, tentando não começar a pular.

Gabi me deixou sozinha nos exames para fazer o seu próprio, mas estava lá na hora do ultrassom. Segurei sua mão na mesa de preparação e murmurei, antes que me arrependesse:

— Pode ligar pra ele — falei.

Gabi não teve dúvidas de quem eu falava, mas me deu alguns segundos para desistir antes de discar. Eu não o fiz.

— Pronta? — a médica me perguntou. Pedi um momento e ela aguardou, nós duas olhando pra Gabriella.

— Não fala nada, sim? — Gabi pediu. — É só pra você acompanhar.

Ela virou a câmera para a o monitor e eu acenei para a médica, pedindo que ela falasse em inglês, se fosse possível.

Então ela mostrou cada um dos meus bebês e todas as partezinhas perfeitas. Quando seu inglês falhou, eu a ajudei, entre lágrimas, apenas para chorar um pouco mais.

— Na próxima vez, mês que vem, talvez já conseguimos ouvir o coração. E vamos poder ver o sexo também. Você vai querer saber?

— Sim, por favor — chorei. Não que fizesse diferença, mas não ia aguentar esperar até o nascimento.

— Então, ótimo — ela sorriu. — Nós vamos ter uma pequena pausa nos feriados, então vou sugerir seu retorno lá pro dia cinco.

Eu tinha algumas fotos novas dos meus bebês quando saí da sala. Emilia foi remarcar as consultas do mês seguinte e eu sabia que ela deveria estar subornando alguém para a médica estar acompanhando cada um dos exames que fiz. Gabi ficou para trás e eu a aguardei mais alguns momentos. Saiu segurando seu próprio envelope.

— E aí? — perguntei.

— Ele agradeceu — ela respondeu.

Não era o que eu esperava ouvir, então dei uma pequena travada. Sacudi a cabeça.

— O resultado...

— Ah... — ela sorriu. — Com sorte, vai ser um só.

Com aquela notícia e com a mudança de hemisfério, o natal daquele ano foi diferente. Hope e tia Liah chegaram assim que o verão começou, subindo a temperatura e aumentando as chuvas e preparamos a casa para nossa época favorita. Sem neve e com muito calor, foi necessário adaptar algumas de nossas tradições, mas a quantidade de comida estava lá. Nossos agregados tomaram uma semana de férias para passar o feriado com suas famílias, deixando a casa para nós seis.

Hope enfiou tantos presentes na minha sala de estar que precisávamos pular sobre eles para checar até a estante da TV. A maioria das etiquetas estavam endereçadas a "sem nome 1", "sem nome 2" e Andy.

— Você realmente está se esforçando em ser a tia favorita, ein? — reclamei. Hope me deu língua antes de abrir um sorrisão. — Se eu pudesse, te dava uns tapas agora mesmo.

— Cai pra dentro, então — Hope me desafiou.

Michael também estava bicudo.

— Sem briga no natal! — tia Liah gritou da cozinha, enquanto terminava de decorar uma das nossas sobremesas favoritas.

— Vocês são muito bobos — Gabi riu. — Dave.

Andy parou de correr ao redor do sofá com seu aviãozinho e olhou pra cara da mãe.

— Tio Dave aqui? — Perguntou.

— Não, querido — ela fez biquinho. Ele fez também — Mas ele te mandou um beijo.

— Beijo, beijo — ele repetiu, mandando beijos no ar, antes de voltar a correr com seu aviãozinho.

Gabi olhou para mim e para Hope com um ar esperto e piscou um olho. Michael se recostou no sofá, rindo também.

— Droga — resmunguei.

— Maldito charme caipira — Hope reclamou.

O presente de Gabi para Michael era um sapatinho. Ele chorou quando abriu. Tia Liah chorou também. Hope reclamou que deveria ter trazido presentes para "sem nome 3" só por garantia, mas era tarde demais.

Depois das comemorações e de Hope e Michael terem bebido toda e qualquer gota de álcool da minha casa, apagando na areia da praia, fizemos uma pequena reunião, onde decidimos que eles podiam dormir por lá, então Gabi se retirou para verificar Andy e descansar e ficamos eu deitada no colo de tia Liah no sofá, assistindo um episódio natalino de uma série de comédia que ela assistia.

Então achei que estava pronta.

— Tudo bem se eu te chamar de mãe? — perguntei, de supetão.

Suas mãos em meu cabelo se pausaram por um momento.

— Querida? — Perguntou-me, em dúvida se ouviu direito.

Virei meu olhar para ela. Seus olhos estavam arregalados e a boca tremia levemente.

— Sempre achei que ia decepcionar minha mãe se tivesse outra mãe — murmurei. — Mas tenho pensado muito sobre a maternidade desde que descobri essas coisinhas crescendo dentro de mim e... Se eu não estivesse aqui, ia querer que meus filhos fossem amados e cuidados como você tem feito comigo todos esses anos. Ia querer que eles tivessem outra mãe. Então acho que finalmente entendi... Que ela ia gostar. E que ficaria feliz por ser você. Então, se estiver tudo bem pra você e você não sentir que está roubando o lugar dela ou sei lá, eu queria te chamar de mãe a partir de agora porque é isso que você tem sido pra mim.

Seus olhos chocolate estavam derretidos em lágrimas brilhantes que desciam pelo canto. Eu olhava para ela e sempre via minha mãe, como teria sido. Mamãe teria aquelas rugas? Aquela pequena mancha na bochecha esquerda?

Minha mãe tinha. Aquela mãe tinha.

Minha mãe me abraçou com força e chorou alto, agarrada a mim, curvada sobre meu corpo. Os personagens da série estavam cantando uma música tradicional natalina, mas o contexto foi esquecida.

— Esse foi o melhor presente de natal que eu já recebi — ela falou, assim que conseguiu me soltar por um momento.

Sequei suas lágrimas com carinho, ignorando completamente as minhas. Diante do tamanho do seu amor, eu não tinha nada a dizer além de:

— Desculpe por não conseguir perceber isso antes.

Ninguém estranhou que eu tivesse começado a chamar tia Liah de mãe. Perguntas não foram feitas e nem sobrancelhas foram levantadas, embora tivesse reparado uma troca de olhares significativa entre Hope e Michael, isso foi tudo.

Logo depois do ano novo, elas foram embora e deixaram meu coração apertadinho. Michael se sentou à beira mar comigo, vários vestígios da nossa festa de virada de ano ainda marcavam a areia e eu estivera tentando recolher, mas não conseguia arrastar as cadeiras para dentro dos meus muros, não com aquela barriga que parecia duplicar de tamanho a cada dia.

— Nós vamos ter que ir logo também — ele pontuou o que eu não queria saber. — Gabi vai querer ir para casa pra contar para a família e eu vou ficar em um impasse porque não posso deixar nenhuma de vocês duas sozinhas.

Segurei a mão de meu irmão com carinho. Desde o dia que eu cheguei em sua casa, ele tentava cuidar de mim com tudo o que tinha. Os anos que passamos afastados por conta da minha discussão com Hope ainda eram um peso debaixo dos seus olhos e a sensação que passava entre nós dois era de quanto tempo tínhamos perdido.

Eu o amava como se ele fosse parte da minha alma e sabia que ele se sentia da mesma forma.

— Você não precisa se preocupar comigo, Mike — abracei-o, enquanto ele balançava a cabeça de um lado para o outro, um sorriso esperto brilhando em seus lábios rosados. — É sério. Você tem a sua vida, as suas coisas... E eu estou bem. Daqui a pouco a Emilia volta, a Talita, a Lola e o Marcel. Não vou ficar sozinha. Tá tudo bem.

Michael revirou os olhos e eu lhe dei um empurrão de ombro, soltando sua risada leve.

— Não é mais fácil você voltar comigo não, cabeça dura? — indagou.

Neguei com a cabeça, contendo meu sorriso de boca fechada. Encarei o mar à minha frente, o horizonte pontuado de algumas outras pequenas ilhas como a minha. O cheiro do mar salgado e a areia entranhada em cada poro da minha pele.

— Eles estão previstos para começo de julho, o que é uma previsão muito otimista porque gêmeos costumam nascer prematuros — expliquei. Olhei para Michael de rabo de olho. Estávamos na ilha há pouco mais de um mês e não queria ter que me movimentar de volta ainda, não tão no começo da gestação. — Queria ficar até março, pelo menos. Passar meu aniversário aqui. O carnaval... faz algum tempo que eu não vejo o carnaval de verdade.

Meu irmão respirou fundo.

— Começo de março? — negociou.

— Podemos começar a conversar.

A verdade era que, quando levamos à discussão para Gabi, assim que minha equipe voltou antes da próxima consulta no continente, ela não estava querendo voltar para a Inglaterra, não. Apesar de estarmos todos descascando (eu, inclusive, que não pegava um bom Sol há algum tempo), ela estava muito feliz e confortável na ilha e Andy estava se divertindo como nunca.

— Março parece bom pra voltar — ela concordou. — Pela estimativa da doutora, estou na 10ª semana agora, um pouco atrás da Tish...

— 15ª — respondi, apenas para pontuar.

— Se os gêmeos são pra julho, o nosso só deve chegar em agosto ou setembro. Voltar em março é bem razoável, Mike — argumentou. — A gente pode fingir que não sabia e talvez eu não tivesse descoberto mesmo se não fosse com a Tish na médica pra tirar a dúvida — riu. — Meus sintomas poderiam ser só um jetlag.

Ficou decidido que manteríamos segredo pelos próximos meses, então nem o resto dos moradores da ilha sabiam que Gabi estava grávida, exceto Emilia, que marcava nossas consultas no hospital, mas ela era tão discreta que jamais nos daria qualquer problema.

Depois de uma noite mal dormida, estava pronta para o ultrassom, para ouvir os batimentos cardíacos dos bebês e verificar o sexo, mas o dia foi intenso com diversos exames e nem todos eram no mesmo lugar. O ultrassom era o último e eu já estava exausta quando voltamos ao hospital principal. Depois de uma conversa de Emilia com a médica, para lhe passar o contato da equipe que atenderia minha gestação no final e pedindo que as informações fossem compiladas para tradução e checagem da equipe inglesa, finalmente partimos para o USG. Gabi e Michael foram primeiro e demorou quase meia hora para que ela saísse de lá, um sorriso maior que o rosto.

— Tudo certo por aqui — me contou.

— E é um só? — brinquei.

— Por Deus, sim — riu. — Minha sogra iria enfartar se fossem dois também. Vai lá. Seu irmão está se acabando de chorar e vai chorar mais um pouco agora — ela brincou, mas também haviam vestígios de lágrimas emocionadas em seu rosto.

Michael estava com o nariz vermelho e inchado quando entre. Ignorei com o máximo da minha força de vontade porque sabia que corria um risco gigantesco de ficar igual a ele e não queria que ele me zoasse de volta.

— Então... — a médica brincou. Seu inglês estava bem melhor que na última consulta. — Vamos lá ver como eles estão, se estão desenvolvendo bem. Vou colocar o gelzinho, tá? Vai querer ligar para o papai de novo?

Houve um segundo de tensão no ar enquanto Michael percebia a pergunta. Olhei para ele e sorri de leve, meneando a cabeça e ele compreendeu tudo. De cara amarrada e nem um pouco feliz, ligou para Christopher.

Eu sabia que Rose deixou Chris sob aviso da data da minha consulta e ele atendeu apenas dois segundos depois da ligação completar.

Isso já significava o mundo.

— A sua sorte — meu irmão lhe disse assim que ligou o viva voz — É que minha irmã parece gostar de você ou você já estava morto a essa altura. Então só fica na sua porque eu posso estar longe, mas tenho agentes que podem agir no meu lugar.

Não achava que Alex fosse se meter em uma briga com Chris e, para falar a verdade, fazia um tempo que não falava com ele, mas Dave? Dave passou duas horas explicando todas as coisas que ele pensou em fazer com Chris depois que teve que me socorrer e levar para o hospital. Se Michael não falou nada com Chris (o que eu duvidava muito), a primeira quinta feira após minha viagem não deveria ter corrido bem.

— Certo... — A doutora Lílian ignorou a ameaça de morte na frente dela e começou a consulta.

Assim que encaixou o doppler, o som preencheu a sala.

— Meu Deus — soprei. — Parece...

Eu não conseguia falar. A emoção veio forte, olhando para o monitor, visualizando as imagens dos dois bebês e ouvindo a sinfonia dessincronizada e forte de dois coraçõezinhos agitados.

"Uma bateria" a voz de Chris preencheu o ambiente e eu comecei a chorar.

Ainda estava chorando ao final do exame, quando ela já avaliara toda a minha barriga e cada pequeno formato dos dois fetos, nos mostrando. Até que finalmente girou até o canto esquerdo e pausou a imagem, desenhando um círculo no monitor.

— Está vendo aqui? — Perguntou. Concordei porque vendo, estava. Entendendo... não. — Esse pequeno aqui é um menino. Está bem claro na imagem. O pequeno do lado direito não dá pra ver. Costuma ser mais complicado em gestações múltiplas, mas não é incomum. Geralmente quando não conseguimos ver... São meninas, mas pode ser menino também. Então... vão ser dois meninos ou um casal.

Fazia muito tempo que não chorava tanto. E ria ao mesmo tempo. Michael também estava chorando e se dignou a me oferecer uma água quando me sentei. Chris também chorava no celular abandonado ao pé da cama.

Eu me arrisquei a pegar. Nos encaramos pela tela, milhares de quilômetros de distância.

"Obrigado" ele disse, apenas.

Michael fez que ia tirar o celular de minhas mãos, mas meneei a cabeça e sorri. A doutora não ligou em se virar de costas para desligar a aparelhagem e nos dar um pouco de privacidade.

— Vamos ter um menino — murmurei, ainda embasbacada com a informação.

Chris sorriu de lado. Não escondia as lágrimas em seus olhos e o quanto estava se contendo para não derrubar todas as suas emoções em cima de mim.

"Você devia..." ele pigarreou, a voz falha pelo choro. "Devia dar o nome do seu tio para ele".

A sugestão me pegou desprevenida. Pensei brevemente sobre nomes, mas queria decidir depois que soubesse mais. O nome de meu tio não entrou em minhas possibilidades vagas, mas parecia... parecia lindo.

— Vai ser o nome do meio dele — decidi. Olhei para Michael que tinha as lágrimas quase escorregando de seu rosto. Era o nome do meio de Michael também. Era uma homenagem dupla. — O nome deles tem que combinar — sorri, lembrando de minhas mães, Liah e Leah. — É uma tradição de família — brinquei e vi Chris rir. Encarei-o mais uma vez e decidi. — mas bou considerar Elliott.

Era o nome do avô materno de Christopher. Chris sempre falava dele com carinho, apesar dos poucos anos que conviveram. A emoção em seu rosto encheu e derramou em grossas lágrimas. Escondeu seus olhos de mim quando abaixou o rosto para secá-las.

"Obrigado" repetiu. A incerteza brilhou em sua expressão antes de voltar a me encarar. "Você está... Você está linda".

O celular foi removido de minhas mãos antes que tivesse a oportunidade de pensar em responder.

— Chega, você não vai flertar com ela, não — Michael resmungou.

"Eu só disse..."

Ele desligou o aparelho, irritado, enfiando-o de volta no bolso da calça. Soltei uma risada nervosa.

— Tão ciumento...

Michael me calou com um olhar de aviso, mas quando alcançamos o porto, estava mais relaxado e rindo. Gabi seguiu na frente com Emilia e com o condutor, enquanto eu insistia que queria um sorvete bem grande antes de ir para casa. Paramos em um carrinho de sorvete que estava parado ao lado do cais e comecei a analisar as opções. Estava pronta para apontar para um simples, de baunilha com casca de chocolate, quando uma movimentação me chamou a atenção.

Um homem atravessando sem se importar com o carro em movimento. O automóvel parou e eu dei um passo para trás.

— Tish?

Ele era velho, estava alguns quilos acima do peso e quase não tinha mais cabelo em sua cabeça, mas a barba era grande, emaranhada e grisalha. Seus olhos escuros estavam fixos em mim e eu sabia exatamente quem era, mesmo que não o visse há quase vinte anos... Porque seus olhos eram exatamente os mesmos que eu encarava no espelho todos os dias.

— Não quero mais o sorvete — eu disse, robótica. — Vamos embora agora.

Tinha quase certeza que as palavras saíram em português, mas Michael entendeu as palavras, fosse por ter aprendido comigo ou fosse por ter se acostumado um pouco mais com a língua nas últimas semanas, com minhas conversas com Maria e Geraldo e algumas programações na TV.

Ele me abraçou pela cintura e me empurrou pelo caminho para o cais sem perguntar nada, mas seu olhar ficou atento, procurando o que derrubou meu humor. Senti quando seu corpo enrijeceu e sua mão ficou mais urgente ao me apressar. Como ele soube, nunca descobri. Talvez fosse aquela ligação mágica entre nossas almas que fazia com que nos compreendêssemos sem palavras.

Ele me colocou de volta no barco e pediu que Emilia encomendasse sorvetes em seu próximo pedido ao mercado. E passou o resto do dia ao meu lado, grudado, como se fosse um guarda real, pronto para me proteger.

Quando me sentei no chão da cozinha para esfregar, ele arrancou o pano da minha mão e fez ele mesmo, sem dizer uma palavra sequer. Nós dois chorando em silêncio enquanto o resto da casa nos permitia aquele momento de privacidade, acompanhando as tentativas de Andy de dar cambalhotas na areia.

Eu não esperava vê-lo. Não esperava que estivesse naquela cidade, até. Não tinha nenhum suporte ou tática para lidar com aquela rachadura emocional que me jogou de volta aos dias escuros naquela cozinha cheia de moscas.

Tudo o que eu fiz foi controlar minha respiração e evitar o pior para não prejudicar meus bebês.

Mas sabia. Estar tão perto assim do assassino de minha mãe era o aviso que eu precisava. Um lembrete em amarelo néon em minha mente que minha prioridade era cuidar dos meus filhos e não permitir que eles ficassem sozinhos. Que eles nunca encontrassem a mãe deles ensanguentada no chão.

Que eu não podia abaixar a guarda para Chris.

Capítulo 22

O Cientista

A cama está esfriando, você não está aqui
O futuro que nos espera é tão incerto
Mas eu não estou bem até que você me ligue
Aposto que a sorte não estará a nosso favor

Michael era contra nossa participação no carnaval: duas grávidas, um bebê e um senhor ranzinza super-protetor, mas quando Capitu, que iria desfilar, me presenteou com convites para um dos camarotes mais badalados da Sapucaí e eu comecei a gritar feito uma doida, ele não conseguiu impedir, mas me fez jurar que não ficaríamos à noite toda.

Nós ficamos.

Quando Capitu subiu para o camarote depois de desfilar na quarta escola, Andy estava dormindo no colo de Michael apesar do barulho e nós três não conseguíamos desgrudar da ponta da avenida, onde uma nova escola começava a entrar.

Ela veio direto pra mim, envolvendo-me em um abraço apertado de carinho e fazendo uma chuva de novos flashes estourarem em minha cara.

— Ai, olha essa barrigona já — ela sorriu, acariciando a pele que deixei de fora. — Tá se divertindo?

Ela vestiu um vestido vazado por cima da parte simples da fantasia que usou na passarela do samba, que era quase uma pintura corporal com tampões. Era toda pedrarias, saltos e sorrisos em verde e branco, cores da escola que estava pleiteando virar madrinha de bateria, coincidentemente era a mesma que o pessoal do bairro que eu cresci torcia e pela qual eu tinha mais simpatia.

— Como há muito tempo não fazia — respondi, rindo. — Mas eu podia estar autorizada a beber só um pouquinho. Uma pena.

Capitu soltou uma longa risada e olhou para trás, de onde acenavam que ela precisava dar entrevistas e agradar algumas pessoas. Revirou os olhos só para que eu pudesse ver, me arrancando um riso compreensivo.

— Cá entre nós, os britânicos não sabem se divertir, não?

— Ei! — Meu irmão reclamou, atrás de mim. O português dele estava melhorando rapidamente e ele até conseguia manter conversas por algum tempo.

Eu continuava a rir, balançando a cabeça em direção à ele, que traduzia a conversa para Gabi, minha aluna mais difícil, com poucos erros.

— Ninguém se diverte como a gente — respondi.

— Eu concordar — Michael riu, se atropelando na conjugação de verbo, como sempre.

Quando voltamos para a ilha, sentia que toda a minha energia estava de volta e pronta pra explodir com as promessas para a semana seguinte, meu aniversário e o show das The Travelers no Rio. Consegui uma autorização médica especial para uma pequena apresentação acapella, se quisesse, então o plano era aproveitar as meninas na minha casa pelos cinco dias antes do show e dar uma ensaiadinha ou outra.

Na manhã do dia em que completaria 25 anos, acordei com um monte de panelas batendo quando a minha banda invadiu meu quarto para dar os parabéns. Quase morri de susto.

— Eu tava morrendo de saudade! — berrei entre os parabéns. Demorei um pouco até perceber que dissera as palavras em português e só Alika tinha reagido às palavras, se jogando em cima de mim para um abraço, enquanto Hope me olhava com dúvida e Hye e Piper franziam a testa em confusão. Precisei repetir em inglês até que estivéssemos as cinco abraçadas.

Michael entrou bem naquele momento, segurando um bolo de aniversário, seguido por Gabi, toda a equipe que estava nos acompanhando na ilha, Thomp, Karen, mamãe e, para a minha surpresa, Rose, Alex, Dave, Chelsy e o pequeno Scott, que estava com apenas um mês e meio de idade e ficou com a mãe na soleira da porta, protegendo suas orelhinhas.

Eu não conseguia parar de chorar.

— É seu aniversário, é um dia feliz — Dave resmungou, me dando um cutucão e mordendo minha bochecha. A paternidade não lhe deu nenhum juízo extra.

— Eu tô chorando de feliz, me deixa! — retruquei de volta.

E que as saudades de cada um naquele recinto podiam esperar porque precisava conhecer aquela coisinha especial. Chelsea nem pestanejou em passar o pequeno Scott para meus braços, mas com todo o cuidado. Ele nasceu três semanas antes do tempo, mas já estava forte e com bochechas salientes.

Ri baixinho.

— Desculpa, amiga — disse à ela, arriscando tirar os olhos do bebê por apenas dois segundos. — Ele é mesmo a cara do Dave — ri, dando meu dedo para ele, que agarrou e bocejou, mostrando suas gengivinhas. Os olhos sonolentos daquele cinza liso e límpido estavam em mim, mas ele sequer estranhou meu colo. Era um bom rapazinho.

Devolvi-o à mãe com cuidado.

— Vocês são doidos de terem vindo até aqui tão cedo — murmurei, mas logo acrescentei. — Muito obrigada.

Chelsea me abraçou com os olhos tão marejados quanto os meus, nós duas com cuidado para não sufocar Scott, até que mamãe pegou ele do colo de Chelsy e passou para Dave, que se sentou imediatamente. Bem que ela me disse que o maior medo de Dave era derrubar o bebê.

Um a um, cumprimentei e fui abraçada por todos, que faziam questão de falar comigo e com cada um dos bebês. Rose estava esperando pacientemente por sua vez, mas não tirava os olhos de mim.

— Preciso te contar um segredo — Alex brincou, com um braço ao redor do meu pescoço e outro na minha barriga. Sabia que gravidez era um gatilho para ele, mas não havia nenhum vestígio de tristeza ou dúvida em seus olhos, só felicidade. Arrisquei uma olhadela para Alika, me perguntando se perdi algum capítulo. — Tem uma pilha de presentes pra você lá na sala.

Houve um muxoxo geral porque, aparentemente, era uma surpresa que Alex estragou.

— Jura? — minha voz perdeu o controle, subindo o tom um pouco além da conta. — E são pacotes grandes?

— Não teriam chegado até aqui se viéssemos em um vôo comercial — respondeu.

Ninguém nunca entendia nossas conversas estranhas, mas apenas apertei o pulso de Alex em agradecimento. Só ele poderia pensar que a surpresa talvez me deixasse nervosa. Era um aviso para não me alarmar.

— Então vou ter que vestir algo especial! — respondi. — Bora, gente? Deixa eu me trocar.

Aquela quantidade de gente no meu quarto estava me deixando nervosa, sim. Ao menos todos me conheciam o suficiente para tirar os sapatos antes de transitar pela minha casa.

Um a um, os ocupantes foram sendo arrastados para fora até que Rose fechou a porta com nós duas dentro. Só arrisquei um sorriso em sua direção antes de caminhar até meu guarda-roupa e tirar minha camisola, sem me importar com sua presença e com a seminudez. Rose esperou que eu vestisse a parte de cima do biquíni para se aproximar.

Com cautela, colocou a mão sobre minha barriga, os olhos marejados.

— Sua barriga já está enorme — ela tampou a boca com uma mão, tentando conter a emoção que escorria por suas bochechas. — Ah, querida! — Ela largou as restrições de vez e passou os braços ao redor de mim. Nos aproximamos muito nas últimas semanas e minha mãe e ela também estavam tentando se dar bem. — Fala pra mim, como você está? Está melhor?

Abri um sorriso grande quando ela me soltou, permitindo que procurasse algo para vestir.

— Melhor, sim — respondi. — Alguns dias ruins, outros bons... — dei de ombros, pegando um vestido de amarração em tons de pôr do Sol. — Estou numa semana boa. Hoje parece que vai ser um dia muito bom.

Eu vi quando Rose engoliu a seco. Parei entre o guarda-roupa e a cabeceira da cama, onde estava meu óculos de Sol, temerosa pelo que a deixava desconfortável.

— Mesmo se Christopher aparecer? — perguntou, por fim.

A pergunta fez meu coração acelerar e, inconscientemente, levei as mãos até minha barriga, mas não sabia dizer se era de um jeito bom ou ruim. Eu sentia falta de Chris, apesar de tudo, e achava que ele merecia mais espaço naquela gravidez do que eu estava disposta a fornecer, porém ainda era dominada pelo medo, pelas memórias e traumas entranhados debaixo da minha pele.

Uma parte de mim já começava a tremer só com a palavra "pai". Aquela irracionalidade traumática que escutava qualquer coisa referente ao "pai dos meus filhos" e achava que precisava protegê-los.

— Ele está aqui? — perguntei.

Minha voz estava suave, quase esperançosa. Rose percebeu e sorriu.

— Na sua ilha? Não — respondeu.

Suspirei. Minha cabeça pensou com a velocidade das informações que brotavam a cada segundo. Queria sentar sozinha à beira-mar e dizer pros meus bebês que o papai estava perto. Queria entrar na pequena mata preservada da ilha e me esconder para que não nos encontrássemos.

— Então ele pode esperar até amanhã para aparecer? — perguntei, delicada.

Rose acenou com a cabeça.

— Claro.

Comecei a abrir meus presentes enquanto comia um sanduíche preparado por minha mãe. Eles variavam de livros, peças de roupa, utilitários de organização e até presentes para as crianças. Havia alguns apetrechos eletrônicos que Hope jurou me ensinar a usar.

Não podia reclamar da generosidade da minha família.

Minha família.

A memória do encontro no porto ainda estava fresca em minha mente, enquanto eu evitava com todas as forças passear pelos arredores do porto no continente por medo de encontrá-lo de novo, mas, apesar disso, conseguia entender que o mundo se moveu para me deixar sozinha e eu fui forte o suficiente para me recusar a me fechar, escolhendo cada uma daquelas pessoas pra mim.

Minha família era grande e me amava. Era tudo o que eu poderia querer.

O ramo brasileiro dessa grande árvore genealógica sem sentido começou a chegar um pouco antes do meio-dia porque alguém inventou que minha festa quase surpresa era um churrasco (provavelmente ideia de Dave).

Quando o Sol estava quase se pondo, lá pelas 19h, o pessoal que não ficaria na ilha começou a se mover para ir embora. Tentei hospedar o máximo de pessoas; Hope ficaria comigo em meu quarto; Gabi, Mike e Andy permaneceriam no quarto em que estavam. Os outros dois quartos da casa ficariam com mamãe e Rose em um, Dave, Chelsy e Scott em outro, para que eles não pegassem o vento frio da viagem de barco. Na casa auxiliar, só haviam dois quartos. Um era dividido por Talita, Emilia e Lola, o outro era apenas de Marcel e ele resolveu ceder para as minhas companheiras de banda remanescentes. Ainda ofereci o sofá para Alex, mas ele preferiu retornar ao continente, prometendo que estaria de volta na primeira hora da manhã. Tentei convencer Thomp a ficar, também, embora não soubesse onde o colocaria, sem sucesso. Então, a festa começou a perder um pouco da força depois que duas lanchas partiram, cheias de pessoas indo embora e quem ficou começou a se organizar para saber onde ia ficar.

Não conseguia parar de sorrir. Andava de um lado para o outro, ajustando todo mundo, me intrometendo.

— Chega — Hope se cansou. — Vai dar uma volta, estressadinha. A gente sabe se virar.

Mesmo com a falta de paciência da minha irmã à minha agitação, meu sorriso não diminuiu. Queria desacelerar porque aquela agitação não devia fazer bem para os bebês, então desci pela àrea da piscina, atravessei o portão até a faixa de areia, onde os vestígios da festa estavam intensos, se arrastando até o cais, na extremidade direita da praia. Comecei a refletir se deveria acender o refletor da praia e começar a faxina quando vi a movimentação.

Emilia estava pisando em um cigarro e soltando fumaça pela boca aos poucos, como se quisesse esconder aquele hábito de mim. Já senti o cheiro de cigarro nela antes, mas nenhuma vez nos últimos meses.

Andei até onde ela estava sentada e me acomodei ao seu lado.

— Poucas vezes te vi tão feliz quanto hoje — Emilia sorriu pra mim. — É bom te ver relaxar. Você parece sempre pronta pra enfiar uma ponta de caneta no pescoço de alguém.

Soltei uma risada nervosa pelo nariz. Não conseguia negar que ficava tensa na maior parte do tempo, fosse porque sempre esperava o pior de todas as situações ou porque estava batalhando mentalmente contra alguma coisa, mas não tinha me sentado ali para falar sobre mim.

— Poucas vezes te vi tão chateada — empurrei-a com o ombro, só de leve. — Tá tudo bem?

Seus olhos eram de um tom de cinza puro e brilhante, com leves riscos amarelados ao redor e me encaravam como se estivessem me avaliando. O barulho de uma lancha distante sobrepunha aos sons da água quebrando contra a areia e as pedras da ilha. Demorou um longo momento até que ela passasse as mãos pelo seu cabelo solto, o loiro ficou mais claro depois daquela temporada no Sol do Rio de Janeiro, e soltasse o ar com força.

— É a Lilin — disse. — As coisas não deram certo e eu sei que ela já está em outra, mas eu...

Ela não precisava dizer mais nada. Hye era minha amiga e eu sabia muito bem o que estava acontecendo — mais que Emilia, talvez. Era discreta em seus casos porque era de sua personalidade, mas não se continha muito mais além disso. Eu recebia mensagens fofoqueiras das minhas outras companheiras de banda me contando as vezes em que pegavam Hye com uma fã, uma jornalista, alguém da produção... Ela não estava em outra, estava testando sabores agora que não precisava mais se esconder.

Abracei Emilia pelo ombro porque sabia exatamente qual era a sensação. Por poucos segundos, voltei a ser aquela garota assustada que havia acabado de se mudar para um país que não conhecia, mas sentia que era seu lar, ouvindo pela linha telefônica que todo mundo que amava a tinha esquecido; que seu ex a trocou por alguém que lhe jurava não ter nada.

— Você pode ficar comigo e com Hope, se quiser — sugeri, já vendo Emilia abrir a boca para negar. — Ou com o sofá, se preferir. Se achar que vai ficar mais fácil. A gente inventa que você ficou me ajudando em algo e acabou preferindo dormir na casa porque ficou escuro pra pegar a trilha. E amanhã você pode ir para o continente, se achar melhor.

Ela negou com a cabeça imediatamente.

— Vou ter muito trabalho com vocês todas aqui — riu. — Não vou te deixar nem por um segundo. Mas talvez eu aceite o sofá por hoje. É difícil... é difícil ficar tão perto dela e fingir que não tem nada acontecendo comigo.

Eu iria lhe responder que sabia exatamente como estava se sentindo, mas, naquele momento, percebi que a lancha não passou direto por nós, mas se encaminhava para o cais da ilha e franzi a testa. Senti a mão de Emilia em minha cintura, um lembrete de que estava ali.

Achava que ela soube o que estava acontecendo antes de mim.

Reconheci os movimentos do homem que descia da lancha antes de realmente vê-lo. Comecei a me levantar, mas a barriga me atrapalhou, então Emilia se pôs de pé primeiro e me ajudou. Deu um beijo em minha bochecha assim que consegui limpar um pouco de areia do meu vestido de amarração e levantei o olhar para identificar as pequenas coisas que me faziam perder o ar. As mãos calejadas se retorcendo em nervosismo a cada passo que dava. Os fios rebeldes de barba um pouco maiores que o de costume, crescendo para todas as direções. As olheiras escuras nas bolsas inchadas embaixo daqueles olhos que sempre foram luz, mas que estavam apagados, em um azul escuro que eu quase não reconhecia.

— Vou avisar sua família que ele está aqui — Emilia me avisou.

Virei apenas meu queixo para ela antes de concordar, incapaz de tirar os olhos de Christopher. Seus passos subindo os degraus de pedra até a casa ecoaram até que Chris parou à minha frente, alguns passos de distância de mim.

Eu já tinha visto Chris daquele jeito uma vez. Dias antes da minha viagem para o Brasil, quando ele percebeu que errou, foi atrás de mim para pedir perdão e dizer que me amava. Dessa vez, porém, parecia pior. Conseguia ver a culpa corroendo cada pedacinho do seu corpo, engolindo seu olhar e a curva travessa que sempre mantinha em sua boca.

— Eu pedi para você esperar até amanhã — murmurei.

Minha voz saiu mais firme do que imaginava, a tremedeira em meu corpo não a afetou. Prendi minhas mãos uma na outra para evitar demonstrar o nervosismo.

— Você sabe que eu tenho sido paciente — disse, a voz grave e rouca arrebentando as terminações nervosas do meu corpo e provocando arrepios. — Eu te dei todo tempo e espaço, mas, Tish...

Ele deu um passo à frente e respondi dando um passo para trás, o que lhe congelou no lugar.

— O que você quer? — rosnei.

— O que eu...? — repetiu, incrédulo. — O que você acha que eu quero? O que você está pensando...?

Ele não tentou vestir uma máscara como a que eu carregava em meu rosto. Era todo vulnerabilidades e sofrimentos, deixava que eu visse o medo em seu olhar, a tremedeira de desespero em sua boca, o arrependimento na forma em que se curvava para frente.

Senti um empurrão de dentro para fora em minha barriga e quase pulei, achando que havia algo errado, mas... coloquei as mãos em cima do ventre, acariciando a protuberância. Eles estavam apenas sentindo a adrenalina em meu corpo e reagindo com pequenos chutes.

Chris acompanhou o movimento e abriu a boca, soltando um suspiro choroso que retorceu minha alma em vê-lo assim. Não me surpreendi em ver o acúmulo de lágrimas em seus olhos.

— Há quanto tempo você sabia? — perguntou.

Vi movimentação na área da piscina pelo portão aberto e apenas levantei a mão, pedindo calma ao ver o lampejo de dourado do cabelo do meu irmão no momento em que cruzou o portão. Ele parou, respeitando, e ainda estendeu a mão para conter Hope, que vinha atrás.

Uma pequena plateia começava a se formar quando virei meu rosto em direção a eles e, com um suspiro, mamãe botou todo mundo pra dentro. Exceto Michael, que se sentou no degrau mais alto da escada, na frente do portão, nos dando a privacidade ao manter seus ouvidos longe, mas segurança de que ficaria por ali.

Dessa vez, não reclamaria.

— Já tinha um tempo que suspeitava — confessei. — Mas não queria admitir. Hope me obrigou a fazer um teste logo depois... — eu não precisava especificar. — E tive a confirmação naquele dia. Te chamei para contar. Queria ter te contado antes, mas fiquei assustada. Você estava estranho comigo e depois... depois do que saiu...

Chris mordeu o lábio inferior, jogando-o para frente, contendo um choro de arrependimento que estava para explodir a qualquer momento.

— Você também ficou estranha — ele soltou, por fim.

— Não sabia o que fazer com você! — minha voz subiu um pouquinho, alarmando Michael, então respirei fundo e tentei voltar ao tom normal. — Eu sentia alguma coisa errada e não sabia o que fazer. Você tava se afastando e... depois parecia normal, e então escapava de novo.

— Eu estava com medo, Tish — confessou. — Apavorado.

Suas mãos tremiam tanto que não me afastei quando ele deu mais um passo à frente.

— Com medo do quê? — perguntei, sem compreender. Eu mesma fiquei com medo, mas não conseguia entender o dele. — De mim?

Chris deu mais dois passos em minha direção e parou a uma pequena distância. Ali, conseguia ver suas pupilas dilatadas na escuridão, escondendo os craquelados de cristal azul de mim.

— Eu fiz tudo certo — disse, sem que eu entendesse. — Eu conversei com a minha mãe. Perguntei para o seu irmão. Até falei com Ivy pra não deixar as coisas chatas... preparei tudo. Tentei esperar o momento certo. Tentei criar o momento certo. Marquei de viajar com você e eu estava... eu tinha certeza, mas, mesmo assim, só me sentia apavorado — minha boca estava aberta, juntando as peças do que ele me dizia. Sua mão esquerda, trêmula, enfiou-se no bolso e voltou de lá com o polegar e o indicador segurando um pequeno círculo dourado, de onde uma pedra azul se projetava, da mesma cor dos brincos que ele me deu, dois anos.

Olhei do anel para minha mão algumas vezes e soube que ele fora feito sob medida para o meu anelar. Na minha mente, flashes de todas as vezes que meus amigos e minha família defenderam Christopher dos meus achismos, do meu estranhamento. Michael me pediu calma, Hope tinha certeza que Chris não ficaria comigo apenas pela gravidez.

Quando, Trêmulo, Chris se ajoelhou em um último ato de desespero, tentei dar um passo para trás em pânico, mas apenas vi o mundo se apagar e desabei.

Capítulo 23

O Coração Quer o que ele Quer

A cama está esfriando, você não está aqui
O futuro que nos espera é tão incerto
Mas eu não estou bem até que você me ligue
Aposto que a sorte não estará a nosso favor

— Calma, ela está bem — ouvi o inglês arrastado de Talita, que melhorou bastante nos últimos meses. — Ela já vai acordar. Foi só uma queda de pressão, está tudo bem.

Eu apertei meus olhos, tentando entender o que aconteceu e, assim que me lembrei de Christopher ajoelhado, segurando um anel de noivado, me esqueci de todo o resto e me sentei, alarmada.

O mundo girou e minha cabeça parecia se partir no meio.

— Ei — Michael já estava ali, brigando comigo, com a mão em cima da protuberância em minha barriga. — Vamos com calma. Relaxa. Tá tudo bem.

Segurei sua mão com força e urgência e ele deixou suas pálpebras caírem, soltando um suspiro que me mostrava que entendia tudo o que estava passando em meu coração. Talita atrás de si, segurando a bolsa onde guardava seus instrumentos médicos. Olhei ao redor e Hope também estava ali, sentada na cadeira da minha penteadeira, os braços e as pernas cruzadas, nada feliz com o término da noite do meu aniversário. Mamãe estava sentada do meu lado na cama, no espaço que seria de Hope. Ela acariciou meus cabelos e beijou a testa bem no limite da raiz dos meus fios. Sorri pelo carinho, mas meus olhos foram para a figura encostada na porta, um pouco insegura se pertencia ao lugar, mas se firmando ali como uma bandeira em um território conquistado porque ela mesma disse que eu seria parte de sua família. Rose estava apertando as mãos juntas, girando e torcendo, e tentava não olhar para mim.

Quando ignorei a restrição de Michael e me sentei, dessa vez com cuidado e lentidão, olhando em direção à ela, não pôde me ignorar.

— Onde ele está? — exigi.

— Filha... — Foi o aviso de minha mãe, que aproveitou o espaço e se aproximou, me abraçando por trás, apoiando meu corpo em seu peito. — Tá tudo bem. Descansa um pouco.

Ouvi o suspiro cansado de Hope quando ela descruzou as pernas e os braços. Michael apenas beijou minha mão, encarando com seus olhos de chocolate, derretido em preocupações.

— Onde ele está? — repeti.

— Lá fora — Rose respondeu. — Sua família achou melhor ele ficar lá fora. Mas ele está muito preocupado.

Respirei fundo. Permiti que meu corpo relaxasse, com a mão na barriga, e voltei a me deitar novamente. Mamãe respirou aliviada, mas Hope se levantou da cadeira, caminhando até a cama. Ela e Michael se entreolharam por um momento e ele negou com a cabeça, antes de ela voltar-se para mim.

— E aí, como vai ser? — Indagou.

— Hope... — Michael alertou.

— Cala a boca, Mike — reclamou ela. — A cara é um idiota? Perdoa eu, Rose, mas é sim. Só que a Tish também deu umas bolas fora aqui também. Sabe? Era só vocês terem conversado e essa merda toda não teria acontecido — ela esticou a mão aberta em minha direção e eu engoli a seco. — Então, o que vai ser? A gente afoga ele na praia ou...

— Vocês vão todos sair — disse. — E chamar ele aqui pra podermos conversar.

Michael soltou o ar com força porque ele sabia que era isso que eu faria, mas não queria que eu fizesse. Talita começou a se retirar, tentando não ser notada. Hope deixou os braços caírem ao lado do corpo, satisfeita que minha decisão parecesse correta. Já mamãe...

— Não, querida — ela segurou meu rosto e me fez olhá-la. — Você não vai ficar sozinha. Você já desmaiou. Deixa você se acalmar. Deixa pra conversar outro dia. — ela ia listando opções cada vez mais distantes do que eu queria.

— Não vou ficar sozinha, mãe — expliquei, sorrindo. — Chris vai estar aqui. E...

— Da última vez que nós deixamos você sozinha com Christopher... — Meu irmão começou.

— Cala a boca, Michael — Hope se estressou, dando um empurrão nele, que soltou minha mão para ameaçar devolver a implicância com um tapa.

— Parem já com isso! — Mamãe reclamou. — Sua irmã está doente e vocês dois saindo no tapa. Que falta de respeito!

— Não estou doente, estou grávida — reclamei. — E quero conversar com o pai dos meus filhos. Se vocês não querem que seja a sós, Rose pode ficar.

Rose deu um pulo ao ouvir seu nome, mas acenou com a cabeça. Ela era a única que parecia que não queria me matar ou matar Chris. Apesar de toda a confusão, ela parecia entender o meu lado e respeitar meus medos, apesar do sofrimento do filho dela, de quem queria a proteção.

— Eu? — Surpreendeu-se. — Claro, querida. Claro.

Levantei a sobrancelha para a minha família que não parecia disposta a se mover.

— Hoje é meu aniversário — lembrei-os. — E quero todo mundo fora desse quarto.

Mamãe não queria ceder, mas concordou com a cabeça. Hope me deu um beijo no nariz antes de começar a se mover para sair, mas Michael precisou ser arrastado para fora pela orelha por nossa mãe, enquanto reclamava em alto e bom som.

Me afundei na cama, apavorada, assim que eles saíram. Chris chegaria a qualquer momento e eu não fazia ideia do que diria a ele.

Tentei repassar os últimos meses, todas as vezes em que senti a estranheza ou duvidei dele — até sua conversa com Ivonne — e colocar dentro da perspectiva que tinha agora. De que ele planejava me pedir em casamento e estava tão nervoso que não sabia como agir.

Eu não sabia o que diria se ele me pedisse, mas de cabeça fria, minha resposta era um sonoro não. Não por ser Christopher, mas um não ao casamento.

E achava que Christopher sabia disso. Por isso estava com tanto medo.

Ele queria casar. Ter uma família perfeita de comercial de margarina. E sabia que eu era seu maior obstáculo.

Rose caminhou até a cadeira em que Hope ocupava antes e arriscou um sorriso gentil em minha direção.

— Sua família é bem protetora, né? — Perguntou.

— Até demais — deixei a resposta sair em um sussurro nervoso.

Rose estalou os lábios.

— Ele vai aceitar qualquer coisa que você propor, sabe? — informou-me. Virei meu rosto para ela com os olhos arregalados. — Ele te ama muito, o meu filho. Há muito tempo. Mas seja o que for que você decidir... — ela tomou um longo suspiro, curvando-se para frente. Seus lábios se apertaram, planejando como me diria o que precisava. — Seja o que for, deixa ele participar. Ele... ele sempre gostou de crianças, sempre quis ser pai. E cada segundo que ele passa longe... ele sofre porque acha que é tudo culpa dele. Ele não é perfeito, mas... ele não é mau — disse. — Você sabe que ele não é.

Eu não queria chorar, então concentrei toda a minha força em respirar fundo. Entendia melhor Christopher agora; o dia em que me machuquei, que ele estava bêbado, nunca fez muito sentido. Depois de anos de cuidado comigo, por que ele faria justamente as coisas que me deixariam com mais medo?

Ele estava com raiva. Frustrado.

Fazia sentido.

Doía, ainda. Me apavorava. Mas fazia sentido.

Uma leve batida na porta me fez quase pular na cama. Ajeitei-me, tentando sentar um pouco mais confortável no meio dos meus travesseiros, a mão sempre protegendo a barriga porque ainda me sentia andando na corda bamba com aquela aproximação.

A parte racional de mim dizia que Christopher não deveria sair mais do meu lado, que poderíamos nos deitar na mesma cama e, quem sabe, aquele anel seria colocado no meu dedo. A parte emocional, aquela que foi quebrada tantos anos, girava em rodamoinhos de pesadelos, mostrando imagens e comparações da história da minha mãe e da minha.

— Entra — falei, tão baixinho que nada aconteceu. — Pode entrar — repeti, um pouco mais alto.

Sua mão esquerda apareceu primeiro, apoiada contra lingueta da porta, assim que se abriu. Os dedos com calos duros que não importava quantos cremes e hidratações tentei lhe fazer através dos anos, sempre apareciam ainda mais rígidos, quando não haviam bolhas. Depois do tempo que deveria ter passado à bateria depois que o afastei, podia identificar linhas brancas de maus tratos de tanto esforço ao expurgar seu sofrimento.

— Oi — ele tentou. Lançou um olhar nervoso em direção à mãe, no canto do quarto, antes de voltar para mim. Bati de leve no colchão ao meu lado e ele nem pestanejou em se aproximar.

Sentou-se, cuidadoso, e tomou coragem o suficiente para envolver a mão que estava sobre minha barriga com a sua. Vi seus olhos ficarem mais claros conforme as lágrimas se acumulavam e suas narinas inflaram. Ele levantou o olhar em minha direção e eu soube que jamais encontraria palavras para descrever tudo o que se passou por aquela ligação entre nós dois.

Antes que pudesse prever, seus lábios vieram aos meus, delicados, suplicantes. Deixei minha mão livre encontrar com sua bochecha e saboreei seu gosto salgado, de lágrimas e mar, por poucos momentos.

— Eu não posso fazer isso — murmurei, ainda contra sua boca. — Não consigo. Não agora. Não sei se vou conseguir algum dia.

Eu não estava falando sobre beijos, em si. Era mais sobre o anel que se encontrava em algum lugar daquela ilha, mas também se aplicava um pouco ao nosso relacionamento. Não estava pronta para descer a barreira. Não sabia se estaria pronta para deixá-lo se aproximar novamente.

Ele se afastou com delicadeza e concordou com a cabeça, em silêncio. Abaixou o rosto, rendido a tudo que lhe dissesse, tal como Rose me alertou, escondendo seus olhos de mim.

Mas levei minha mão ao seu queixo e exigi que me encarasse, levantando seu rosto.

— Eu quero que você fique. Tem espaço no quarto dos meninos, na casa auxiliar. — pedi. — Quero que você participe. Eu só não... — engoli a seco.

— Tudo bem — ele respondeu, imediatamente, vendo-me travar.

Mordi a boca, ponderando minhas palavras.

— Não posso... Não consigo lidar... — Mesmo com toda a organização que tentava fazer, elas saíam emboladas. — Eu preciso que você seja apenas o pai dos meus filhos porque é tudo o que eu vou conseguir lidar por enquanto e, mesmo assim, ainda é muito. Se você puder... se você conseguir...

Chris apertou meu pulso, ainda em seu queixo, com todo o desespero emanando de si.

— Sim — murmurou. — Sim, é claro.

Suspirei, quase aliviada, embora a presença de Christopher ainda exigisse seu preço em forma de um aperto desagradável entre meu peito e a garganta, também sentia que sumiria parte do desconforto que era a falta dele em cada momento, cada decisão.

Peguei sua mão e levei à minha barriga, do lado direito.

— Esse é seu papai, Elliott — murmurei, baixinho. Chris arfou, ouvindo o nome de seu avô e, oficialmente, do seu filho, pela primeira vez. Porque era a primeira vez que eu dizia com toda certeza. Arrastei a sua mão para o lado esquerdo. — E esse é o Emmett. Ou a Emma. Nós não sabemos ainda, papai, mas não importa muito.

Ele não conseguia mais conter as lágrimas. Soltei suas mãos e ele circulou minha barriga com elas, em total adoração. Eu mesma não estava tendo muito sucesso com as lágrimas.

Chris curvou-se, mas parou por um momento e olhou em minha direção, ao que eu concordei com a cabeça, apenas, então terminou o movimento e beijou meu ventre com carinho. Suas mãos tremiam, sua boca tremia, suas pálpebras também. Nunca o vi tão desmontado de sua confiança.

— Fala com eles — sugeri, baixinho. — Eles já podem escutar. Eu canto pra eles sempre, converso... já falei de você. Tenho certeza que eles estão ansiosos pra conhecer você há algum tempo.

Ele mordeu o lábio e concordou de leve, mas demorou um longo momento antes de começar a falar baixinho. Quando falou, se assustou ao sentir um chute, o que me fez rir e iluminou seus olhos.

Demorou um longo momento até que eu percebesse que estávamos sozinhos. Rose nos deu privacidade em algum momento. E Christopher continuou a conversar com eles até Hope entrar para dormir e expulsá-lo.

Capítulo 24

Nunca Estará Só

Ei
Eu sei que há algumas coisas sobre as quais precisamos conversar
E eu não posso ficar
Só me deixe abraçá-la mais um pouco agora

Quando Maria chegou para me visitar, no domingo seguinte ao meu aniversário, a casa ainda estava cheia. As Travelers e a equipe foram embora, levando Alex, mas Rose e mamãe resolveram ficar para trás, assim como Christopher. Dave e Chelsea, ao ficarem sabendo que nossa viagem de retorno à Inglaterra estava agendada para a primeira quinzena de março, uns dias antes do aniversário dele, pediram para ficar conosco, o que foi um retumbante: com certeza. Era bom poder dividir a casa com um bebê, quase um teste para o que viria a seguir; e uma lembrança que teria tudo em dobro.

Christopher estava sendo paciente e gentil e já conseguia ver mudanças em suas feições. Apesar de toda besteira que ele tinha que escutar de Michael, mamãe e David. Até mesmo Gabi e Chelsea davam uma espetada nele em alguns momentos.

Maria abraçou-me apertado e depois ganhei abraços dos seus três filhos. Savanah, a mais velha, estava com quase 18 anos, João Miguel já era um rapazote com seus 14 anos e haviam boatos de que era um exímio dançarino no estilo de rua, já a pequena Pietra, que mal sabia escrever o próprio nome quando me mudei para a Inglaterra, estava carregando um livro colorido, mas sem figuras, que pediu licença para ler assim que me cumprimentou.

Encarei Maria, que apenas deu de ombros quando a mais nova se ocupou de uma das cadeiras da área da piscina para continuar sua leitura. Os outros dois, por outro lado, saíram correndo para se jogar no mar. Maria e eu nos sentamos na mesa mais próxima de Pietra. Ela acenou para meu irmão, que apareceu na porta em posse de um café, com Andy agarrado em sua perna, olhando para Pietra, curioso.

— E como andam as coisas na MDA? — perguntei.

O plano não era falar de trabalho, claro, mas Maria era uma das minhas principais funcionárias da ONG e sabia que estava negligenciando o projeto há algum tempo e a tendência era só piorar. Porém, confiava na maioria das pessoas que estava conduzindo — Maria, que não aceitou nenhum cargo de chefia a princípio, começou na manutenção, mas, na insistência para que ela estudasse, conseguiu terminar escola e começou uma faculdade de administração e agora ela era sub-gerente administrativa, mesmo que ainda não tivesse se formado. Em breve, muito em breve, esperava que aceitasse o cargo na diretoria. Sempre foi pra ela, na verdade. Léo na gerência criativa e ela na gerência de todo o resto.

— Você sabe, esse começo do ano é uma bagunça — contou. — A gente não dá conta de todas as inscrições. Léo queria que tivéssemos mais umas cinquenta salas e, mesmo assim, não daríamos conta de tudo. A gente está tentando pegar 1000 crianças esse ano, mas a logística tá bem difícil.

— E o que você precisa pra chegar lá? — perguntei, com um sorriso.

Gastamos a primeira hora do dia falando sobre trabalho, contratos e ajustes para receber mais crianças. Emilia chegou a se sentar conosco para ver como poderia ajudar — ela, apesar de não trabalhar mais diretamente para as Travelers, mantinha algumas das antigas responsabilidades para si, como me acompanhar para o Brasil em um momento de emergência.

Chris passou por ali, mas ao me ver em uma conversa séria, apenas acenou um bom dia e entrou na casa para falar com a mãe.

Conversamos por horas, o assunto mudou e mudou e logo estávamos falando de família.

— Você vai ver — ela disse. — Dá trabalho, mas também é uma delícia. E é surpreendente quando eles começam a, sabe? Serem pessoas diferentes do que você pensou que seriam? — Soava com dúvida, mas cheio de certeza. — João Miguel andou com umas amizades estranhas, eu quase perdi ele pra... você sabe. A gente precisou se mudar, ele ficou revoltado e comecei a levar ele pra escola comigo, então ele começou a dançar e, minha amiga... — ela se abanou, segurando o choro. — Ele é quase tão bom quanto você.

— Aposto que é modéstia! — retruquei, rindo. — Você precisa me enviar uma gravação qualquer dia. Vivo recebendo coisas dos alunos e nunca recebi nada dele!

— É porque ele tem pouco tempo, não está nas turmas avançadas, mas vou te mandar depois — riu. — Já essa daí — apontou para o portão, de onde dava pra ver Pietra, Andy e Christopher tentando montar um castelinho de areia. — É tão estudiosa. Só tira nota boa. E Savanah... — ela suspirou. Savanah sempre teve personalidade forte. — Savanah ficou obcecada com música por um tempo, mas agora decidiu que quer cursar relações internacionais.

— Relações internacionais? — Me assombrei. — Maria...

— Eu sei, seu sei — ela interrompeu meu aviso. — É curso de rico. Tem que falar línguas e conhecer países, mas ela disse que é isso que ela quer.

— O inglês dela já era bem razoável uns anos atrás — defendi.

— É, ela quer fazer aquela prova pra ver se começa a dar aula pra pagar a faculdade — disse. — Ela acha que não consegue o vestibular, não.

— Nem na cota? — perguntei. Era sempre melhor conseguir passar em uma faculdade pública.

— Não, não — deu de ombros. — Muito concorrido. Ela ficou numa colocação ruim, então vai tentar um plano B enquanto estuda no cursinho.

— Eu posso pagar a faculdade dela, você sabe — sugeri. — Nem precisa pedir, nem nada. Tenho mais dinheiro do que vou conseguir gastar, do que meus filhos vão conseguir gastar e não me importo de ajudar Savanah, nem com a faculdade, nem com os cursos de idiomas ou com as viagens. Ela, inclusive, pode me visitar quando quiser.

— Não, não — Maria recusou sem nem pensar. — A gente sempre trabalhou nessa família. Não aceitamos...

— Ajuda — completei, porque já escutei aquilo antes. Desde que morávamos lado a lado, toda vez que tentava dar algo para ajudar com as despesas dela, era isso que ouvia. — Eu sei, eu sei.

Tomei um gole do meu suco e olhei para a praia mais uma vez. Meu olhar cruzou com Christopher e sorri, mas desviei para Savanah, que estava tirando uma selfie com o mar ao fundo, os longos cabelos encaracolados e escuros caindo em cascatas selvagens pelas suas costas. Ela não percebeu meu olhar até que fez um biquinho para a foto e Pietra soltou uma risada mais alta. Rapidamente, bloqueou o celular e deu uma pequena bronca com a irmã, que estava jogando areia em sua direção.

E tive uma ideia.

— E se ela fosse me ajudar, Maria? — perguntei. Maria franziu a testa em minha direção, confusa. Senti que ela já odiava a ideia, mas estava disposta a ouvir. — Eu... eu vou precisar de ajuda quando as crianças nascerem e Savanah tem experiência com crianças porque cuidou de Pietra, não?

— Sim... — concordou.

— Ela pode melhorar o inglês lá, estudar o que quiser que eu pago. Dou um bom salário a ela e, quando ela quiser voltar, ela volta e cursa a faculdade dela. Ou pode cursar lá, se preferir. E... e ela pode viajar pela Europa inteira, vai estar tudo mais perto. E me acompanhar nas turnês. Vai conhecer o mundo todo. Se ela quiser mesmo fazer Relações internacionais, pode ser uma boa experiência pra ela.

— Não sei, não — Maria entortou o lábio. Lembrava exatamente de minha mãe quando lhe disse que queria viajar para o Brasil. — Ela é tão nova...

— Bom, eu vou ficar de olho nela pra você. Vou poder estar na maioria das viagens com ela, posso deixar ela sempre com alguém, um guia, um segurança... Enfim. Nós temos alguns meses ainda pela frente até eu realmente precisar de ajuda, quando voltar a me apresentar e tudo mais — sorri. — Conversem. Pensem com carinho. O que decidirem, me avisem. Vou deixar esse espaço pra ela até que vocês tenham uma resposta.

Sabia que Maria ia ponderar bastante, mas confiava em mim o suficiente para aceitar. E eu confiava o suficiente em Savanah para cuidar dos meus filhos. Se elas aceitassem, seria um alívio imenso em minha vida.

Fiquei sentada na areia da praia, olhando o horizonte depois que eles partiram de volta para a cidade. Cada dia que passava, já começava a sentir saudades da casa da areia. Estava sentindo a movimentação desconfortável e gostosa em minha barriga quando Chris sentou-se ao meu lado.

Foi sem dizer uma palavra sequer, apenas sorri à sua presença, peguei sua mão e coloquei para que ele pudesse sentir também.

— Acho que eles estão felizes hoje — disse, dando um pulo quando um chute mais forte alcançou diretamente sua mão, nos fazendo soltar uma risada.

— Hoje foi um bom dia — suspirei. Deixei-me relaxar um pouco e me recostei contra o ombro de Christopher, o que fiz tantas vezes através dos anos. Era a familiaridade do contato que fazia com que meu corpo reagisse, e o dele de volta, quando passou os braços ao meu redor e beijou minha cabeça. — Deve ser pra compensar os dias ruins.

Seu abraço ficou só um pouquinho mais apertado, como se quisesse me proteger.

— Seu irmão me contou — disse. — Depois que eu tentei convencer ele a te levar a dar uma volta no continente.

Concordei com a cabeça. Não voltei ao porto desde então, com medo de encontrar com quem não queria mais uma vez.

— É um saco, sabe? — reclamei. — Essa coisa na minha cabeça. Sempre aqui, sempre, nunca me deixa em paz, nunca — ele beijou minha cabeça mais uma vez, carinhoso. — É difícil pra mim até... até te chamar de pai dos meus filhos. Porque eu... pai é uma palavra...

— Tem outro significado pra você — ele murmurou, passando a mão pelo meu braço, me acalentando. — Eu entendo. Juro que entendo. Tá tudo bem.

Eu sabia que era injusto. Sabia.

Mas às vezes não conseguia controlar a irracionalidade dos meus pensamentos.

— Eu queria ser diferente — choraminguei. — Queria conseguir...

Queria conseguir passar por tudo aquilo que tinha acontecido. Queria dizer sim para a pergunta que ele nunca conseguiu fazer.

— Eu sei — ele murmurou. Sua voz estava um pouco embargada e, ao olhar para ele, percebi que estava desconfortável.

Respirei fundo e ele virou o rosto em minha direção, preocupado. Tinha tanto amor em seus olhos, tanto carinho, que tudo o que pude fazer foi empurrar-me para cima e encostar meus lábios nos dele.

Uma coisa que sempre me encantou sobre Christopher era que ele tinha paciência e sabia respeitar meus limites. Nunca pegava mais do que eu estava disposta a oferecer e não foi com surpresa que ele permitiu que o beijo fosse apenas um selinho por um longo momento. E, quando pediu passagem para sua língua, foi gentil, carinhoso, testando meu gosto e a saudade de mim.

Até que eu me afastei e tudo que ele fez foi acariciar meu rosto, mexer no meu cabelo.

— Desculpa — pedi. — Minha cabeça...

Tentei fazer sinais para indicar o tamanho da confusão, mas Chris apenas sorriu e beijou a ponta do meu nariz.

— Tá tudo bem, meu amor — disse, me abraçando um pouco mais apertado e respirando fundo, enquanto meu coração batia acelerado, abafando o som das ondas que se quebravam na praia. — Não precisa pedir desculpas. Sempre quiser, é só pedir — brincou, galante, me fazendo soltar uma risada. — E quando não quiser, tudo bem. Eu vou continuar por aqui, de qualquer maneira. Não planejo ir pra muito longe nos próximos vinte anos, mais ou menos.

Ri baixinho e me deu vontade de chorar, então me escondi em seu peito, afundando meu nariz no cheiro de coco, ainda mais intenso naqueles dias de praia e sol, que emanava de sua roupa.

Capítulo 25

13 Praias

Dói te amar
Mas eu ainda te amo
É só o jeito como eu me sinto
E eu estaria mentindo
Se eu continuasse escondendo
O fato de que eu não consigo lidar com isso

Eu me arrependi no momento em que pisei na Inglaterra, quando cinco carros de fotógrafos e jornalistas me seguiram até em casa. Imediatamente, toda aquela confusão de gente querendo me ver me presentear e saber como eu estava começou a me sufocar, mesmo que esses fossem meus amigos e minha família. Eu estava constantemente sufocada, me trancando no banheiro e puxando todas as cortinas para que os fotógrafos não conseguissem nem uma fresta de mim e da minha imensa barriga.

Foi Alex que achou que tinha algo de errado comigo. Eu não disse nada para ninguém, Christopher estava às voltas em montar os quartos dos bebês e fazendo todas as minhas vontades — inclusive a que eu queria um pouco de distância dele — e, apesar de estar dormindo no meu quarto de hóspedes, tentava não me incomodar.

Já minha família... Eles sempre foram um pouco sufocantes. Hope aparecia sem se anunciar, sempre com comidas e presentes, querendo papear até às tantas, sem notar os meus bocejos. Michael e mamãe eram menos egocêntricos, mas tão inconvenientes quanto.

Então, quando Alika se ofereceu para dar uma olhada em meu jardim por mim e Alex pegou carona, provavelmente só para ter uma desculpa para estar por perto dela, ele me viu largar meus irmãos na sala e me trancar no banheiro.

Delicado e consciente de como eu me sentia, bateu na porta do banheiro.

— Posso te arrumar um copo de água? — perguntou. — Um suco, talvez?

— Não — choraminguei.

Ele abriu a porta, só uma frestinha para encarar o meu choro.

— Quer que eu chame alguém? — sussurrou, baixinho.

— Eu só quero ficar sozinha — pedi. — Um segundo só. E que esses desgraçados saíam da minha porta.

Alguém devia estar pagando bem aos paparazzi para conseguir fotos minhas e depois dos boatos que Chris e eu voltamos — ou que sequer terminamos —, o preço devia ter triplicado.

— Entendi — ele disse. — Vou pegar um livro pra você.

Quase suspirei aliviada quando ele saiu sem ponderar e depois empurrou um livro fino por debaixo da porta.

Meia hora mais tarde, ouvi outra batida na porta.

— Já foi todo mundo embora — a voz de Christopher ainda me deixava tensa, mas as palavras acalentaram meu coração. — Eu tô lá em cima, ok? Se precisar de algo, me chama.

Não sabia o que eles fizeram, mas as visitas diminuíram. As comidas e presentes ainda chegavam, às vezes com bilhetes, mas apenas mamãe aparecia com mais frequência, seguida de Michael, além de algumas ligações de vídeo com Rose, que voltou para Glasgow.

Aquela linha estranha em que Chris e eu estivemos dançando no último mês de minha gravidez era delicada, mas funcionava. E depois do aviso de Alex, apesar da distância, ficou mais atento para perceber minhas flutuações de humor.

Foi por aí também que ele percebeu que eu não estava só evitando sair de casa, eu passava mal toda vez que pensava em sair.

Começou quando Emilia ligou para ele para lembrá-lo dos últimos exames gestacionais e eu passei a noite toda em claro, vendo filme, mas sem conseguir prestar atenção nas histórias. Quando Chris acordou, lá estava eu, virada, comendo bombons.

Ao destrancar a porta de casa, meu corpo inteiro tremeu e ele sentiu porque apoiava a mão em minhas costas.

— Quer desmarcar? — perguntou-me, com delicadeza.

Queria. Mas sabia que era importante.

Cravei minhas unhas em sua mão e ele apenas sorriu para me incentivar. Pediu que eu aguardasse e estacionou o carro quase rente à porta de casa, o suficiente para que eu entrasse no banco traseiro em apenas uma passada.

Passei o dia inteiro tremendo, porém. Chris não disse nada até chegarmos em casa. Depois que tomamos banho e eu me sentei no sofá, ele se apoiou na mesa de centro, tampando a visão da televisão e pedindo que eu lhe segurasse a mão. O gesto de estar próximo e em contato foi tão incomum que me senti incapaz de negar.

— Diz pra mim, Tish — pediu. — Quando foi que você parou de tomar seus remédios?

Não sabia como ele descobriu, então me assustei e gaguejei ao responder.

— Eu... eu não levei pra casa. Por causa da burocracia. Ia pegar outra receita quando chegasse lá, mas eu... Fiquei uns dias sem tomar e me senti bem, então... — Cada palavra que saía da minha boca, via que tinha feito besteira. Por mais que me sentisse melhor no Brasil, os sintomas estavam lá. — Passou um tempo e fiquei com medo de voltar a tomar e... Sabe. Prejudicar a gravidez.

Chris não falou nada a princípio. Apenas curvou-se, beijando de leve a mão que estava em contato com a sua. Segurou meu olhar por um longo momento e, por todos os medos que senti de ser julgada por estar errada, ele apenas exibiu preocupação e carinho.

— Tudo bem se eu conseguir uma consulta pra você? — sua voz era um fio, quase tão baixo quanto os sussurros apaixonados e sonolentos que dividimos há um ano.

— Tudo bem se eu quiser ter um parto normal em casa? — retruquei.

Chris sorriu com a minha petulância, apesar de não ser muito a favor do parto normal por conta do risco, como já tinha deixado claro.

— Você vai mudar o seu plano de parto de novo? — perguntou. Eu me deixei sorrir e dei de ombros. Desde que aceitei a participação de Chris, tinha lhe mostrado três planos de parto diferentes. Um deles, o do parto humanizado, ele foi terminantemente contra. — Você sabe que é arriscado.

— Não quero a cirurgia — reclamei. — Eu trabalho com meu corpo. Não quero ser mutilada.

Chris riu.

— Quem te escuta falando, vai achar que é uma garota de programa — brincou.

Puxei minha mão da sua, fazendo-o rir mais alto.

— Você entendeu! — reclamei.

— Certo — concordou. — Um parto natural no hospital pra vocês terem suporte se for necessário. E a gente marca umas consultas virtuais com um psiquiatra pra você. Fechado?

Ele estendeu a mão pra mim, querendo fechar um acordo e, embora não fosse o que eu desejava, achei que era um saldo positivo e apertei sua mão com a minha.

Duas semanas após o plano de parto ser atualizado e cinco consultas com o psiquiatra, Christopher resolveu montar os berços, apesar das minhas reclamações de que dava azar fazer antes dos bebês nascerem. Da sala, o barulho da parafusadeira estava me irritando, então resolvi competir com um liquidificador ao fazer um milkshake de morango. Depois de colocar os ingredientes no copo e antes de ligar o aparelho, senti mais uma das cada vez mais costumeiras contrações e me curvei, esticando meu corpo, empurrando a barriga para baixo e a bunda para trás.

Naquela posição, vi a hora exata em que vazei. Segurei a respiração, tentando conter o pânico de ver minha bolsa estourar 8 semanas antes do tempo previsto.

Todo o meu corpo exigia entrar em pânico, o barulho da parafusadeira sobrepondo meus pensamentos. Respirei fundo e houve um breve momento de silêncio antes de começar o barulho outra vez. Montei um plano.

Com o máximo de cuidado que pude, caminhei de volta à sala, escorando nas paredes, com medo de escorregar na gosma e cair. Ainda estava na metade do caminho quando o barulho parou.

— Christopher! — gritei com toda a voz que possuía, que era muita. O estalido metal ecoou pela casa e, então, suas passadas urgentes na escada. Eu estava parada no meio da sala, as pernas molhadas do vazamento do líquido amniótico, segurando minha barriga com uma das mãos, como se fosse conter o parto por mais algumas semanas apenas pela força de vontade. — Está na hora.

De todos os defeitos que Chris pudesse ter, nunca poderia falar mal de como ele se esforçava em ser um bom pai, um bom parceiro. Fez tudo com cuidado: pôs-me sentada no sofá, pegou a bolsa da maternidade que não estava completa, uma toalha e ainda tentou juntar tudo mais que eu pudesse precisar. Ligou para minha família — tudo isso em menos de cinco minutos, quando me carregou com cuidado até o carro.

— Que droga — resmunguei, quando me colocou no banco traseiro.

— O que foi? — alertou-se logo, olhando-me de cima abaixo, procurando o que estava errado.

— Eu só queria tomar um milkshake — choraminguei. Chris levantou uma sobrancelha, surpreso. — Deixei no liquidificador.

Ele riu e me beijou na testa.

O parto não foi uma daquelas lembranças boas que a gente guardava pra sempre, não. Eu já tinha me conformado com a dor e consegui lidar bem com ela, mas nada foi como eu imaginei.

Emma veio primeiro. Chris segurava minha mão com força, tentando me ajudar a parir de algum jeito e não conseguia parar de chorar e gritar. Quando Elliott deu pra ar de suas graças e eu pude respirar aliviada apenas por um segundo, porque ao olhar ao redor, vi uma equipe levar Emma em um bercinho para longe e me sentei, alerta.

— Ei, calma — a enfermeira mais próxima pediu, me empurrando de volta para a cama. — Estamos tentando conter seu sangramento ainda. Precisa ficar deitada.

— Mas... — minha garganta estava arranhada pelos gritos, mas apontei para a porta. Christopher se virou a tempo de vê-los colocar Elliott no mesmo carrinho, uma equipe inteira cuidando do pequeno. Reparou que a sala estava mais vazia e deve ter percebido a falta de Emma, pois se levantou, sem soltar minha mão.

A enfermeira passou a mão pela minha testa, afastando meus cabelos suados.

— Eles precisam ir para a UTI neonatal, mamãe — ela me avisou. — São muito pequeninos. Mas nós vamos cuidar bem deles, está bem? Agora, preciso que você fique quietinha pra gente cuidar de você também. E depois que você descansar, podemos levar você até eles, tudo bem?

Não estava nada bem.

Meu coração parecia em frangalhos quando vi o carrinho-berço levar Elliott também. Apertei a mão de Chris porque podia sentir sua indecisão.

— Vai — pedi, assim que olhou em minha direção.

— Claro — murmurou, ainda meio confuso. Curvou-se e me deu um raro beijo casto em meus lábios, daquele tipo que às vezes acontecia, quando a gente esquecia que não éramos mais um casal.

Vi-o seguir a equipe de Elliott de perto, meu coração ficando cada vez menor.

Demorou um dia inteiro até que me liberassem para ir até a UTI neonatal, mas pareceram anos. Centenas de anos.

De cadeira de rodas ainda porque não confiavam em mim para andar depois da pré-eclâmpsia e da perda de sangue, não estava com muitas regalias. Tudo o que me deixaram fazer foi recolher o leite para levar na UTI e ficar deitada.

— Só deixaram o Chris entrar até agora — Michael estava andando ao lado da cadeira de rodas, enquanto um maqueiro me empurrava. Largou tudo para ficar comigo e tia Liah só me deixava para dar suas aulas. Hope não ficava o dia inteiro, mas aparecia e sumia do nada, do jeito dela. Já Rose, chegou às pressas assim que soube do parto e não saiu do hospital. — Rose está deixando a equipe maluca, mas não mais que você.

Falar daquilo só aumentava a dor no meu coração.

— Não segurei meus filhos ainda — falei, com a voz fraca. — Mal pude ver eles. Só pelas fotos que Chris tirou.

— Já estamos chegando — o maqueiro tentou me acalmar.

E estávamos mesmo. A maternidade ficava no final do corredor e Rose estava sentada em uma das cadeiras, encarando o vidro. Ela nos viu passar e depositou um beijo em minha cabeça.

— Leva esse beijo pra eles por mim? — pediu, sorrindo. Apertou de leve minha bochecha. — Vai ficar tudo bem.

Michael tentou entrar junto disfarçadamente, mas foi barrado na porta da maternidade. Com cuidado, fui encaminhada para o reservado, onde podia ouvir a aparelhagem da UTI neonatal. Assim que cruzamos a porta, identifiquei Chris sentado entre duas encubadoras e meu coração disparou. Ele se levantou rapidamente e abriu espaço removendo sua cadeira, sorrindo.

— Ela precisa voltar antes das 17h pra próxima medicação, certo? — ele avisou a Chris. Avise caso não aparecermos para...

Eu não estava mais ouvindo a conversa dos dois.

Emma estava acordada. Seu cabelo era escuro como o meu e os olhinhos abertos tinham o tom de conhaque da família da minha mãe, parecidos com os de Hope. A boquinha era bem vermelhinha e pequena, com o nariz avantajado que não era meu.

Ela era a cara de Christopher, mas com os olhos da minha irmã e o meu cabelo. Olhei dele para ela, só para confirmar. Isso chamou a sua atenção.

— Não me culpe — ele brincou.

— Jamais — ri, voltando a olhar para Emma. Era tão pequena. Tão frágil. — Oi, meu amor. Lembra de mim?

Emma apenas bocejou.

— Aqui — Chris me ofereceu um vidrinho de álcool em gel e aplicou direto em minhas mãos. Esfreguei, enquanto voltei a atenção para a outra encubadora. Elliott dormia, a respiração pesada balançando sua barriguinha. Tinha bem menos cabelo que a irmã, mas parecia escuro também e, embora o formato da boca também fosse de Christopher, ele parecia mais comigo. — Emma está reagindo melhor ao tratamentos. Eles acham que ela vai ter alta logo. O Elliott pode precisar de mais tempo.

Minhas mãos adentraram a encubadora de Elliott com cuidado, sentindo sua pele frágil, sentindo que ele era real.

— Oi, meu guerreiro. A mamãe está aqui. Hora de ser forte, tá? — as palavras foram saindo, sem que eu me desse conta.

Metade de mim concentrada no toque com Elliott, metade distraída por não ter falado com Emma direito ainda, mesmo que Chris lhe desse atenção. Sabia que seria minha sina dali em diante, me dividir em duas e calcular o tempo, tentando não ser injusta.

Limpei a mão mais uma vez e fui para Emma, depois voltei para Elliott, e toda aquela repetição continuou até às 17h30, quando as enfermeiras responsáveis pela minha medicação mandaram a equipe da maternidade me devolver ao meu quarto.

Aquela foi a minha rotina por quase vinte dias.

Capítulo 26

Ponto de Vista

 Eu quero confiar em mim
Do jeito que você confia em mim
Porque ninguém nunca me amou como você ama
Eu adoraria me ver do seu ponto de vista

Segurei Emma no colo primeiro. Uns nove dias depois do seu nascimento, pude começar a amamentá-la.no peito. Elliott demorou mais cinco dias até estar pronto para isso também. Eles saíram da UTI para a observação e recebemos alta alguns dias depois, quando finalmente conseguimos voltar para casa.

— Vamos só manter a calma, sim? — Chris pediu. E pela forma que olhava por cima do ombro, estava falando com Michael, não comigo.

Mamãe e Rose seguravam cada uma um dos netos e, apesar de termos dito que não precisava, lá estava Michael na cavalaria.

Nossos amigos estavam nos dando espaço e algo me dizia que era Chris que pediu por aquilo. A maioria preferiu fazer ligações de vídeo para conhecer as crianças e falar comigo.

— Eu estou bem, juro — avisei a Christopher, que me segurava pela cintura, me ajudando a subir os degraus de casa.

— Eu sei — Chris reconheceu, abrindo a porta. — É a pessoa mais forte que eu conheço.

Era naqueles momentos que sentia que estar longe de Chris era a maior bobagem que já fiz. E esses momentos continuaram a se repetir durante todo o período em que ele permaneceu morando em minha casa.

Ser mãe era uma dádiva da qual me sentia muito grata. Emma e Elliott eram o Sol das minhas manhãs e o vento fresco das minhas noites.

Mas tudo o que eu conseguia fazer por mim era dormir. Me sentia cansada, suja, minha casa inteira estava uma bagunça e eu nem tive tempo para cortar as unhas dos pés. Se minha louça estava lavada, era porque mamãe passava para checar dia sim dia não, enquanto Rose mantinha as roupas limpas.

— Oi, mamãe — Chris entrou em meu quarto segurando Elliott, com um sorriso animado. Ele estava se dando muito melhor com a paternidade que eu. — Hora de papar? Tá com fome?

Arrisquei um sorriso e estendi os braços. Elliott se encaixou com suas bochechinhas e já abriu a boca, querendo chorar.

— Shhh — sussurrei. — Aqui, meu amor.

Chris sentou no chão, no pé da minha cama, para ficar por perto. Ele mal conseguia ficar longe das crianças. Muitas vezes, eu o pegava dormindo na poltrona que ficava no quarto deles, ao invés da sua cama, no quarto de hóspedes. Parecia ter sido moldado para cuidar de crianças, o que me deixava um pouco mais frustrada por não me sentir tão feliz e completa quanto ele parecia estar.

Quando Elliott acabou, foi a vez de Emma. Ao final da jornada, Chris tinha adormecido na cadeira acolchoada da minha penteadeira e levei Emma de volta ao berço, testando os bicos dos meus seios, que estavam ficando cada vez mais machucados. Isso me fez prestar atenção em minhas unhas, grandes e uma delas estava escura de sujeira e, ao fundo do meu campo de visão, um saco de fraldas sujas que me esqueci de colocar para fora.

Comecei a chorar do nada. Emma e Elliott estavam com um mês e meio de vida e batalha. Sobrevivendo, apesar de eu ter complicado tudo pra eles. E ainda era incapaz de ser o que eles mereciam.

Meu choro aumentou de tom, descontrolado. Apoiei uma mão na parede em frente do meu quarto e a outra foi à boca, tentando conter meus gemidos para não acordar os gêmeos.

Acordei o pai deles, no lugar.

Algo aconteceu com nosso sono, meu e de Christopher. Éramos dois apreciadores de dormir, fruto da privação de horas de descanso no auge das turnês, mas depois que as crianças nasceram, qualquer barulho nos despertava.

Então Chris surgiu à porta do meu quarto, atento, procurando a origem do barulho. Sua expressão de susto se desmanchou assim que pôs os olhos em mim.

— Oi, minha linda, o que houve?

Minha resposta foi uma chuva incompreensível de informações de como eu era uma péssima mãe e como estava cansada e como odiava estar tão chateada por não estar sempre feliz porque amava meus filhos.

— Mas eu tô horrível — chorei. — Tô sempre bagunçada e agora fico suja e a casa fica suja e eu...

Chris me calou com um beijo.

Fazia um tempo que não acontecia. Não um como aquele, com língua e com minhas mãos indo involuntariamente para sua nuca e meu corpo sendo empurrado para a parede, sem se importar com toda a minha bagunça. Nossos últimos e parcos beijos aconteceram como um encostar de lábios carinhosos.

Ele se afastou, encostando o nariz no meu.

— Você nunca esteve mais linda pra mim — disse.

Soava sincero. Conhecia Chris o suficiente para conhecer suas confissões e aquela era uma delas. Não era algo que tinha dividido comigo; não com palavras. Suspeitava que fosse medo de me pressionar quando eu já tinha o mundo inteiro em minhas costas, mas ficou claro a cada momento que o via com seus sobrinhos ou com o meu.

E agora eu estava suja, despenteada, cansada e cheia de olheiras, mas era a mulher que ele amava e a mãe de seus filhos.

Conseguia enxergar seu apelo.

Entender? Não.

— Eu já tive dias melhores — brinquei.

Ele sorriu de lado e me olhou de cima a baixo. O solavanco no meu baixo ventre me informou que meu corpo não parou de funcionar com a maternidade, ele só estava recomeçando a descobrir que o tempo era curto e escasso, mas ainda precisava de atenção.

E fazia algum tempo...

— Não teve, não — retrucou.

E eu fui obrigada a puxá-lo para perto de novo, grudando nossas bocas. Chris nunca foi santo, mas estava contido, cuidadoso, mesmo ali. Fosse por nossa suspensão de sentimentos ou porque o meu resguardo mal havia acabado, suas mãos estavam congeladas em minha cintura, embora sua boca fosse voraz na minha.

— Eu preciso de um banho — murmurei contra sua boca.

Chris se afastou, imediatamente, pigarreando.

— Claro — murmurou.

Segurei sua mão com carinho. Dei três passos para trás em direção ao meu quarto, puxando-o junto comigo.

Ele não precisou que eu lhe dissesse as palavras.

***

Acordei na cama com cheiro de coco em meus lençóis e em meu travesseiro, mas vazia. O silêncio na casa me assustou um pouco porque sempre tinha bebê chorando ou música tocando, mas percebi que havia um som baixinho ecoando do primeiro andar, que aumentou assim que abri a porta do quarto.

Desci as escadas de camisola, sentindo o cheiro de fritura e ouvindo Chris cantar baixinho, o que era raro. Encontrei-o na cozinha, a escumadeira estendida em direção ao fogão, mas o corpo todo virado ao berço onde Emma e Elliott estavam. Seu rosto estava todo enfiado em cima deles.

— Eu posso ser seu herói, bebê — cantarolou, antes de reparar em mim. Suas bochechas ganharam cor, o que também era raro. Chris não era um cantor nato, apesar de ter um bom timbre e se envergonhava toda vez que arriscava uma nota, ao menos na minha frente. — Bom dia.

Ele desligou o fogo e capturou minha boca por um momento, assim que me aproximei o suficiente.

Meu corpo reagiu do jeito errado. Enrijeceu e espalmei as mãos em seu peito para afastá-lo.

Se eu fechasse meus olhos, ainda conseguia ver o sangue em minha sala. O sangue na cozinha da minha mãe. Os cacos de vidro. A faca.

Talvez eu jamais fosse capaz de esquecer aquelas imagens. E elas estavam vinculadas a Chris para sempre.

— Desculpa — murmurei.

Sabia que deixá-lo entrar em minha pele na noite anterior seria um erro, mas ver a decepção nos olhos de Chris partiu meu coração em seu nome mais uma vez; porque não havia raiva ali. Apenas amor. Frustração, sim, mas compreensão.

— Tudo bem — sussurrou de volta. Sem conseguir me deixar ir, abraçou meu corpo e beijou minha cabeça. — Não precisa esquentar com isso. Mas... sempre que quiser, sempre que precisar... pode me chamar.

Segurei a minha respiração.

Ali, naquela cozinha em uma manhã quente de final de primavera, Chris me ofereceu uma oportunidade que nunca tive antes: de ficarmos juntos sem compromisso.

E talvez aquela fosse a única chance que ainda restava para nós dois.

Capítulo 27

Planta Carnívora

Eu sei que dinheiro não é importante
E isso não significa que você seja o melhor
Mas eu conquistei tudo sozinha

Quantas coisas cabiam em 5 anos?

Olhando para trás, parecia uma eternidade, mas a vida foi corrida e não notei até que estava recebendo as pessoas para mais uma festa de aniversário dos meus pequenos.

— Oi — Chris se aproximou de onde eu estava, checando a mesa de doces e ao grupo de crianças acumulado ao redor dos animadores. Ele estava acidentado em uma guerra de gelatinas, orquestrada pela pimenta malagueta que era nossa filha. — Sua irmã chegou agorinha.

Ele me deu um beijo na bochecha como se não tivéssemos nós cumprimentado horas antes, inundando meu sistema respiratório com o cheiro de coco que estava entranhado em cada uma de suas peças de roupa.

Tentei não me deixar abalar. Tinha um tempo que não fazíamos nada interessante; eu sempre acabava evitando Chris quando conhecia alguém com quem cogitava ter algo mais sério e estava envolvida com um não-famoso, um corretor que conheci ao pensar em comprar uma casa um pouco maior, já que não comportava as festas familiares com todas as crianças — e era por isso que elas aconteciam no jardim de Chris, motivo pelo qual não convidara Harry, o corretor, para o evento. Isso e o fato de que ainda não havia apresentado ele pra ninguém.

— Jura? — indaguei. — Ela avisou que talvez não viesse porque a Sophie não estava bem...

— Sophie parece bem — ele riu. — Quem parece emburrado é Matthew.

Não era engraçado como as coisas aconteciam? Hope achava Matt esquisitão quando estudávamos juntos. E depois que eu e Matt saímos por um tempo, ele ficou irritado comigo, mas Hope vivia irritada comigo também por motivos variados, então eles começaram a conversar, apenas como amigos por um tempo, e depois ficaram juntos. Em dois anos, casaram e tiveram sua filha, Sophie, que estava com quatro meses.

Alika também acabara de ter bebê. Ela e Hope combinaram de engravidar juntas, para ficar mais fácil ter aquela pausa na banda e não a ausência que eu causei por quase um ano. Aneesa, filha de Alika e Alex, estava com um pouco mais de seis meses.

Às beiras de voltar ao trabalho, eu não conseguia passar um segundo sequer longe das crianças.

— Não esquece de vigiar o Elliott para não comer amendoim — lembrei a Chris, que apenas riu.

Deixei-o vigiar a confusão de crianças. Nossas famílias e bandas estavam se tornando cada vez mais reprodutoras. Michael e Gabi estavam esperando seu terceiro filho. Só entre nós, os Foster, eram seis pivetinhos e Juntando com Kayin, Anessa, Scott e os cinco sobrinhos de Christopher, dava para fazer uma grande festa.

— Feliz que vocês vieram! — cumprimentei Matt primeiro e ele realmente não parecia muito feliz de estar ali, mas Hope abriu o maior dos sorrisos ao me ver.

A maternidade lhe fez quase tão bem quanto seu relacionamento com Matt. Deixou um pouco toda a amargura que desenvolveu pós os escândalos, aproximando-a mais da energia que emavana quando era adolescente. Gostava daquele mix.

— Nós estávamos ansiosas, né, filha? — Hope mexeu no cobertorzinho de Sophie, em seu carrinho.

— Ela melhorou? — perguntei. Soube na hora que foi uma desculpa nas bochechas rosadas da minha irmã, e mudei de assunto. — Ela parece melhor. Matt, os meninos estão vendo o jogo lá dentro, se preferir. Aquela é a porta de onde as bebidas não podem passar — avisei.

Sabia que Matt não era muito fã de futebol, mas era a copa do mundo e ele parecia não querer estar ali. Ele acabou por concordar, agradecer e foi se juntar a Dave, Alex, Piper e ao irmão de Christopher na sala dele. Era onde eu estaria também, se não tivesse uma festa para organizar.

Hope encarou o marido se afastar e soltou um suspiro longo.

— Ele acha que a gente tinha que esperar mais pra voltar — explicou.

— A gente pode esperar mais, sim — sugeri porque eu mesma estava satisfeita com minha vida de mãe. Voltar aos palcos me garantia perder momentos importantes.

— Não. Você voltou quando os gêmeos estavam com quatro meses só. Dois meses depois, a gente estava no palco. E acho que vai demorar mais um pouco agora porque a gente tem que resolver todos os trâmites da nova gravadora e conseguir um empresário novo.

Concordei com a cabeça. Thomp estava agenciando três bandas novas que estouraram tanto ou mais que nós no começo. Agora que éramos veteranas e não lotávamos mais estádios, ele achou melhor encerrar nosso contrato no começo de nossa pausa. Sugeriu que encontrássemos alguém que pudesse nos colocar de volta ao topo, já que havia falhado. E nossa gravadora estava sendo vendida. No processo, talvez precisássemos de um novo lugar.

— Oi, priminha — a voz de Elliott me colocou de volta na realidade. Ele estava com as mãozinhas na borda do carrinho, olhando com curiosidade para Sophie. Seus olhos brilhando ao olhar a bebê.

Ele nasceu com o mesmo tom de olho do meu, mas, ao contrário de mim, apresentou uma heterocromia central logo nos primeiros dias de vida, sua íris clareando aos poucos nas bordas. Agora, aos quatro anos, parecia ter parado de clarear; mantinha um tom escuro de castanho no meio de sua íris, que clareava em nuances de amarelo até as bordas, onde havia uma pequena baixa azul esverdeada, que Emma me cansou de tanto perguntar porque não lhe dei um olho igual.

Elliott, ao contrário da irmã, era como doce de banana, docinho. Tinha personalidade forte também, sempre falante e curioso, perguntando o motivo de tudo existir, mas chorava por tudo. E tinha a imunidade um pouco mais baixa, vivia pegando resfriados misteriosos, além de ter algumas alergias, o que me fazia andar para cima e para baixo com uma bolsa de medicamentos.

— Olha, filha, seu primo veio te dizer olá — Hope contou para Sophie, que encarou a mãe e fez sons com a boca, como se tentasse falar. — Isso mesmo. É o seu priminho.

— Prima! — Emma apareceu, se jogando por cima do irmão e tentando conseguir um espaço maior para ver Sophie.

Eu ri, mas também a segurei pelas alças da jardineira que usava porque Emma era expansiva e desajeitada. Na maior parte do tempo, não fazia por mal, mas vivia ralada e já conseguira quebrar o braço também, para desespero meu e de Chris. Às vezes suas aventuras incluíam fazer o irmão chorar apenas por implicar com ele.

— Mãe, a Emma me empurrou — Elliott a acusou, falando em português.

Emma lhe deu língua.

Em casa, falávamos português na maior parte do tempo. Nós três e Savanah, que passava a maior parte do ano conosco, estudando relações internacionais, viajando pela Europa e me ajudando com aquelas pestinhas.

Isso fez Chris começar a tentar falar português e, no geral, ele já tinha mais intimidade com a língua que meu irmão.

— Emma... — ralhei com ela

Ouvi Hope fazer uma pequena prece de agradecimento.

— Desculpa, irmão — pediu, fazendo careta e deixando os ombros caírem, mostrando sua má vontade. — Mas a vovó Rosa pediu para eu te chamar, mãe. O Elliott disse que ia avisar, mas ele esquece.

— Esqueci — Elliott se entregou sem medo de dizer a verdade.

Olhei adiante para Rose, que conversava com Hyelin, que estava segurando Aneessa nos braços. Acenei, dizendo que já estava indo, ao que ela concordou com a cabeça.

— Obrigada — agradeci. — Podem voltar a brincar agora. Daqui a pouco seu pai vai liberar o vídeo-game!

Eles dois saíram correndo para contar as novidades aos primos e aos amigos da escolinha e esperava que se lembrassem de voltar a falar inglês.

— Rezo todos os dias por Sophie ter vindo única — Hope riu.

— Tenta de novo pra você ver só — provoquei. — Ouvi dizer que são as mulheres que levam a herança genética de gêmeos. Michael pode ter se safado três vezes, mas você? — Ela me deu língua. Era dali que Emma aprendeu, eu sabia. — Vou lá na Rose. Michael, Gabi e mamãe estão em algum lugar por ali — apontei para trás da confusão das crianças, que estavam imitando os gestos de uma das animadoras.

Dei um beijo rápido em Sophie por cima da cobertinha que a cobria e Hope e eu tomamos rumos diferentes.

Rose, carinhosamente chamada de vovó Rosa pelos meus pequenos porque eles confundiram seu nome com a cor rosa em português, abriu um sorriso grande ao me ver caminhar até ela. Alika passou por mim com Aneessa no colo e trocamos palavras amáveis antes dela se juntar a Hope para uma conversa de bebês.

— Se divertindo? — Rose perguntou, rindo.

Revirei os olhos e ri. Em algum momento da minha conversa com Hope, Chris tinha se enfiado no meio das crianças e estava com Emma em seu colo, que lhe mostrava o cotovelo. Parecia estar ralado. Franzi a testa, tentando descobrir o que estava acontecendo.

— Eles parecem estar se divertindo muito — respondi, distraída. — Então eu aguento um pouquinho.

Rose riu sem me julgar e era uma das coisas que mais gostava nela. Não se metia muito na criação dos gêmeos, mesmo sendo presente, gostava das coisas que eu fazia em um âmbito geral e dava seus palpites apenas quando era solicitada ou quando achava que eu tinha saído muito da curva, ao contrário de minha mãe, que sempre estava pontuando e reclamando de tudo. Por sorte, Michael tinha mais filhos e Hope era mais desajeitada, então ela estava me deixando um pouco em paz nos últimos meses.

— Chris comentou com você sobre a viagem? — perguntou.

Suspirei. O trabalho que Rose me dava era que ela quase exigia fazer parte da guarda compartilhada. Chris não abria mão dos dias dele para que a mãe ficasse com as crianças — se o fizesse, não veria os filhos — e Rose continuava tentando costurar espaços em nossas agendas, tentando sequestrar seus netos por uma tarde ou um mês inteiro.

— Falou, sim — concordei. Uma viagem de aniversário para a EuroDisney. — Eu acho que pode ser uma boa ideia, Rose. Mas você sabe que eu sou um pouco reticente...

— Sei, sei — concordou, me cortando. Não gostava de ficar muito tempo longe dos meus filhos. Chris e eu discutimos muito sobre isso no começo, na época das turnês. Ele era contra as crianças viajarem comigo e eu era contra eles ficarem com ele por todo o período. Demorou pra acharmos um ponto mediano e sabia que só pioraria nos próximos meses porque, com a escola, eles não podiam simplesmente pegar um avião pro mundo todo junto comigo. — Mas ele comentou que você vai começar a compor pro novo álbum e pensei em ficar com eles nessa época. Pra te deixar mais leve, sabe?

Concordei. Chris também sugeriu ficar com eles durante o período de pré produção e produção do álbum, mas eu deveria impedir meus filhos de ganharem uma viagem com a avó porque não poderia acompanhar?

Ser mãe era muito difícil.

— Eu sei. Acho que eles vão gostar — concordei. — Savanah vai estar de volta do congresso na semana que vem e ela pode ir junto pra ajudar. — Chris se aproximou naquele momento, ainda com Emma em seu colo, chorosa. Estendi os braços para ela e ele a depositou em mim. — Você machucou, meu amor?

— Scott empurrou eu — ela chorou.

Apertei seu nariz com carinho. Ela e Scott viviam em pé de guerra. Adoravam brincar juntos, mas alguém sempre saía reclamando de alguma coisa. Eram duas criancas arteiras apostando quem era o pior do bando, mas quando se uniam...

— Mamãe vai cuidar do dodói pra você voltar a brincar, tá?

Com um aceno distraído para Chris e Rose, levei Emma para dentro da casa. Michael me alcançou quando estava na cozinha, ouvindo os gritos e reclamações da aglomeração ao redor da Tv e limpando os machucados do cotovelo e do joelho de Emma.

— Nossa, que dodói grande! Acho que vamos ter que cortar a perna dela fora. — Michael disse para Emma, que imediatamente fez bico e desatou a chorar.

Olhei feio para ele, fechando a garrafinha de soro e tentando acalmar Emma.

— É brincadeira do seu tio, amor — tentei fazê-la parar de chorar. — Foi só um arranhão. Quer voltar pra festa? Já pode ir brincar. — Ela secou os olhinhos e concordou com a cabeça, deixando o drama de lado. Coloquei-a no chão e ela tomou seu rumo de volta às crianças e algo me dizia que Chelsea logo teria que lidar com o choro de Scott também. — Sem graça — reclamei com Michael.

— Não sei ainda o que é mais divertido — riu. — Implicar com ela ou com você.

Dei-lhe um empurrão de leve, ao que ele apertou minhas bochechas e seguiu seu caminho em direção à sala. Estranhei porque Michael detestava futebol, mas a solução daquele mistério se deu ao encarar as pessoas na sala de Chris e perceber que ele se sentou ao lado de Matthew.

Entortei a boca. Os anos se passavam, mas Mike continuava a mesmo ciumento e superprotetor de sempre.

Era um dos motivos pelos quais eu preferia que ele acreditasse que eu estava bem sozinha.

Mesmo que raramente estivesse sozinha porque, quando não estava saindo com ninguém, sempre acabava envolvida com Christopher, roubando momentos.

Aos poucos, a casa foi esvaziando, até que restasse apenas a equipe de buffet e da animação, recolhendo os itens para partir também. Elliott estava dormindo, exausto, em meu colo e Chris carregava Emma, também sonolenta, pelo jardim, resolvendo questões do pagamento. Assim que todos se foram, segui-o até os quartos para depositá-los em suas camas. Eles tinham um quarto para cada um na casa de Christopher e falavam muito sobre isso — era um dos motivos pelos quais eu fui atrás de um corretor.

— Tem certeza que não quer que eu leve eles? — perguntei, assim que fechamos a porta do quarto de Emma.

— Se eu tenho certeza se quero passar um tempinho com as crianças? — riu.

Acompanhei seu riso porque me senti boba de perguntar aquilo.

— Tá bem, então. Eu... eu vou indo.

Antes que me virasse para ir embora, ele segurou meu pulso e me puxou, levando meu braço a passar por cima do seu ombro.

— Você podia passar a noite aqui também... — Sugeriu.

Sua boca encostou na minha por poucos segundos e desceu pelo meu pescoço, enquanto suas mãos me empurravam com leveza até que minhas costas bateram na parede.do corredor atrás de mim.

— Chris... — alertei-o.

Ele não estava me ouvindo e meu corpo também não. A cada estalar de lábios em minha pele, a cada centímetro molhado por sua língua, eu tremia e me preparava para mais em minhas entranhas.

— Estou com saudades... — murmurou em português. E então voltou à minha boca, exigente, em um beijo calmo e doce que revirou meu estômago, até se transformar em algo mais voraz e carnal, a reviravolta descendo até meu baixo ventre e começando a ser uma tortura.

Não que acontecia com frequência. A gente só se procurava, sabendo que o outro sempre estaria ali. Alguns meses haviam se passado desde a última vez que permitira Chris em meus lençóis e a lembrança me fazia estremecer.

Mas eu estava saindo com outra pessoa e me sentia mal de ficar com Christopher também.

Era perfeitamente capaz de ficar com duas pessoas ao mesmo tempo ou até mais. Só que se incluísse Chris naquela confusão, eu me sentia uma traidora.

Não por estar traindo Chris, porque tínhamos aquele acordo mudo de que não éramos nada além de duas pessoas se divertindo, mas porque sentia minha balança sempre pender para ele e qualquer outra pessoa não tinha chance nenhuma.

Quando as mãos dele começavam a escorregar pelo meu corpo, como naquele momento, toda e qualquer comparação se tornava injusta.

Ele conhecia todos os pontos certos para apertar porque eu fui moldada pelos seus toques.

E aí as outras mãos só pareciam desajeitadas e frustrantes.

Segurei seu pulso alguns centimetros antes de chegar ao seu intento, ao centro do meu prazer, entre minhas pernas. Ele encerrou o beijo, mordendo meu lábio e descendo até o queixo, onde mordeu também.

Dei-lhe um empurrão de leve, ignorando as chamas azuis de desejo que ardiam em minha direção.

— Preciso ir — murmurei, a voz baixinha, incerta e confusa.

— Certo — cerrou os olhos em minha direção, mas cedeu, dando um passo para trás.

Passei por debaixo do seu braço que ainda estava estendido na parede e senti meu coração se apertar. Virei-me de volta a ele e beijei sua boca mais uma vez. Ele me segurou pela cintura, contido, mas esperançoso, e encerrei o beijo, encostando o nariz no dele.

— Obrigada pelo convite — eu lhe disse. — Mas eu... acho melhor ir.

Ele riu e mordiscou minha boca mais uma vez.

— O convite vai continuar em aberto — disse. — Pra quando você quiser.

Era difícil lhe dizer não quando ele era tão compreensivo e paciente.

Estivemos a um passo de realizar todos os seus sonhos. Casar, ter filhos, ser uma família tradicional daquelas de comercial, mas não deu certo. E, mesmo assim, ele aceitava que estivéssemos naquele acordo sexo sem compromisso porque era o que eu podia lhe oferecer.

Aceitava mesmo que pudesse conquistar qualquer outra mulher no mundo para realizar seus desejos de família perfeita.

Aceitava apenas porque era eu.

Porque tinha certeza.

Não me pressionava, mas eu sabia. Conhecia Chris tanto quando ele me conhecia. A gente se embolava nas palavras, mas se entendia nos trejeitos.

Ele levou minha mão até sua boca e a beijou de leve, consciente que minha hesitação de ir embora era um indício de que ainda tinha chances de me convencer.

Beijei o canto da sua boca e me virei para ir embora antes que acabasse cedendo aos seus encantos.

Christopher sabia muito bem o que significava a minha rejeição daquela noite

***

Digitei uma resposta rápida para a foto que Hyelin me enviou em privado, estava viajando para comemorar o aniversário de namoro com Victoria, e corri para atender a porta.

Harry abriu o maior dos sorrisos ao me ver e não contive o meu também.

— Trouxe pra você! — ele me entregou um buquê de flores de laranjeira que fez meu sorriso vacilar um pouco.

— Ah, obrigada! — disse, sem culpá-lo. Não tinha como saber que eu odiava o cheiro daquelas flores. — Vem. Entra.

Assim que fechei a porta, demos um beijo casto e demorado.

Harry estava me ajudando a escolher uma casa nova, uma maior e que comportasse pelo menos quatro quartos individuais. E entre as conversas e visitas a possíveis móveis, flertamos até acabarmos transando no meio de uma visita à uma mansão antiquada que eu jamais compraria.

Então estávamos saindo há três semanas desde então.

— Como foi a festa? — perguntou. — Correu tudo bem?

Contive a careta. Harry estava incomodado por eu não ter lhe apresentado meus filhos, por não tê-lo convidado pra festa de aniversário deles.

— Foi tudo bem sim, eles se divertiram muito — disfarcei minha impaciência. — Vem. Fiz lasanha.

— Adoro quando cozinham pra mim — gracejou.

Se ele achava que cozinhar para ele significava comprar lasanhas congeladas, trocar para uma nova travessa e colocar no fogo, então estava tudo certo.

Eu até gostava de cozinhar, de fazer tudo natural, de casa mesmo, mas com a festa das crianças, não tive tempo de fazer mais nada.

Tirei o vinho da geladeira e Harry se ofereceu para abrir a garrafa enquanto eu pegava a lasanha no forno e ele contava um pouco sobre seu trabalho.

— Apareceu uma casa nova essa semana que acho que você vai gostar — disse, puxando a rolha, mas olhando para mim. — Só que é fora de Londres, então não é exatamente o que você quer. Nossa, que cheiro bom.

Coloquei a lasanha no centro da mesa e me dobrei sobre ele para lhe dar mais um beijinho.

— Vou ter que ver isso logo ou vou deixar pra lá — pontuei. — porque eu e as meninas vamos começar a trabalhar o novo álbum no meio do mês que vem.

A rolha finalmente saiu da garrafa de vinho, fazendo um barulho de sucção alto ao mesmo momento que Harry virava para me olhar, confuso.

— Achei que vocês tinham se aposentado. Como a banda do seu irmão. Pra curtir os filhos e tudo mais.

Não éramos todas mães ainda. Hyelin até falava de adotar uma criança ou gerar em algum momento, mas ainda não estava na hora. E Piper... Pip não estava interessada em se relacionar; se a maternidade lhe despertava mais vontade, não era algo que já tivesse comentado.

— Só fizemos uma pausa — expliquei, partindo a lasanha e começando a servir, vendo-o encher a taça. — E já estamos prontas para voltar à ativa.

Coloquei um pedaço de lasanha em seu prato e depois do meu. Harry me passou uma taça, já mastigando um pouco da lasanha, e me.sentei, pronta para começar a comer também.

— Mas por quê? — indagou. — Você tem bastante grana e eu ganho bem. Não precisa voltar a trabalhar. Posso cuidar de você e dos seus filhos.

Estava cortando um pedaço de lasanha quando ouvi sua frase e percebi que estávamos indo para um lado nebuloso e não gostei.

Tentei conduzir de volta a algo agradável.

— Ah, mas eu adoro fazer música — sorri. — Desde nova. É o que eu mais amo, depois dos meus filhos, claro. Mal vejo a hora de voltar a subir no palco.

Harry disfarçou seu desagrado muito pior que eu; ou a comida estava muito ruim para que ele mostrasse a careta que se formou em seu rosto.

Era aquela a parte ruim de me relacionar com pessoas de fora do meio artístico: eles quase nunca entendiam. E quase sempre ficavam desconfortáveis e inseguros com a exposição.

Eu sabia muito bem porque já estive do outro lado da moeda.

— Não sei se vou gostar ver um monte de marmanjo babando na minha namorada, não — respondeu.

Tive que beber um pouco de vinho para não responder imediatamente qualquer bobagem que fosse.

Os britânicos eram engraçados, no geral. A gente saía algumas vezes e eles já achavam que era um relacionamento, mesmo que não fosse. Se eu certamente não era namorada de Harry antes daquele jantar, depois dele não seríamos nem colegas que saíam as vezes.

Mas eu precisava bastante transar aquela noite, então engoli.

— Podemos mudar de assunto, por favor? — pedi.

Harry também não gostou daquilo.

— Claro — concordou, porém.

***

Enrolada no lençol, ouvindo o chuveiro ligado com Harry, não conseguia lidar com a tensão acumulada em meu corpo.

Em primeiro lugar, latente e dolorido no meio da minhas pernas, a frustração pelo prazer não alcançado.

Harry não era um amante ruim, mas nossa conversa no jantar me deixou desconfortável o suficiente para não conseguir relaxar, então simplesmente não consegui chegar no meu ápice e todo aquele aparato para ter um encontro não serviu para nada.

O segundo motivo era que Christopher chegaria a qualquer momento com as crianças e Harry estava enrolando para ser apresentado, mesmo que eu estivesse insistindo para que fosse embora há, pelo menos, duas horas.

Sabia que teria que terminar com ele em algum momento, esperava ter minha casa comprada quando isso acontecesse, mas comecei a acreditar que precisaria fazer isso para tê-lo fora de minha casa naquela manhã.

Apresentar meus peguetes aos meus filhos era um limite que eu não estava disposta a atravessar por ninguém, muito menos em troca de um sexo meia boca.

Vesti meu roupão e bati na porta do banheiro.

— Harry, por favor — pedi.

O chuveiro finalmente desligou e respirei aliviada. Aguardei para vê-lo sair com a toalha que lhe dei enrolada em sua cintura. E a minha sendo esfregada em seu cabelo.

Fiquei com menos paciência ainda.

— Sim? — fez-se de desentendido.

— Pode ir embora, por favor? — insisti. — As crianças já estão chegando e não quero que eles te vejam aqui.

Harry franziu a testa, como se sequer tivesse percebido que era meu intento desde o começo dos meus pedidos.

— Por quê? — perguntou. — Se a gente está junto, acho melhor eu conhecer eles, não?

Tentei manter minha expressão o mais pacífica possível, mas se tinha algo que não gostava de negociar era sobre a inocência dos meus filhos.

A minha foi arrancada muito cedo e eu não permitia que ninguém afetasse a deles.

Sem contar que, se eu quisesse apresentar alguém aos meus filhos, não seria numa manhã pós-sexo.

— Nós não estamos juntos — fui mais dura do que pretendia. — E talvez não devessemos nos ver mais.

O ar despreocupado e provocador de Harry se desmanchou às minhas palavras. Minha toalha foi largada no chão de qualquer jeito, aos nossos pés e encarei-a, ainda mais irritada ao perceber que seria incapaz de usá-la novamente, mesmo após uma boa lavagem.

— O que foi que você disse? — perguntou.

— Disse que a gente não devia mais se ver — repeti, sem medo, com a experiência de quem tinha terminado mais relacionamentos do que gostaria. — Foi divertido, você é um cara legal, mas eu realmente não tenho interesse em nada sério. Então, por favor, você pode ir embora?

Ele fez uma careta e, com o rosto cheio de deboche, deu um encontrão em mim e recolheu sua roupa, que eu já havia dobrado nos pés da minha cama. Respirei fundo, satisfeita em não ter que passar por uma discussão acalora da.

Ele se vestiu e saiu do quarto em passadas longas e barulhentas. Segui-o escada abaixo e não me incomodei de acompanhá-lo até a porta. Ele parou, com a mão na maçaneta, e virou-se para mim.

Então ele era aquele tipo de cara. O dramático.

— Eu teria dado o mundo inteiro pra você — disse. — Mas você não soube dar valor.

— Eu não preciso que ninguém me dê o mundo — retruquei, imediatamente. — Tudo que eu tenho hoje, fui eu que conquistei. Se eu quiser o mundo, vou lá e pego.

Ele tinha mais coisas para dizer, eu sabia. Talvez quisesse me xingar, me chamar de fria, mesquinha ou fazer ameaças vazias, mas a verdade precisava ser dita: Harry não era do tipo ruim de homem, só era um pouco machista demais para o meu gosto. Queria uma garota mais submissa para cuidar dele enquanto ele cuidava dela. Viu meus TOCs e acreditou que a garota era eu.

Então, mesmo frustrado, concordou com a cabeça e saiu da minha casa sem dizer mais nenhuma palavra.

Joguei contra o sofá da sala, pensando se não seria cedo demais para tomar uma boa dose de vodka. E tão logo quanto estiquei minhas pernas na mesa de centro, a campainha tocou.

Levantei-me, irritada, achando que Harry esqueceu alguma coisa ou se deu conta que ainda tinha algo para jogar na minha cara, mas abri a porta para encarar Christopher com uma expressão divertida e fui atingida por duas bolas de energia.

— Bom dia, Tish — a voz de Chris era leve e sua expressão se mantinha positiva, mas as palavras saíam emanando ciúme de qualquer jeito. — Dormiu bem?

Olhei para trás, apenas para ver as crianças subindo pela escada, carregando suas mochilinhas para qualquer compromisso urgente que poderiam ter em seu quarto.

— Não tanto quanto eu gostaria, confesso — me apoiei no batente da porta.

Senti o olhar dele me analisar dos fios do meu cabelo bagunçado até o dedo do pé, sempre descalço dentro de casa.

— Eu já te falei como curar sua insônia — sua voz ondulou, soando como uma das sacanagens que sussurrava em meu ouvido quando tomava meu corpo como uma extensão do seu. — Mas você anda um pouco resistente às minhas sugestões.

— Talvez eu devesse aceitar na próxima vez — deixei escapar.

Vi o sorriso de lado que tanto adorava se formar no rosto de Chris.

— Vou manter isso em mente — respondeu. Então, como uma chave que virava, apontou com o nariz para a escada, atrás de mim. — Emma não está muito bem da barriguinha. Comeu muita porcaria na festa.

E começou a listar todos os acontecimentos que se passaram com as crianças em sua casa, desde as brincadeiras, tudo que haviam comido até às medicações que deu à Emma para ajudá-la a melhorar.

Capítulo 28

Como faz com Ela

Eu sei que tá querendo me levar na conversa
Mas se você soubesse o que realmente me interessa
É saber se você faz amor comigo como faz com ela
Se quando beija, morde a boca dela
Fala besteira no ouvido, como faz comigo

Deixei Emma e Elliott sentadinhos assistindo corridas de bola de gude. Os dois eram difíceis de agradar separados, juntos eram quase impossíveis, mas David nos mostrou aquelas corridas há cerca de um ano e eles adoravam apostar em quem venceria. Era basicamente o único momento em que conseguia fazer qualquer coisa útil longe deles quando ficava sozinha, como um bom almoço.

— Cheguei! — o grito animado de Savanah ecoou pela casa inteira e logo Elliott e Emma estavam gritando também, pulando por cima dela.

— Ei, ei — ralhei com eles. — Qual a regra número um dessa casa?

— Primeiro banho — meus filhos responderam, desanimados, soltando Savanah, que riu.

Eles não tiveram a experiência, mas nós duas passamos quase dois anos trancadas em casa por conta uma pandemia, então não custava nada tomar cuidados extras, principalmente quando Savanah vinha de outro país, onde encontrou gente de todo o mundo em um congresso estudantil internacional (mas, no geral, era só europeu).

— Foi bom o congresso? — perguntei.

— Foi muito bom — respondeu. Sua ênfase me fez acreditar que nada tinha a ver com seus aprendizados. — Mas depois eu te conto. Deixa eu ir lá.

Ela deixou as malas no cantinho da sala e subiu até o banheiro comum do segundo andar.

— O verde ganhou — Emma anunciou.

Eles perderam o final do vídeo e encaravam a TV, frustrados.

— Então eu ganhei — Elliott declarou.

— Você estava torcendo pro vermelho — ela empurrou ele de leve.

— A gente nem viu o final, como é que a gente vai saber se a gente perdeu mesmo? — Elliott pisou no pé da irmã.

Me meti no meio antes que a guerra iniciasse.

— Querem que eu volte do começo? — perguntei.

— Não tem graça — Emma reclamou.

— Sim — Elliott respondeu.

Queria que meus filhos tivessem uma relação como eu e Michael, mas parecia eu e Hope em pé de guerra, tudo de novo.

Consegui convencê-los a assistir uma corrida nova e voltei para o almoço. Ouvi Savanah descer alguns minutos depois e conversar com os gêmeos, mas logo ela chegou até a cozinha.

— Eles são viciados nesse troço mesmo... hum, que cheiro bom.

— É só bife com fritas — ri.

— E arroz com feijão — declarou. — Tudo que eu precisava depois de uma semana na Suiça.

— Como são os suíços? — perguntei, sabendo que era algo assim que queria me contar.

— Os suíços eu não sei, mas os gregos...

O que começou como uma conversa sobre o namoradinho grego de Savanah, acabou com uma descrição detalhada de toda a estrutura e os debates do congresso, enquanto ela furtava batatinhas e eu estapeava sua mão. Savanah tinha, agora, a idade em que voltei para a Inglaterra e estourei com a banda. Ela estava quase se formando do seu estudo integral de relações internacionais em Oxford. Já devia ter acabado, mas, quando Emma e Elliott eram pequenos, eu precisava de mais ajuda e ela só conseguia estudar por meio período. Tinha mudado para o integral há quase três anos e agora faltava menos de um para se formar.

— Então foi bom? — perguntei, desligando o fogo e preparando a comida para ser retirada.

— Foi, sim — declarou. — Acho que posso conseguir uma indicação pro mestrado.

Comemorei, largando as panelas para lhe dar um abraço bem apertado. Maria morreria de orgulho assim que soubesse.

— Tá, tá, não é como se fosse uma grande coisa — disse, embora eu discordasse. — Mas me conta, então, dessa viagem.

Comecei a lhe deixar a par do plano de viagem que Rose insistia em fazer com as crianças.

*** 

Estava com as pernas esticadas no sofá, curtindo meus últimos momentos de silêncio. Era o último dia de Emma e Elliott na escola e logo começaríamos a gravar. Piper e Hope estavam, naquele momento, em uma reunião para negociar com os compradores da gravadora, mas pensando no destrato porque o acionista principal do grupo que assumiria era conhecido por práticas abusivas no mercado e não queríamos nos vincular. Michael nos ofereceu a antiga e desativada gravadora deles, caso fosse nossa vontade, mas ainda tínhamos esperança de conseguir algo durante a pré-produção do álbum ou ao apresentando o conceito dele para nossas opções de novas gravadoras.

A campainha tocou e eu me sobressaltei, sem esperar. Savanah sairia da faculdade direto para buscar as crianças, mas tinha a chave e Chris só passaria para pegar eles para passar o fim de semana mais para o fim do dia.

Era o combinado, pelo menos.

Abri a porta, dando de cara com Christopher sorrindo, tentando parecer inocente, mas seu olhar lançou uma fisgada direta e profunda no meu baixo ventre.

— Cheguei cedo? — perguntou, piscando.

Ele sabia muito bem que sim. Sugeri que buscasse as crianças na escola e ele disse que tinha um compromisso e só poderia mais tarde, mas lá estava ele, no meio da tarde, horas antes do combinado, parado à minha porta.

Dei-lhe espaço.

— Pensei que estava ocupado.

Ele riu, baixinho.

— Estava resolvendo as pendências da viagem. Comprei um pacote de viagens pra quatro e estou pensando em ir junto pra deixar Savanah com uns dias de folga — explicou. — Mas acabei cedo. Pensei em vir até aqui.

— Sei — comecei a caminhar em direção à cozinha. — Quer beber alguma coisa?

— Só um suco ou refrigerante porque vim de carro — concordou. Fui até a geladeira e tirei uma garrafa de suco de laranja, servindo nós dois. — Eu... fiquei pensando...

— Meu corretor — respondi automaticamente, querendo evitar aquela conversa.

Chris riu. Bebeu o suco de laranja, deixando a tensão se acumular no lugar.

— Todos os seus corretores saem de cabelo molhado da sua casa? — perguntou.

— Não te interessa — retruquei.

Ele suspirou e bebeu mais um pouco de suco. Bateu o copo na mesa, começando a andar em minha direção.

— Eu sei... é que eu queria saber... — Chris estava se aproximando perigosamente de mim, como um felino a dar um bote. Me peguei segurando a respiração e dando um passo para trás. — Fala pra mim — pediu, me encurralando na parede ao lado do fogão. — Ele te beija como eu?

Senti meu corpo inteiro ondular para se moldar ao dele ao encostarem-se, naquela dança que ensaiamos tantas vezes e sabíamos de cor qual seria o próximo passo do outro.

— Chris... — alertei, fraquinho.

Ele não me ouviu e eu já sabia que não ouviria. Senti sua boca em meu pescoço, beijando, mordendo e sugando para deixar marca. Levei minhas mãos até seu ombro, arfando e tentando conter um gemido, o que foi um esforço torpe, porque uma de suas mãos escorregou para dentro do meu vestido de primavera e buscou meu centro.

Chris não conteve seu gemido incrédulo ao encontrar nenhum tecido cobrindo meu sexo.

— Ele te toca como eu? — perguntou.

Testou minha umidade que já começava a se acumular e, sem rodeios, enfiou dois dedos dentro de mim em uma frequência de velocidade alarmante.

Me contorci por inteiro, sentindo meu corpo implorar por mais, desesperado pela frustração de algumas noites atrás.

— Fala pra mim que não me quer — provocou. — Fala. Fala que não e eu vou embora.

Ele estava investindo seus dedos lentamente dentro de mim e eu me sentia derreter ao seu contato. Escorreguei minhas mãos do seu ombro até o rosto, prendendo-o entre elas.

— Cala a boca e me beija, porra — exigi.

Chris nem pestanejou e grudou seus lábios nos meus, mas não me deu sua língua.

Se afastou com um sorriso arteiro.

— Tem certeza? — perguntou, tão perto que sentia a quentura do seu exalar enquanto ainda me acariciava em meu centro. — Você sempre gostou das minhas sacanagens.

Tive cabeça o suficiente para rir, sentindo-o sair de dentro de mim e começar a acariciar meu clitóris. Suspirei, jogando a cabeça para trás e seus lábios voltaram ao meu pescoço.

— Essa tua boca suja… — soltei, arfando.

Chris finalmente me beijou a boca com tudo que tinha; sentia o amor na delicadeza que se moldava ao meu corpo, o desejo na voracidade que sua língua se movia, a urgência na velocidade da carícia de seus dedos.

Um gemido mais alto escapou de nosso beijo e Chris encerrou-o grunhindo.

— Porra, eu fico duro só de pensar em você — declarou. — E aí eu fico duro o tempo todo.

Mordi sua boca, ainda sentindo sua carícia, um pouco mais lenta, explorando minha umidade.

— É? — perguntei. Minha mão buscou sua ereção disfarçada pela calça, tão rígida que qualquer vestígio de maciez já não lhe restava. — Hm… Acho que é verdade.

As narinas de Chris inflaram à minha provocação. Sua carícia parou, perdendo o foco, mas não me importei porque algo mais interessante estava para começar.

Abri o botão da sua calça e corri o zíper para baixo, acariciando sua dureza por cima da cueca, mordendo o lábio e encarando Chris.

Eu não estava para brincadeiras, mas Chris também não. Não aguentou nem duas apertadas e pegou minhas duas mãos, estendendo-as sobre minha cabeça. Empurrou seu quadril contra o meu e senti-o lá. A cabeça de seu pênis escorregando pela minha umidade, buscando a minha entrada.

Fechei os olhos, minha respiração falhando. Ele mordeu meu queixo e, com a mão livre, apertou um de meus seios.

— Fala pra mim, fala? — pediu. Ele tirou a mão do meu seio e escorregou para o meio de minhas pernas, para ajudar a se firmar no lugar certo. — Fala pra mim o que eu quero ouvir.

— O quê? — sussurrei, totalmente absorta. Diria qualquer coisa que ele quisesse naquele momento.

— Diz que me ama — pediu. Apertei minhas mãos ao redor da sua, sentindo dor pela sua ausência, a tensão, meu coração, tudo. — Diz que não consegue parar de pensar em mim.

— Eu... — as palavras se perderam assim que ele me tomou por inteira de uma vez só, sem medo de instigar a maior velocidade que conseguia, soltando minhas mãos para me pegar pela cintura.

Grunhi e apertei minhas unhas em seu ombro. Seu olhar se mantinha no meu e me capturou assim que consegui lhe encará-lo.

Percebi o óbvio. Eu não precisava dizer nada porque ele sabia e sempre soube. Só queria ter certeza, só queria saber se ainda estava ali depois de tanto tempo, depois de tantas coisas que deram errado.

Deixei que visse através do meu olhar e ele diminuiu a velocidade ao perceber a emoção transbordar em meus olhos. Encostou a testa na minha e soltou toda a tensão de seu corpo.

— Mais — exigi, porque meu corpo não queria fazer amor. Eu precisava do pior tipo de sexo, sujo e desesperado, pra conseguir lidar com aquilo.

— Mais? — Ele riu. — Mais forte? Mais rápido? — sugeriu, contra minha orelha, descendo arrepios da base da minha nuca até os pelinhos do pé. — Então vira essa bunda gostosa pra mim que eu vou te comer do jeito que você gosta.

Eu podia ter me desmanchado alí mesmo, logo após seu pedido, quando sugou minha boca e saiu de dentro de mim para me dar um tapa na bunda, avaliando minha movimentação entre a prisão de seus braços.

Ele se encaixou no topo do vinco entre minhas bandas, se aproveitando da umidade acumulada em seu pênis para escorregar para baixo, enquanto me empinava. Ele encaixou-se na entrada entre minhas nádegas e empurrou só um pouquinho pra dentro, escorregando a cabeça para dentro e me fazendo gemer, só para mostrar que podia e queria, mas logo saiu para descer um pouco mais e voltar exatamente para onde estava antes.

Chris não teve piedade e firmou-se em mim com tudo que podia, forte, rápido, exigente. Comecei a sentir a pressão interna em meu baixo ventre inchar, avisando que iria se desfazer e soube que meu prazer ia vazar e escorrer pelas minhas pernas.

— É assim que você gosta, não é, safada? — perguntou, estourando um tapa em minha bunda, provocando espasmos. — Isso, morde meu pau com sua buceta, porra.

Ele aumentou só um pouco mais e eu senti meses de frustração sendo puxados para dentro da bolha do meu prazer. Comecei a tremer, sentido-o em seu limite. Eu iria a qualquer momento agora. Só mais um pouquinho...

A porta de casa bateu e senti o ar inteiro faltar.

— Chegamos! — Savanah gritou.

Chris soltou um palavrão qualquer e saiu de dentro de mim, arrumando sua calça rapidamente. Dei alguns passos moles até a pia e fingi lavar louças limpas quando, na verdade, me mantinha em pé por estar apoiada nas bordas de mármore frio.

Emma e Elliott entraram na cozinha para me cumprimentar e deram de cara com o pai, sentado à mesa, disfarçando algo que suas mentes nunca poderiam avaliar, mas Savanah percebia. Arqueou as sobrancelhas em minha direção em uma pergunta muda enquanto meus filhos abraçavam e beijavam o pai, que fazia o melhor que podia para disfarçar.

— A regra da casa? — Savanah sugeriu.

Os dois pequenos fizeram caras idênticas de decepção e acompanharam Savanah para o segundo andar, para tomar banho.

Chris se levantou da cadeira e senti-o resvalar a mão em meu braço para me consolar.

Me encolhi, dando um pulo para longe de seu toque porque provocou tantos choques em minha frustração que chegava a doer no vazio do espaço que ele ocupava apenas alguns minutos antes.

— Por favor, não — implorei.

Ele me encarou por alguns momentos, sem saber o que fazer e, então, em um acenar discreto de cabeça, me deixou sozinha na cozinha.

Capítulo 29

Te Consertar

Luzes te guiarão até em casa
E aquecerão seus ossos
E vou tentar te consertar

Hye tinha acabado de chegar de viagem e apareceu direto para a reunião, ainda vermelha como um tomate e de óculos de Sol na cara.

— Bom dia, piranhas! — declarou.

Estava atrasada, mas em vista que a nossa futura empresária ainda não havia chegado, não nos importamos tanto.

— Isso são horas? — Piper provocou. — Você costumava ser mais pontual, Hye.

— Ah, vai pra merda — reclamou. — Perturba minha paciência que eu juro que dou seu presente de aniversário pra Tisha.

— Como foi que eu vim parar nessa discussão? — Perguntei à Alika, que deu de ombros.

— Spoiler: é um desses skates flutuantes — Hope avisou, levando um soquinho de Hye. — Emma vai adorar.

— Aí, meu Deus, você jura? — Piper estava pulando na cadeira. — Não vou falar mais nada, vou ficar quietinha.

— Deus me livre — fiz uma prece mental para que Emma jamais descobrisse sobre aquele skate flutuante.

— Nossa, mas esse skate é... — Piper já tinha começado a defesa do skate quando a porta se abriu e Susan Park entrou, acompanhada de uma outra mulher de terninho, segurando algumas pastas.

— Me desculpem pelo atraso — ela rodeou a mesa e sentou-se em nossa frente. — Precisei da ajuda da Izabel para analisar o contrato e o destrato de vocês. Izabel é nossa advogada sênior e não tem boas notícias.

Me contorci na cadeira, desconfortável com a força das palavras.

— Então, meninas... — Izabel começou a distribuir as pastas para nós e peguei a minha, abrindo e reparando que haviam partes grifadas em todo aquele texto letigioso. — Estudei o contrato de vocês com o máximo de cuidado porque ele é cheio de armadilhas e vocês, infelizmente, caíram em algumas delas. Na página 5, na cláusula 9°, vocês podem ver que há um jogo de palavras que grifei. Em língua jurídica, confere o contrato de exclusividade total por 10 anos. Tudo que vocês produziram e produzirão até completar a data de dez anos da assinatura do contrato, é direito da gravadora. Há outras armadilhas, se vocês forem na página 9, o texto grifado chega a vincular a marca de vocês, The Travellers, à gravadora e isso pode significar uma batalha jurídica pela marca, até mesmo após a assinatura do destrato, que fizeram bem em trazer para nós antes de fechar.

Sentia minha garganta fechar e a respiração estava ficando cada vez mais difícil.

— Na verdade, com esse contrato, vocês cederam direitos totais às músicas que produziram e gravaram, mesmo as que não foram para os álbuns, pelo tempo de duração do contrato — Susan tentou explicar, com calma. — E se tivessem assinado o destrato, teriam cedido esses direitos por mais dez anos como forma de indenização. Não poderiam tocar suas músicas sem pagar royalties à gravadora.

— Mas são nossas músicas — Piper disse, baixinho.

— Eu sinto muito — Izabel disse. — Esse contrato de vocês é uma bela porcaria. A maioria dos contratos de iniciantes é assim. Não há muito que eu possa fazer a não ser tentar negociar um destrato melhor. Mesmo assim, as músicas antigas de vocês vão ficar presas, cada uma por dez anos. Depois disso, vocês podem regravar do jeito que preferirem, mas eles ainda detenterão os direitos de reprodução das versões antigas.

— Em resumo — Susan falou. — Em três anos, vocês poderiam regravar Balada dos Corações Partidos e Volta ao mundo, os dois primeiros álbuns. mas só recuperariamos o flores na estrada em oito anos.

Eu sentia que ia morrer. Estávamos todas chocadas demais para dizer alguma coisa.

— Minha recomendação para vocês é que talvez seja melhor deixar o contrato vencer sem renovação ao invés de fazer o destrato. Isso pode facilitar a liberação da marca da banda. Enquanto isso, posso mover algumas ações para diminuir o tempo do contrato por práticas abusivas e tentar recuperar o restante dos direitos, o que pode não dar em nada, mas vai expor esses desgraçados e talvez eu consiga recuperar a marca antes. O que vocês acharem melhor.

Percebi que elas estavam esperando uma resposta, mas nós continuavamos em silêncio. Eu geralmente era a porta-voz da banda, mas me sentia presa dentro das minhas barreiras metais, me jogando contra as paredes em desespero, derretendo toda e qualquer aparência de normalidade que conseguia transmitir. Sentia que a qualquer momento, começaria a tremer e me sacudir como nas minhas piores crises.

Hope, que sempre assumia quando eu não estava bem, estava em choque. Encarava as próprias mãos, sem encontrar sentido em nada. Não me socorreria, se eu precisasse, porque ela também estava encarando seus piores pesadelos.

— A gente... a gente vai ter que analisar — foi Hyelin que respondeu, a voz trêmula do choro contido.

— Nós sentimos muito por isso — Susan disse, se levantando. — Podem tomar o tempo que precisarem. Nossa parceria ainda está de pé, se assim desejarem.

Ela e Izabel nos deixaram sozinhas com um clique de porta e todo barulho na sala morreu. Não havia nada além do vento forte da primavera batendo contra as janelas do 12° andar daquele prédio espelhado no centro de Londres, nada além das respirações entrecortadas e os choramingos.

— Acabou — Piper declarou.

— Sempre achei que os dez anos de exclusividade era porque eles achavam que éramos boas e queriam nos garantir com eles — Alika falou. — Achava que esse contato era incrível — ela bateu com sua pasta sobre a mesa. — Que belo pedaço de bosta.

— Como que gente foi tão burra? — Hope perguntou.

— Burra não — Hye discordou. — A gente confiou demais. Como o Thomp não viu isso?

— Vai ver ele viu — Hope rasgou a raiva em seus dentes. — E achou que não ia acontecer nada. A maioria das bandas não dura tudo isso.

— Foi uma aposta — Alika concordou com a teoria de Hope

— E nós perdemos — Piper finalizou.

Espalmei as mãos na mesa e forcei meu corpo para cima. Pus-me de pé com dificuldade e Hope percebeu, espalmando a mão em minha cintura.

— Preciso dos meus remédios — consegui dizer. — Depois conversamos.

Ninguém me parou ou me seguiu, enquanto eu apertava o botão do elevador, trêmula. Tive a cabeça de pegar meu celular e digitar uma resposta para Chris.

Chris: Avisa quando chegar em casa. Preciso te devolver um pacote duplo de confusão.

Eu: Pode ficar com eles mais um dia? As coisas foram uma merda hoje e eu não estou me sentindo bem.

Ainda estava no elevador quando a resposta dele chegou.

Chris: Na reunião? O que você está sentindo?

Eu: Sinto que vou ter uma crise. Não sei se consigo dirigir, mas preciso ir pra casa e preciso dos meus remédios.

Chris: Fica aí. Não pega o carro. Vou resolver.

Meu coração estava começando a acelerar do jeito errado e sentia que o ar não estava preenchendo meus pulmões. Ao contrário do que Chris pediu, fui direto para o carro, entrei e fechei a porta, mas não liguei.

Me encolhi no banco traseiro e comecei a chorar. Todas as minhas músicas tudo o que já tinha feito... nada era meu. Sangrei meu coração para fora, ganhei bolhas nos meus pés e calos nas minhas cordas vocais, mas nada era meu.

Uma lista com todas as coisas das quais abri mão por aquela carreira começou a passar na frente dos meus olhos, me acusando de ser burra e negligente.

Não sabia quanto tempo se passou quando ouvi meu celular começar a tocar.

"Mas puta que pariu, onde você está?" Michael berrou ao telefone. "Hope e Chris me mandaram atrás de você, mas..."

— Eu tô no estacionamento — falei, baixinho. — No meu carro. 7G.

"Ok" se acalmou. "Tô indo te pegar".

Ele chegou correndo, puxando Hope pela mão. Abriu a porta do carro na parte traseira e a jogou do meu lado no banco.

Parecia 2018 de novo.

Hope cruzou os braços ao meu lado, parecendo furiosa. Eu só conseguia sentir todas as minhas forças se esvaindo do meu corpo.

— Bem? — Michael perguntou, da janela do carro, com nós duas trancadas lá dentro.

— Preciso dos meus remédios — repeti. — Vou precisar do calmante hoje.

— O forte? — Hope perguntou.

— Não. Acho que não precisa ser o forte.

— Beleza, dá pra aguentar uns minutinhos? — pediu. — Esqueci minha habilitação na recepção. Pediram na entrada.

Acenei com a cabeça.

— Vai lá — concordei. Ele partiu correndo e Hope suspirou. — Por que você foi resgatada também?

Hope estava sempre reclamando que Michael gostava mais de mim e eu não via exatamente assim; ele achava que ela era mais independente e só. Tinha medo por nós duas de formas iguais — isso e o fato de que eu não ficava bufando como uma chaleira toda vez que ele me salvava de alguma coisa.

— Falei besteira pra Pip — relatou. — Foi meio feio. Já me arrependi, mas ela estava sendo super pessimista e eu... — ela bufou.

Acenei com a cabeça mais uma vez, sentindo meu corpo funcionando de um jeito estranho. Minhas bochechas pareciam mais sobressalentes e meu maxilar estava pesado, do jeito que ficava quando queria travar.

— Não sei como vamos sair dessa — sussurrei. O assunto me fez voltar a tremer e ela suspirou, descruzando os braços para tampar minhas orelhas.

— Deixa pra lá — disse, com carinho. — Não vamos falar disso agora. Desculpa.

— Muita coisa — Respondi, apenas.

— Muita coisa — Hope concordou. — Mas vamos traçar um plano depois. Primeiro só vamos nos acostumar com a ideia.

Não sabia se um dia conseguiria me acostumar com aquilo, mas Michael voltou naquele momento, entrando no banco do motorista e ligando o carro.

— Bom, primeiro casa da Tish, depois minha casa — explicou o caminho.

— Eu tenho uma bebêzinha, Mike — Hope reclamou.

E depois dizia que Michael me preferia, mas toda vez que ele tentava ajudar, ela fazia uma confusão diferente.

— E eu já avisei seu marido pra levar ela pra lá — ele deu a partida, ignorando as reclamações de Hope. — E também avisei ao Christopher para levar os gêmeos. Vamos fazer uma grande reunião.

Michael não sabia o que tinha acontecido. Só queria ajudar.

Mas a ideia de ter a família toda reunida, de todas as crianças correndo, de mamãe aparecer com o novo namorado e uma garrafa de vinho chique que tinha gosto de podre,já me dava dor de cabeça.

— Eu vou ficar em casa mesmo, Mike — murmurei. — Acho que quero ficar sozinha.

Os dois me encararam como se eu fosse alienígena.

— Tish, você vai...

— Ficar bem — concordei. — Só vou tomar o calmante e dormir.

Mas os dois protelaram ao me deixar sozinha em minha casa, a começar porque estavam com meu carro, mas seguiram adiante.

Fui até meu quarto, no cofre portátil que ficava em cima do armário do banheiro, digitei a senha e passei o dedo pelos remédios controlados que guardava ali. Haviam alguns remédios diários, mas a maioria eram para emergências, tanto minhas quanto das crianças. Três tipos de calmante estavam ali, o natural, que eu usava para dormir, as vezes. O forte, que era para crises e eu quase nunca usava. E o comum, que era para momentos em que me sentia prestes a surtar, mas ainda não estava lá. Peguei ele. Enchi meu copo na torneira e engoli o comprimido.

Sabia que, agitada como estava, ele não me faria dormir, mas me controlaria o suficiente para me acalmar e talvez eu tomasse o natural para dormir quando viesse a hora.

Sentei em minha cama e me recostei. Liguei a TV e procurei algo divertido para assistir, para distrair a mente e me jogar para longe da problemática de ter perdido todo e qualquer direito sobre minhas composições dos últimos sete anos.

Sete anos de trabalhos jogados no lixo.

Balancei a cabeça, afastando os pensamentos. Escolhi a programação e tentei relaxar.

Meia hora depois, fui interrompida em uma das cenas finais do episódio da série por barulhos no primeiro andar. Desci as escadas me segurando com força no corrimão porque me sentia um pouco tonta. Christopher estava na sala com as crianças, conversando com eles sobre algo que Emma não prestava atenção e por isso foi a primeira a me ver. Os dois correram em minha direção e abraçaram minhas pernas.

— Mamãe triste — Elliott disse.

Um sorriso se abriu imediatamente no meu rosto.

— Não, Eli — Emma puxou o irmão. — Papai falou pra gente deixar a mamãe quietinha.

Abaixei-me para ficar na altura dos dois, mesmo me desequilibrando um pouquinho.

— Um abraço nunca faz mal — eu disse. E os dois correram pra me abraçar de novo.

Tive que conter as lágrimas porque só conseguia pensar no quanto mundo era cruel e injusto e que não sabia se conseguiria proteger meus pequenos daquilo tudo.

— Tá bom, já chega — Chris alegou, me vendo tombar para trás. — Vão lá ver desenho, vão.

Os dois demoraram um pouco mais para me soltar e correr para sala. Ouvi Elliott pedindo para a assistente virtual ligar a TV em um de seus desenhos favoritos.

— Me ajuda aqui — pedi.

Chris encaixou seus braços nos meus e sustentou meu corpo mole para cima. Apoiei-me na parede atrás da sustentação.

— Seu irmão esqueceu de me avisar que você não quis ficar na casa dele — me explicou, mesmo sem nenhum pedido meu. — Então eu trouxe seu carro.

— Valeu — respondi.

— Mas ele me disse que você quer ficar sozinha, então eu posso levar as crianças comigo de volta — sugeriu. — Ou posso ficar aqui até Savanah chegar. Ela vem hoje?

— Vem, mais tarde — concordei. Respirei fundo e prestei atenção na pequena briga que acontecia pela escolha do desenho e meu coração se apertou porque, apesar dos meus planos terem mudado, os pequenos iam viajar e ficar duas semanas longe de mim. — Pode ficar — permiti.

Chris me olhou de cima abaixo, avaliando cada uma das minhas nuances.

— Quer conversar? — perguntou. Neguei com a cabeça, sentindo a emoção voltar à tona. Ele passou os braços ao meu redor e beijou o topo da minha cabeça. — Eu sinto muito. — ele se afastou, passando os polegares pelas bolsas embaixo dos meus olhos. — Vou ficar aqui na sala com as crianças. Pode ficar sozinha no seu quarto, se quiser. Você comeu alguma coisa? — neguei de novo. — Vou pedir algo também. Levo pra você.

Tinha me esquecido daquele lado de Chris. De ser cuidadoso comigo, mas respeitando os meus desejos, um pouco diferente dos cuidados da minha família; o desajeito de Hope, o desespero de mamãe e o controle de Michael. Chris, como eles, viu o meu pior, mas onde eles viam fraqueza, ele enxergava minha força.

— Pode me ajudar a subir? — pedi. — O calmante... me deixou um pouco tonta.

Ele concordou com um sorriso.

***

Acordei no meio da noite porque o calmante me derrubou em algum momento da tarde. Mesmo um pouco tonta, me levantei e fui até o quarto das crianças, apenas para vê-los adormecidos, tranquilos e serenos, como se nada no mundo fosse lhes fazer mal. E, dependendo de mim, não faria mesmo.

O barulho baixinho de ondas do mar me informava que Savanah estava em seu quarto, adormecida também. Sempre dormia ouvindo sons da natureza e o mar era um de seus favoritos.

Voltei para o quarto, respirei fundo e desbloqueei meu celular. Haviam poucas mensagens; uma de Chris avisando que buscaria as crianças no início da semana para viajar e que eu seria bem vinda se decidisse ir com eles, também um pedido para avisá-lo se eu precisasse de algo. Michael enviara alguns emojis para ver se obtinha alguma resposta. Respondi com um emoji também, um solzinho. Estava quase bloqueando o aparelho quando chegou uma mensagem nova de Piper.

Pensei em não abrir porque não queria ver nada sobre a banda, mas lembrei que Hope ele haviam brigado e pensei que talvez quisesse desabafar e me viu online.

"Amo você. Obrigada por tudo. Sinto muito".

A mensagem me deu um calafrio. Não parecia ser boa coisa.

Liguei imediatamente para ela... e caiu na caixa postal.

— Merda — xinguei, me levantando e vestindo o roupão por cima da camisola.

Meus passos ainda estavam desajeitados quando cheguei na cozinha e não sabia se era uma boa ideia dirigir, mas eu não tinha tempo para pedir ajuda.

Peguei a chave do carro que Chris deixou pendurada ao lado da porta e sai correndo pelo gramado mesmo.

Precisei dirigir um pouco mais lenta, apesar da urgência, cerrando os olhos para enxergar através do embaçado.

Estacionei o carro de qualquer jeito sobre a grama da casa de Piper, vendo outro carro parado ali e parecia ser o de Alika. Ouvi um estrondo e um grito dentro da casa e corri, procurando a origem. A porta da frente estava arrombada e segui a voz alta de Alex, rugindo ordens.

Eles estavam no banheiro. Meu cérebro não computou toda a visão, mas corri para ajudar. Encaixei-me embaixo de Piper, segurando-a em meus braços enquanto Alex tentava fazer um torniquete em seus pulsos e Alika, segurando a pequena Anessa em seu colo, ligava para a ambulância aos prantos.

Chorando sem parar, segurei os braços de Piper para o alto enquanto Alex checava os sinais vitais dela. Lhe deu tapinhas no rosto e ela se mexeu um pouco por si só. Só então ele me encarou. Estava tremendo tanto quanto eu, tão envolvido em gatilhos quanto eu, mas nossa amiga precisou de nós e ela primeiro.

Depois a gente.

A ambulância chegou rápido e nos afastaram para assumir. Fizeram os primeiros socorros e a levaram para a ambulância enquanto o dia começava a ficar amarelado com o nascer do Sol.

Alika foi junto porque era a que estava mais limpa.

Alex entrou em seu carro e eu no meu.

E eu precisava dirigir para casa com mais sangue em mim do que estive na cozinha de minha mãe.

Capítulo 30

Quando fui seu Homem

Hmm, jovem demais, tolo demais para perceber
Que eu deveria ter lhe comprado flores e segurado sua mão
Deveria ter lhe dado todas as minhas horas quando eu tive a chance
Ter levado você a todas as festas, porque tudo o que você queria fazer era dançar

Christopher

— Já vai — gritei para a porta, irritado. Mal devia ser 6 horas da manhã e alguém apertava minha campainha como um maníaco e provavelmente não sobreviveria até o final do dia, mas aí abri a porta e dei de cara com Savanah, a garota que vivia com Tish e nos ajudava com as crianças. Franzi a testa. — Bom dia?

— Tish pediu pra eu trazer as crianças pra você — anunciou.

Eu estava confuso. Devia ser o sono.

— Mas eu só vou pegar eles em dois dias...

Os gêmeos estavam adormecidos em suas cadeirinhas no carro de Savanah. Franzi a testa, sem entender.

— Christopher — ela estalou os dedos na frente dos meus olhos. — Ouviu? Não sei o que houve, mas ela chegou em casa coberta de sangue.

— Ela o quê? — perguntei, alarmado.

— Coberta em sangue. Muito sangue. Não parecia dela, mas... eu estava tomando café da manhã pra... deixa pra lá. Eu fiquei assustada. Ela mandou eu trazer as crianças pra você e se trancou no quarto.

— Puta merda — murmurei.

Estava começando a acordar na marra. Se a Tish estava com tanto sangue assim, ela...

Não queria nem pensar.

Ela precisava de ajuda.

— Puta merda — Savanah concordou.

— Minha mãe — falei. — Não, merda, minha mãe tá longe demais. Leva eles... — tentei pensar. Michael estava com Hope em sua casa, cheio de crianças. Liah devia estar com eles, Matthew também. Só tinha a minha mãe. — Tem como você ficar com eles aqui? Aqui... — Puxei meu celular e rolei até mostrar o número da minha mãe na tela. — Liga pra minha mãe e explica pra ela que teve uma emergência e eu pedi pra ela pegar as crianças mais cedo. Ela vai pegar o primeiro vôo.

— Tá... — Savanah concordou. — E você...?

— Vou lá ver a Tish — avisei. — Me avisa se precisar de alguma coisa.

Savanah concordou. Parecia estar preocupada também, mas fez o que Tish mandou, tirando os filhos do meio da confusão, seja lá qual fosse.

Puta que pariu. Lembrava do quanto ela tremia quando me cortei me cortei tentando fazer o jantar. E se estava coberta de sangue, não conseguia nem imaginar...

Corri até o carro e parti em direção a casa de Tish antes de Savanah conseguir entrar em minha casa com Emma nos braços.

O carro de Tish estava estacionado do jeito mais esquisito que já vi, com um amassado na traseira e comecei a me perguntar se o sangue não era mesmo dela.

A porta de casa estava trancada, mas eu tinha a chave para emergências desde a primeira crise alérgica de Elliott e resolvi usar, apesar de sempre bater à porta. Subi direto para seu quarto e entrei, ouvindo o barulho do chuveiro.

O choro dela estava alto e de foi cortar meu coração.

Bati na porta do banheiro.

— Tish? — chamei. — Tá tudo bem?

Ela não respondeu. Continuou chorando, sem me dar atenção. Arrisquei virar a maçaneta e a porta abriu.

Ela estava no chuveiro e, apesar do vidro transparente estar cheio de água e sábado, tampando seu corpo, desviei o olhar para o teto.

— Não me olha assim — ela pediu. E repetiu a frase mais umas cinco vezes antes que eu entendesse que não estava falando de seu corpo nu.

— Não estou olhando — avisei. — Posso entrar?

Eu já estava dentro, mas não custava nada perguntar.

— Estou suja — disse. E repetiu a frase mais algumas vezes.

Merda.

Invadi o box sem me conter e avaliei o estrago. Apesar de restar alguma coloração avermelhada em alguns cantos aonde a água se acumulava, não havia vestígio nenhum nela. Nada além de uma vermelhidão assustadora em seus braços.

Segurei suas mãos, impedindo-a de continuar a se esfregar. Ela fez força e chorou mais forte.

— Olha pra mim — pedi e ela me encarou, embora tremesse. — Confia em mim? — ela protelou um pouco, mas concordou com a cabeça. — Você já está limpa e se machucou tentando se limpar. O que restou agora… o que restou agora, você fez com você mesma.

Algumas gotinhas de sangue brotavam de seus pele esfolada e brigavam contra a água, antes de se dissolver.

— Mas... eu tô vendo. Eu tô suja.

— Não está, não — declarei, encarando seu rosto para não deixar meus olhos vagarem pelo seu corpo — Confia em mim. Eu não mentiria pra você, mentiria?

Usei as palavras erradas e me arrependi. Esperei que Tish jogasse na minha cara sobre meus erros do passado, de quando fui um idiota e omiti coisas dela pelo meu benefício.

Mas, ao contrário do que esperava, ela largou a bucha natural no chão mesmo, jogou seu corpo sobre o meu e começou a chorar mais forte.

— Pronto, pronto — murmurei.

Desliguei o chuveiro e a levantei em meus braços para tirá-la dali. Nem todo sangue havia escorrido para o ralo ainda, mas me aliviei em perceber que não era dela e tive medo de perguntar o que aconteceu. Ela também não conseguiria me responder naquele momento.

Enrolei uma toalha em seu corpo. Não queria ser um idiota, não naquele momento, mas meu corpo estava me traindo e tirar a visão do corpo dela iria me ajudar um pouco.

Deu errado.

Assim que a envolvi no tecido felpudo, ela segurou meu rosto e grudou a boca na minha. Minha resposta automática foi corresponder, mas era errado. Ela me disse não duas vezes só naquela semana. Não era o que queria

— Tish — alertei, me afastando. Ela não me ouviu, procurando minha boca outra vez. — Tish, não.

— Por favor — implorou. — Me faz esquecer.

Um arrepio escorregou pela minha espinha. Já escutei aquele pedido antes. Ela dizia que a mente dela clareava um pouco quando estava comigo, mas que se esvaziava por inteiro quando a tocava.

Porra.

Eu não podia me aproveitar dela, mas...

Puta que pariu.

Beijei sua boca com o máximo de autocontrole que podia ter naquele momento. Em passos desajeitados pela água que escorria de minhas roupas encharcadas, depositei-a na cama com cuidado, sentindo suas unhas se entranhando cada vez mais em eu couro cabeludo, criando uma gaiola da qual eu não queria fugir.

— Eu vou... eu vou pegar o seu remédio — me reagrupei para recusar seu corpo.

Ela curvou-se para frente, se sentando na cama. Com as mãos na barra da minha camisa, forçou-a para cima e a jogou no chão com um splash. Aproveitando minha inércia surpresa, levou o lábio ao meu pescoço e desceu até meu mamilo esquerdo, ao que minha ereção reagiu, implorando junto com ela.

— Faz amor comigo — sussurrou, olhando para cima, em direção aos meus olhos.

Eu poderia dar o que ela queria? Nublar a sua mente com as reações do seu corpo, sem me aproveitar daquele momento?

Amanhã, ela se sentiria usada e me mandaria embora mais uma vez.

Mas eu não era capaz de lhe dizer não.

Não lhe negaria um pouco de conforto naquele furacão.

Tracei um plano em minha mente e dei um leve empurrão em sua barriga para deitá-la. Ela estremeceu assim que removi a toalha de seu corpo, suspirando aos primeiros toques.

Apesar do meu desejo, do meu desespero, mantive meus lábios gentis em sua boca, em seu pescoço, descendo pelo seu tronco, seus seios, sua barriga. Cada centímetro de pele que eu desbravava, me deixava apavorado ao reparar na extensão dos machucados de fricção que ela se causou em si mesma.

Ela já estava se contorcendo ao limite quando encaixei minha boca no meio de suas pernas, a língua traçando a linha entre seus grandes lábios com gentileza.

Gemeu alto quando encaixei um dedo em sua entrada e se contorceu a cada lambida, a cada estocada, apertando as pernas contra a minha cabeça, as unhas maiores que o normal em meus cabelos.

Eu conhecia todas as versões do seu corpo. Aquela, ferida e rosada, me assustava. Mas no meio de suas pernas, sabia exatamente o que fazer para que ela se desmanchasse em poucos minutos. E, assim que ouvi seus gritos me informarem que ela chegou lá e estendi minhas carícias até que ela de contorcesse do jeito desconfortável, sai do meio suas pernas para sentar na beira da cama.

A culpa me atingiu com força. Minha ereção doía pedindo por mais, muito mais, mas Tish... Tish não estava em suas capacidades mentais completas e em minha última investida, ela negou.

Eu estava sendo rejeitado há algum tempo já. Mal me lembrava a última vez em que me sentei ao lado dela com a certeza de que estava tudo bem e que no dia seguinte acordaria com ela embolada em meus braços. Que teríamos um encontro na semana que vem. Que estávamos planejando uma viagem para o próximo inverno.

Eu sentia meu coração se rasgar toda vez que olhava pra ela. Toda maldita vez. Repassando tudo que poderia ter feito diferente para que estivéssemos em outro lugar.

Eu sabia que ela não queria casar. Nos meus ossos, eu sabia. Ela franzia o nariz toda vez que ouvia a palavra casamento, mesmo que não falasse nada. Fazia a mesma coisa com todas as palavras que envolviam a paternidade também. Eu vi todas as vezes que Michael e David falavam sobre serem pais.

Eu fiz ela enfrentar as duas coisas de uma vez porque eu queria ter uma família perfeita. Uma família como meus pais foram. Por alguns segundos de cegueira, esqueci que a dela era toda remendada e passei por cima, então ela escapou dos meus dedos e eu…

Passei dos limites.

Era grato que ela conseguisse me perdoar. Que eu pudesse estar ali.

E eu a vi franzir o nariz algumas vezes enquanto escapava da minha cama.

Então eu sabia que aquilo foi um erro fatal. Quando ela saísse daquele torpor e franzisse o nariz pra mim, estava acabado. Seria minha terceira bola fora e jamais teria outra chance.

— Vem cá — chamou. Sua mão deslizou pelo meu tronco exposto, na lateral, provocando os arrepios que estava tentando conter. — Sua vez.

A mão dela foi até o botão da minha calça e a segurei com urgência, a impedindo. Porque se o fizesse, não sabia se poderia me conter.

— Espera um pouco — pedi. — Vou no banheiro e já volto.

A omissão deu certo e, apesar da franzida estranha entre seus olhos, concordou com a cabeça.

Tranquei a porta assim que cheguei lá. Focado em meu intento, não consegui me concentrar em nada além do armário na pia. Acima do espelho, estava o pequeno cofre onde Tish guardava sua medicação. A senha costumava ser meu aniversário, mas nem pestanejei em digitar 2205, o aniversário dos gêmeos, e ela se abriu. A ideia da senha era não ser difícil, para que qualquer um pudesse acessar, menos as crianças.

Tateei a medicação até encontrar o que eu queria, o remédio mais pesado, o que a derrubava em poucos minutos e que ela evitava tomar com todas as forças. Estávamos no caso exato para resolver usá-lo.

Assim que estalei um comprimido em minhas mãos e voltei a guardar o cofre em seu lugar, enchi um copo de água na torneira e me abaixei para a parte de baixo do armário.

Não sabia onde estava, mas com uma mão fechada no comprimido, investiguei a caixinha de primeiros socorros e encontrei uma pomada de queimadura que teria que servir.

Quando retornei ao quarto, percebi que Tish já voltara a si. Sentada, com os braços esfolados em um tom horrível de rosa para fora da coberta e em um triângulo que lhe permitia tampar o rosto com as mãos. Pela movimentação em seus ombros, percebi que voltou a chorar.

Sentei-me na beirada da cama de novo, deixando a pomada em sua cabeceira e ela levantou seus olhos de carvão em minha direção, assustados e molhados, antes de se voltarem para seus próprios braços.

— Eu ainda vejo — sussurrou, assustada.

— Eu sei — eu lhe disse. Não era a primeira vez que a via enxergar sangue onde não existia. Se tornou mais resistente depois da maternidade, mas não imune. — Aqui.

Coloquei o comprimido em suas mãos abertas e lhe estendi o copo. Ela olhou para mim novamente, em dúvida.

— É o forte? — perguntou. Concordei com um aceno e a vi suspirar. Segurou o comprimido entre o indicador e o polegar, levando-o até a boca, mas se pausou. — As crianças?

— Na minha casa, com Savanah — expliquei. — Pedi pra minha mãe vir antes pra ficar com eles. Aposto que ela chega antes do meio dia.

Ela concordou com um aceno e, da tranquilidade de saber que nossos filhos estavam bem, seu rosto se transformou em puro sofrimento e fiquei alerta.

— E... Pi...Pip...per?

Segurei a respiração. Então o sangue era da caçula das Travellers. Senti meu estômago afundar com a informação.

— Ainda não tenho notícias — fingi que sabia de tudo o tempo todo para lhe passar tranquilidade. — Mas vou procurar saber e te conto quando você acordar.

Ela me encarou por um longo momento e acenou um positivo com a cabeça, finalmente engolindo o comprimido. Pegou o copo de água de minha mão e tomou toda.

Ajudei-a a se deitar com cuidado, deixando-a confortável. Ela continuava a me encarar e, apesar da medicação, seu lábio começou a tremer. Segurou meu pulso, chamando minha atenção.

— Me... Me desculpe — murmurou.

Respirei fundo. Ela estava começando a se arrepender do que tinha acontecido, mas achava que era a culpada. Em algum momento, perceberia que era eu e me mandaria embora.

Me curvei sobre ela e lhe dei um beijo. Calmo e casto. Do tipo que era comum entre nós dois, mesmo com o afastamento.

— Eu que tenho que pedir desculpas, meu amor — sussurrei. Exagerei, perdi a cabeça, mas arrisquei pra lhe dar conforto. E estava pronto para as consequências. Se ela se arrependesse, deixaria para pensar nisso depois. — Aqui. Deixa eu cuidar de você — Mostrei a pomada para ela e ela fechou os olhos enquanto eu traçava os espaços rosados de seus dois braços. Assim que terminei, segurei a beirada do lençol que cobria seu corpo. — Posso? — perguntei. Ela olhou em direção as minhas mãos apenas para concordar com a cabeça. Descobri seu corpo até a altura do umbigo porque sabia que era até ali que as marcas estavam. Espalhei a pomada pelas feridas com carinho e voltei a cobri-la. Vendo que estava quase dormindo com o efeito do remédio, tentando ver o que eu estava fazendo, mas piscando demorado, arrisquei. — Onde está a roupa que você estava usando?

Se ela estava tão suja de sangue quanto Savanah relatou, não arriscaria que ela se deparasse com as peças outra vez.

— No banheiro — sussurrou de volta, voltando a fechar os olhos, rendida à medicação. Levantei e beijei o topo de sua cabeça. Senti sua mão em meu pulso, fraquinha. — Não vai embora, por favor — pediu. — Não me deixa sozinha.

— Não vou — respondi imediatamente. — Vou ficar aqui o tempo todo. Se precisar de mim, é só chamar.

Ela concordou com a cabeça mais uma vez e voltei a me sentar do seu lado. Dei um beijo leve na sua boca e acariciei seu rosto até ela finalmente adormecer.

Fiquei acariciando sua mão por um longo tempo, zelando seu sono. Notei manchas avermelhadas por detrás das suas unhas curtas e procurei a caixinha de manicure dela, então cortei todas as unhas curtinhas, como ela gostava de usar, tomando cuidado de tirar qualquer vestígio avermelhado que lhe restasse.

Levantei para jogar a sujeira fora e olhei ao redor. O roupão e a camisola estavam jogados no canto do banheiro, no chão mesmo, manchados de sangue. Muito sangue. Precisava ligar para alguém para saber de Piper e meu coração se apertou só de pensar no que poderia ter acontecido. Passei longos e divertidos tempos com a garota, trocando ideia sobre o instrumento em comum. Adorava ela.

Recolhi a roupa no chão, vendo que o chão ficou sujo, assim como o boxe. Respirei fundo. Teria que limpar aquilo também.

Peguei minha blusa jogada no chão do quarto e desci as escadas até a área de serviço. Coloquei a camisola e o roupão para lavar juntos e conseguia ouvir a voz de Tish em minha mente, dizendo que não era para colocar aquelas duas peças juntas. Botei minha blusa na secadora e tirei a calça para colocar lá tambem, ficando só de cueca. Estava programando o tempo de secagem quando a campainha tocou.

Abri a porta e dei de cara com David bocejando.

— Porra, tu não presta mesmo — Dave alegou.

— Bom dia, molenga — respondi. — O que você quer?

Ele entrou na casa, empurrando a porta e olhando ao redor. Dave e eu, mais que parceiros de banda, éramos melhores amigos, mas Tish também era sua melhor amiga e esse era um limite perigoso entre a gente.

— Alex pediu para eu vir ver se a Tish estava bem — explicou. — Vou ter que contar pro Michael que encontrei você seminu aqui.

Revirei os olhos. Esqueci daquele detalhe. Ninguém sabia que Tish e eu tínhamos aquele acordo. Para nossos amigos, tudo acabou quando ela soube que estava grávida.

— Ela está medicada e dormindo — contei. — Teve uma crise horrível. Ela estava tomando banho quando cheguei, se esfregando tanto que se machucou. Entrei no chuveiro pra fazer ela parar. Minha roupa está na secadora agora — expliquei.

— E ela tava pelada? — Dave perguntou.

— O quê? — me assustei com a pergunta.

— No banho. Você entrou no banho com ela. Então ela tava pelada e você é um pervertido. E eu vou ter que te denunciar.

— Ah, cale a boca — retruquei. — O que foi que aconteceu? Só sei que foi algo com Piper.

Então Dave contou. A crise e a briga por causa do contrato abusivo fez Piper desmanchar toda sua positividade e tentar o impensável. Por sorte, Alika, Alex e Tish tinham chegado a tempo para socorrê-la.

— Ela perdeu muito sangue, mas vai ficar bem — Dave contou. — Alex está lá com Alika e a neném. Chelsea tá tentando ligar pras meninas e pra família dela pra avisar.

Concordei com a cabeça.

— A Tish vai dormir pelo resto do dia, acho — informei. — Vou ficar por aqui de olho nela. Pode deixar que eu lido com o Michael.

Dave riu e me deu um tapinha no ombro antes de sair.

— Boa sorte, cara.

Dave saiu e eu voltei para o quarto com um kit de limpeza. Aproveitei para olhar meu celular antes de começar a limpar.

Tinha uma mensagem da minha mãe, avisando que já estava a caminho e pedindo por mais informações. Digitei uma mensagem explicando um pouco do que aconteceu.

Tomando um pouco de ar e coragem, mandei mensagem para Michael também. E aí fui terminar de limpar o banheiro.

Capítulo 31

Fácil

Você realmente, realmente me conhece
A futura e a velha eu
Todos os labirintos e a loucura da minha mente
Você realmente, realmente me ama
Você me conhece e me ama
E é o tipo de coisa que eu sempre esperei encontrar, sim

Despertei, sentando e tentando respirar. Senti a cama se afundar ao meu lado e uma mão espalmou em minha barriga, me forçando a deitar de novo. Levantei meu olhar para ele e Chris sorriu de leve assim que encostei a cabeça na travesseiro.

— Minha mãe está com as crianças — relatou — Piper está sendo tratada e vai ficar bem.

Concordei com a cabeça e tentei controlar minha respiração. Levei minha mão ao peito e a coloração diferente do meu braço me chamou a atenção. Tentei me sentar de novo, mas Chris me abraçou, deitando ao meu lado.

— Ainda está vendo? — perguntou, baixinho.

— Fui eu que me machuquei assim? — soltei, assustada.

Senti sua mão pesada em meu rosto, em um carinho arranhado pelos seus calos.

— Foi, minha linda — respondeu. — Estava esperando você acordar pra te levar no hospital pra ver isso.

— Hospital não — choraminguei.

Ele riu e beijou meu nariz.

— Sei que não gosta de hospitais — nunca gostei muito, mas depois do tempo que as crianças passaram internadas, entrou na minha lista de "coisas que preciso vigiar ou vão virar fobias". — Mas achei que fosse querer ver como está Piper. E aí podemos ver uma consulta pra você.

Odiava Chris. Odiava como ele me conhecia o suficiente para contornar todas as minhas defesas. Fiz careta, ao que ele riu.

— Seu irmão esteve aqui enquanto você estava dormindo — falou, assim que percebeu que minha respiração estava normalizada.

— E onde ele está? — perguntei.

Achei que Michael teria expulsado Chris até que eu acordasse, embora não fosse o que eu queria. Que estaria ali junto com ele, pelo menos.

— Parece que ele confia que eu vou cuidar bem de você, pelo menos — brincou. — Ele precisou ir ver a Hope.

Pisquei algumas vezes até me lembrar que Hope brigou com com Piper por causa do contrato.

Meu coração se encolheu de dor, raiva e frustração.

— Culpa, né? — resmunguei.

— Isso — respondeu. — Mas vou avisar a ele que você acordou e ele vai querer vir de novo — o carinho de Chris estava em meus cabelos agora. — Michael ligou para o seu psiquiatra. Eles falaram sobre internação.

— Não.

— Eu disse que você não ia querer — cortou-me imediatamente. — Mas então vamos ter que passar por um tratamento intensivo.

Eu gostava quando Chris falava da gente como uma unidade. Como se fôssemos um time ou ele e fosse uma extensão minha e eu dele.

Gostava que ele tivesse parado sua vida para estar ali do meu lado porque precisei, como se eu fosse a coisa mais importante do seu mundo.

Amava Chris. Com todas as minhas forças. Naqueles momentos, me sentia estúpida por tê-lo afastado tantas vezes.

— Sobre o que aconteceu...

— Eu sinto muito — Chris alegou. — Eu não devia ter encostado em você. Eu... sabia que você ia ficar zangada, mas não...

— O quê?

Ele não notou minha interrupção.

— Não queria te negar… conforto… não sabia o que fazer… — continuou. — Eu... vou embora se você quiser. Aviso seu irmão que estou indo e espero ele chegar, não precisa se preocupar, vou ficar...

Segurei-o pelo rosto, fazendo o olhar pra mim. Sua boca ainda se mexeu com o rosto apertado, provocando um biquinho.

— Chris, não estou zangada — sorri. — Fui eu que pedi e você… você fez exatamente o que eu te pedi. E só me deu o que eu precisava. Sou eu que tenho que te pedir desculpas por te colocar nessa situação complicada. Eu sei que sou esquisita. Algumas coisas minhas não funcionam como deveriam.

— Tish, você não é esquisita e…

— Eu amo você — murmurei, baixinho, como se fosse um segredo e ninguém soubesse, mas, ao tirar pela forma com que os olhos de Chris se arregalaram, ele realmente não fazia ideia que meu sentimento tinha perdurado. — Amo como você cuida de mim, amo como você é incrível pros nossos filhos, amo como você é respeitável com a sua mãe. Amo você nas suas sutilezas, nas coisas que você nem percebe, mas faz. Só que eu... a ideia de ter um relacionamento...

— Tish, eu não estou pedindo nada, por favor — alegou. — Só descansa. Se quiser, a gente conversa depois.

— Me deixa falar agora antes que eu perca a coragem — pedi. — Tem um tempo que quero dizer e não sei como. Se for efeito do calmante ainda, me deixa aproveitar — Chris tinha as sobrancelhas franzidas, mas concordou com a cabeça. — Não consigo te dar o que você quer. Eu tentei. Segurei a ideia do casal perfeito antes, mas não consigo isso. A família tradicional e todas essas coisas… isso não funciona pra mim. Talvez nunca tenha funcionado e você foi uma excessão, por quem me esforcei ao máximo…

— É agora que você vai terminar tudo?

— Não! — ri.

— O último não que você me disse… Doeu.

— No aniversário das crianças? — empurrei a cabeça pra trás, tentando me lembrar.

— Na sua cozinha.

A lembrança da cozinha arrepiou todos os pelos do meu corpo.

— Não disse não pra você na cozinha… — disse. Refleti a memória e entendi o que deu errado. — Eu tive uns encontros ruins e eu tava… acumulada. Estava quase lá quando fomos interrompidos. Eu só queria que você não me tocasse naquele momento porque… eu tava quase em combustão.

Chris soltou o ar como se estivesse segurando algo dentro de si há anos e pudesse finalmente relaxar.

— Eu devia ter adivinhado.

— Eu devia ter te explicado — ri. — Mas estava tentando me acalmar e depois você ficou tão mal humorado que eu não soube como…

— Achei que significava que você ia ficar mais sério com o corretor. Achei que estava perdendo você — confessou, baixinho. Encostou o nariz na minha orelha , respirando fundo. — Que tinha perdido a última coisa que me restava.

Minha mão estava em seu rosto, delineando a linha de sua barba recém feita.

— Não queria que a gente fosse só isso — murmurei. A ausência de Chris era uma presença sufocante na minha vida, me engolindo e me incomodando cada dia mais. — Mas não sei como…

— Eu entendi que você tem aversão por compromisso há algum tempo já — resumiu, o franzido em sua testa relaxando um pouco. — Mas e se a gente não tivesse um compromisso?

— Como o que a gente tem agora?

 Algo assim, só que sem outras pessoas no meio — sugeriu e quase me fez rir. — Não precisa ser nada além de eu e você, Tish. Sem nomes, sem títulos, sem esperar nada e ninguém precisa saber. Só nós juntos, quando a gente quiser. Ou o tempo todo.

Pisquei. Sabia que Chris tinha suas paqueras também e me embrulhava o estômago porque no fundo da minha alma sabia que ele era meu, mas eu nunca consegui ser o que ele e o mundo esperavam de mim, a esposa e mãe.

Mas se Chris estava disposto a ceder, talvez...

— Só eu e você? — repeti.

Ele empurrou o corpo para frente, em minha direção. Encostou o nariz no meu e logo encostou a boca na minha.

— Eu vou aceitar qualquer coisa que você me oferecer, meu amor — sussurrou. — Qualquer coisa. Se você me mandar esperar na chuva e no Sol por dois dias para ganhar um beijo, eu vou ficar — sua mão calosa voltou ao meu rosto, carinhosa, mesmo que bruta. — Mas se puder ser só eu e você... você não faz ideia do quanto vai acalmar meu coração.

A emoção estava presa em minha garganta e enchendo de água os meus canais lacrimais. Segurei Chris pela camisa e me curvei, encaixando minha cabeça abaixo de seu queixo.

— Só eu e você — concordei. — Sem títulos. Sem ninguém saber. E eu prometo que se me sentir pronta pra alguma outra coisa, você vai ser o primeiro a saber.

Aquela conversa estava alguns anos atrasada, mas me deu um alívio imenso assim que Chris passou os braços pela minha cintura e beijou o topo da minha cabeça, concordando com meus termos.

— Eu nem sabia que ainda existia essa possibilidade — sorriu.

— Não sei como, não sei nem quando, mas prometo tentar — jurei. — Por você e pelas crianças, Chris, eu preciso que a opção exista.

Capítulo 32

Muito Boa em Despedidas

Sei que você pensa que não tenho coração
Sei que pensa que sou frio
Só estou protegendo minha inocência
Só estou protegendo minha alma

Meu acordo com Chris foi que eu poderia encontrar com as crianças antes delas viajarem se tomasse as novas doses de medicação direitinho e fosse ao hospital para uma consulta sobre as feridas. Se eu me comportasse, ele também me levaria até a casa de Hope, para encontrar com ela e Michael e eu queria muito dizer umas verdades na cara da minha irmã.

Ele estava agindo como se eu fosse um dos nossos filhos, mas achei engraçado e deixei passar.

Então, um pouco tonta de remédio e negociei para passar na casa dele primeiro, ele mantinha a mão em minha cintura para me sustentar e destrancou a porta.

— Oi, mãe — gritou. — Estamos aqui.

Rose chegou correndo e, ao me ver, puxou-me para um abraço apertado.

— Ai — reclamei, mesmo rindo. — Oi, Rosa. É muito bom ver você também.

— Mãe, cuidado — Chris ralhou com ela.

Ela soltou o abraço e me desferiu um tapa no braço, o que me fez pular de susto e incômodo. Chris pulou na frente, esticando os braços para me proteger.

Rose estava chorando. Colocou-se na ponta dos pés para me olhar por cima do ombro de seu filho caçula.

— Me deixou preocupada.

O choro desfez a pose protetora de Chris e ele cedeu quando o empurrei para voltar a abraçar Rose.

— Desculpa, Rosa — murmurei, bem baixinho. — As vezes não consigo controlar.

Rose começou a listar todas as coisas que eu podia pedir a ela se quisesse ajuda, acariciando meu rosto e me puxando pra perto pelos braços. Era tanto carinho que nem me importei, mas Chris voltou a me afastar da mãe.

— Ela está machucada, mãe, cuidado — alertou. — A gente veio aqui antes de ir ao hospital, então não vamos demorar. A gente só veio trazer algumas coisas das crianças pra viagem e falar com eles antes de irem.

Eu estava vestindo um sobretudo sem vestir as mangas, mas tentava manter os braços escondidos atrás dos botões fechados. A coisa estava feia, molhada e de uma coloração esquisita.

Rose me olhou como se quisesse me dar mais alguma bronca sobre aquilo, mas deixou pra lá.

— Crianças — gritou para dentro da casa. Chris voltou a me segurar pela cintura e me guiou pra dentro conforme Rose nos dava espaço, apesar de ser a casa dele. — Sua mãe e seu pai estão aqui.

Elliott, apesar de ser bem menos atlético e ter asma, chegou primeiro. Grudado na minhas pernas, olhou para cima e falou:

— Mamãe triste de novo?

Emma se jogou contra nós dois naquele momento. Parecia que tinha crescido uns dez centimetros nos poucos dias de afastamento.

Eles quase ignoraram Christopher, um "oi, pai" e um aceno foi tudo o que ele ganhou. Chris, rindo, seguiu a mãe para a cozinha e nos deixou ali, na entrada da sala.

— Papai disse que a mamãe tava dodói, não triste — Emma brigou com o irmão.

— Dodói e triste, foi o que ele disse.

As discussões daqueles dois estavam cada dia mais elaboradas. E eles trocavam de inglês pra português e de volta para inglês com mais rapidez do que eu jamais consegui.

Estavam crescendo.

— Quem fez seu dodói, mamãe? — Emma perguntou. E então, baixou a voz. — Foi o papai?

— O quê? — a pergunta me deixou surpresa. — Não! Quem foi que te disse uma coisa dessas?

— Foi a tia Hope — explicou. — Ela disse que homens podem ser maus

Eu ia acabar com a raça de Hope. Dessa vez talvez não fosse maldade, nossa experiência com homens era marcada por alguns desastres, mas era muito cedo para aquela conversa. Emma só tinha cinco.

— Não o seu pai. Ou seu irmão. — apertei o nariz dela e esfreguei o cabelo escuro de Elliott, que sorriu. Parecia preocupado se era mau por ser homem. — Seu tio Michael também não.

— Seu tio Stuart também não é nada mau — Chris alegou sobre seu irmão, se aproximando e se apoiando contra a entrada da sala.

— Tio Dave, tio Alex e tio Matt também são legais? — Elliott perguntou.

Apertei seu nariz também.

— São sim — respondi. — Mas se vocês acharem que alguém tá sendo mau, vocês tem que contar pra mamãe e pro papai, tá? Lembram o que não pode?

Eles concordaram. A conversa que tivemos antes que eles entrassem na escola foi demorada e complicada, sobre todas as coisas que eles precisavam contar se acontecesse e tudo o que não podiam fazer ou fazerem com eles.

— Muito bom — arrumei a gola da camisa de Elliott. — Então agora vamos lá. Vão se comportar direitinho e obedecer a vovó Rosa e a tia Savanah na viagem? — perguntei. Savanah ficaria com a passagem e os ingressos de Chris, que insistiu em continuar cuidando de mim. Os gêmeos concordaram com a cabeça. — Não pode ficar falando com estranhos, usar português pra confundir sua avó e nem brigar um com o outro, senão não vou deixar mais vocês viajarem com sua avó de novo. E ela me contou que queria levar vocês para esquiar no inverno — eu sabia que minhas recomendações não seriam seguidas à risca, mas eles pareciam querer esquiar, pois se entreolharam, alertas.

Acabaram por concordar com a cabeça.

Depois de mais algumas recomendações, vários beijos e muitas reclamações de que sentiria saudade, Chris insistiu que precisávamos ir. Então, com o coração apertado, abracei meus pequenininhos com força porque só voltaria a vê-los em 10 dias.

***

Dei duas batidas tímidas na porta do quarto. Piper estava sozinha, encarando o teto, curativos nos dois pulsos e medicação em sua veia. Ela apenas girou os olhos em minha direção e voltou a subi-los. Exausta. Apática.

Eu vi os sinais através dos anos. Ela estava sempre brincando, sempre agitada, sempre sorrindo. Mas, as vezes, o sorriso era amarelo e não chegava aos olhos, a agitação era desesperada e as brincadeiras eram autodepreciativas. E as vezes, por vislumbres de momento, ela demonstrava a fragilidade. Caíam os cantos dos lábios, franzia a testa e abaixava as pálpebras.

Eram só vislumbres, mas eu vi. Cheguei a conversar com ela, a indicar uma psicóloga…

Achava que, no fundo, todas nós vimos. Mas cada uma estava enfiada em seus próprios problemas e nunca pensamos que chegaria naquele ponto. Não a Piper, que era cheia de vida.

Agora ela estava ali e não tinha forças nem para tentar esconder.

— Desculpa — pediu.

Em três passos grandes, estava perto dela, os braços ao seu redor, chorando copiosamente. O medo que senti de perdê-la foi maior que qualquer coisa, mesmo dentro do meu surto.

— Eu te amo, Piper — murmurei. As palavras saíram em português, mas ela reconheceu e um breve sorriso surgiu em seu rosto. — Não sei o que vou fazer se você me deixar aqui sozinha com esses doidos.

Ela levantou a mão que estava livre e segurou meus pulsos. Virou meu braço de um lado para o outro, analisando meus machucados.

— O que aconteceu com você? — perguntou. — Precisa de uma cama do meu lado, é?

— Ah, Piper… — segurei seu rosto com carinho. — Ver você daquele jeito mexeu com meus fantasmas. Todo mundo carrega alguma coisa, mas ninguém precisa carregar sozinho. Você podia ter me ligado, eu ia te entender.

— Me desculpa — ela fez bico e seus olhos de céu matutino se encheram de nuvens de chuva.

— Não precisa pedir desculpas — sorri. — Você é minha irmã. Eu te escolhi e te aturei quando ainda era uma adolescente chata pra caralho — ela riu. Nosso começo conturbado era piada há alguns anos. — Eu tô com você pra qualquer coisa. Mas se você fizer merda, eu vou te bater.

Ela soltou uma risada ainda tímida, mas suas bochechas ganharam um pouco de cor.

— Eu sei — ela fungou. — Alika só saiu daqui obrigada. Hye chegou logo depois. Achei que você… achei que você tinha ficado apoiando Hope.

Franzi a testa. Finalmente saí de cima dela e puxei a cadeira que Hye deixou pra mim, sentando. Nossa amiga aproveitou que Chris e eu estávamos no hospital para tomar um banho. Era a acompanhante oficial até a mãe e a irmã de Hope chegarem de viagem.

— Eu fui dopada, demorei um pouco pra voltar a mim — contei. Ela acenou com a cabeça, voltando a ficar séria. — O que aconteceu com você e Hope? Eu já tinha saído da sala… — Ela abriu a boca e fechou, nervosa. — Se não quiser contar, não precisa.

— Não… tudo bem — Ela suspirou. — Eu já… Eu já tô melhor. Eu sei que a Hope faz isso, lembra antes de eu me aceitar como assexual? As coisas que ela dizia? Que eu era estranha, que isso não era normal… — Fechei os olhos apertados. Lembrava bem. Piper era tão novinha, se descobrindo, assustada porque não se encaixava nos padrões e Hope sempre tinha algo amargo pra dizer. — Lá na reunião… eu me desesperei. A música ela…

— É tudo o que você tem — completei, ao sentir o embargo de sua voz. — Eu sei o qual é o sentimento.

— É — concordou. — Ainda tô processando isso. Só que Hope disse que eu estava surtando porque era a única de nós que não tinha talento suficiente pra ter uma carreira solo.

— Ela disse o quê? — Minha voz saiu alta demais e me engasguei. — Que filha da puta!

Chris colocou a cabeça pra dentro do quarto bem naquele momento. Estava esperando sua vez para fazer com Piper porque só podia um acompanhante por vez. Só deixaram ele subir porque éramos quem éramos.

— Tudo bem aí? — perguntou.

Acenei como se não importasse. A porta se fechou logo depois, quando percebeu que não era nada demais.

— Eu sei que não é verdade, mas na hora…

— Eu sinto tanto que você tenha…

— Estávamos todas sensíveis — ela suspirou. — E aquilo me pegou e eu entrei… eu entrei…

Eu quis chorar de desespero, de dor, de culpa. Se não tivesse surtado com a notícia, poderia ter estado lá para colocar Hope em seu lugar e proteger Piper.

— Me desculpa —  pedi. Segurei sua mão e beijei com carinho. Piper era tão branca que até eu, que não tinha pele tão escura, contrastava quando seu tom. — Eu devia ter estado lá.

— Hye e Ali estavam — Piper contou. — Elas mandaram Hope à merda e a expulsaram.

Por isso Michael a resgatou também. Ela me contou aquilo no carro, eu lembrava. “Falei besteira pra Pip. Foi meio feio. Já me arrependi, mas ela estava sendo super pessimista e eu…”  Aquilo não era feio, era ridículo, mas Hope sempre teve o dom de se fazer de vítima e distorcer as histórias para que as pessoas ficassem do lado dela.

Eu sofri com aquilo a adolescência inteira.

— Pelo menos isso — suspirei, passando as mãos pelo cabelo loiro de Piper com carinho. Ela fechou os olhos e sorriu de leve. — Você vai pra casa, na Austrália? Com sua mãe e sua irmã?

Ela torceu a boca.

— Não sei ainda — respondeu. — Eu não vou ter alta, vou ser transferida. Ficar internada por um tempo até ficar bem. Não queria, mas Alex me convenceu que vai me fazer bem. Depois… sei lá. Acho que ir pra casa por um tempo pode ser legal.

— Bom, se você quiser ficar e sua família tiver que ir, pode ficar na minha casa, você sabe, né? — sugeri.

— Se você estiver falando da casa da areia, talvez eu aceite sim — riu.

A menção da casa da areia fez meu coração palpitar de saudade. Ir para casa por um tempo podia ser legal.

— A sugestão foi feita, o convite está de pé — respondi, sorrindo. — Promete que vai ficar bem?

— Tudo que ainda tá de pé vai ser usado pra chegar até aí — ela sussurrou. Sem rodeios, sem mentiras. Estava destruída, mas queria melhorar.

— E vai chegar — beijei sua testa com carinho. — Chris está na fila. Vou deixar ele entrar um pouquinho. Se Hye não tiver voltado ainda, eu expulso ele pra ficar mais um pouco com você antes dela chegar, está bem?

— Tá bem — sorriu.

— Mas se eu não voltar… — segurei seu rosto. — Não deixe que as palavras amargas dos outros tirem o brilho da sua alma. Você sempre foi luminosa, Pip. Cheia de vida, cheia de vontades, sonhos e cheia de coisas pra falar. Se cuida. Faz tudo que os médicos disserem. Eu vou estar aqui, nos seus altos e baixos, pra tudo que você precisar. Mas, por favor, não me deixa. Fica comigo.

Ela segurou meu pulso com força, com cuidado pra não encostar nas minhas feridas. Havia um vestígio do brilho feroz que ela tinha em seus olhos azuis.

— Vou ficar.

***

Michael abriu os braços assim que me viu através da porta aberta, mas eu nem me abalei. Passei por debaixo deles e rumei casa a dentro.

— Aonde ela está? — rugi.

Uma parte de mim estava ciente dos dois homens que me seguiam, mas a outra só via a porta da sala de Michael, sentindo a borda da minha vista em tons de vermelho de tanta raiva que eu sentia.

Hope deu azar. Sophie, sua filha, estava no colo de nossa mãe. Por que todos estavam ao redor de Hope é que eu não sabia. A cara inchada de choro e os olhos vermelhos nem me fizeram titubear, quando me aproximei com um furacão, ela se levantou em reflexo e estalei um tapa forte em sua face meio segundo depois.

— Você enlou… — ela começou.

Christopher me puxou pela cintura no momento em que tentei desferir outro tapa nela. Mamãe envolveu Sophie em seus paninhos e resolveu que não ia se meter, saindo da sala. Michael, por outro lado, foi socorrer Hope, a abraçando também.

— Você não cresce nunca? — berrei. — Acha que o mundo é um grande ensino médio e que você pode ficar pisando nas pessoas pra sempre porque acha que ser grosseira e inconveniente é traço de personalidade? Olha a merda que você fez, Hope!

— Eu não fiz por mal — ela estava fazendo bico, estava com os olhos em tom de mel derretido querendo derramar lágrimas que não me comoviam.

— Não fez por mal? Como se diz as coisas que você fala sem ser por mal? Porra, para e pensa. Você está machucando as pessoas e está machucando todo mundo desde sempre sem nenhuma consequência, mas quer saber? Eu não tenho mais 16, eu não vou mais me assustar e abaixar a cabeça pra você. Você não rela mais em nenhum dos meus sem que eu acabe com a sua raça. Estou cansada de você e das coisas que você faz. Cansei.

Chris me puxou um passo atrás conforme minha voz ia falhando e a raiva fazia eu me mexer e me sacudir de seu abraço contentor.

— E você acha que é o arauto da moral e dos bons costumes por quê? Sempre julgando todo mundo, se sentindo a superior porque seus métodos funcionam e não sei mais o quê. Tenham pena de mim porque meu pai matou minha mãe! Coitadinha da Tish. Sempre ganhando tudo de mão beijada porque as pessoas tem pena de você. Tão doente da cabeça que não consegue nem dar uma família decente pros seus filh…

— Você não se atreva a falar nada dos meus filhos! — gritei. Chris foi incapaz de me segurar, mas Michael entrou na frente antes que eu conseguisse alcançar Hope, empurrando ela de volta a se sentar no sofá.

— Calma, Tish — ele me empurrou pelos ombros. — Vamos comigo na cozinha. Você não pode se estressar desse jeito. Vamos, vamos conversar. Quando você se acalmar, a gente…

— Ah, já vai começar de novo? — reclamei. — Também estou cansada de você achar que tem que resolver tudo por mim porque acha que eu não consigo. Eu não sou incapaz, porra! Eu posso fazer tudo sozinha, eu fiquei sozinha em outro país sem todos vocês e olha só! Eu sobrevivi. Mas você não enxerga, você continua achando que eu sou criança, burra, imbecil, sei lá.

— Você é minha irmã mais nova! — Michael estava chateado com minhas palavras e subiu sua voz. — É claro que eu quero cuidar de você.

— Você não cuida de mim — retruquei, ainda alterada. — Chris cuida de mim. Rose cuida de mim. Mamãe cuida de mim. Você me anula! Você está sempre me empurrando pra trás e tomando a frente, decidindo por mim ou me cercando. Você chega a me proibir fazer coisas sem pedir minha opinião. É ridículo. Eu não trato meus filhos assim e eles tem cinco anos, porra. Eu sou uma mulher crescida!

— Ela está descontrolada — Hope alegou. — Insana. Tem que dopar ela.

— Fica quieta, Hope — Michael pediu.

— Eu nunca estive mais sã na minha vida! — berrei. — Você! — apontei para Hope. — É cruel e mimada. E você! — Apontei para Michael. — É um controlador do caralho. E eu estou cansada de todos vocês. Cansei, porra! — soltei um urro de raiva que não sabia há quanto tempo estava guardando dentro de mim. Segurei os pulsos de Christopher, que haviam voltado à minha cintura e em um puxão de leve, ele afrouxou o suficiente para ver se eu me jogaria em direção à Hope ou não. — Vamos embora, Chris.

Chris estava com as sobrancelhas franzidas de preocupação, mas aceitou minha mão e me seguiu para fora da casa do meu irmão.

Capítulo 33

Seu Amor É

Eu só preciso de um pouco do Paraíso
Eu conheço um lugar pra onde posso ir
Para onde eu vou, os problemas nunca surgem
A grama é mais verde, minha cabeça fica mais clara
Eu tenho paz de espírito, quando eu caio em seus olhos

A ansiedade era algo engraçado pra mim, mesmo depois de tantos anos convivendo com ela, com todo o tratamento e a medicação que me acompanhava quase a minha vida inteira. Haviam picos de energia, de agitação; de fazer faxina, de ensaiar até que mal conseguisse mover meus músculos, de pensar sem parar em todas as possibilidades do que poderia acontecer.

E aí tinha o completo oposto. A imobilidade, a incapacidade de se mexer, de falar, de agir, pela exaustão mental ou pelo medo de tudo dar errado. O silêncio, a apatia.

Quando entrei em casa, meus músculos pareciam gelatina, mas se mexiam como se pesassem tanto quanto um bloco de cimento. Chris estava ali, me seguindo atentamente, observando meus trejeitos, mas tudo o que fiz foi me arrastar até o sofá e me jogar deitada de bruços, de cara com uma almofada que só estava fora do lugar porque Chris devia ter sentado ali.

Havia um poder misterioso ao afundar seu rosto em uma almofada quando se estava com raiva – e ele foi capaz de me tirar da imobilidade.

Imediatamente comecei a socar, gritar e chutar o sofá, tentando gastar o resto da energia caótica que circulada em minhas veias.

Chris esperou, sentado no chão ao meu lado, até que os socos foram se transformando em lágrimas e o choro desesperado veio.

— Precisa de algum remédio? — perguntou. — Ou está tudo bem?

Bem não era a palavra certa, mas já faziam alguns anos que não me afundava em uma crise silenciosa ou que me debatia e tampava meus ouvidos. Até mesmo aquelas marcas em meus braços e em meu corpo eram uma evolução do que já fui.

— Não — senti minha garganta arranhar a resposta. — Só a medicação normal hoje. Estou com raiva e triste, mas vou ficar bem.

Chris soltou o ar com força e pude perceber seu alívio mesmo estando de olhos fechados e com o rosto apertado na almofada. Ele beijou minha cabeça e se afastou, os passos ecoando para longe, enquanto eu me mantinha concentrada nos meus exercícios de respiração.

Eu já estava sentada com os dedos enfiados em meus cabelos quando ele voltou com uma xícara de chá e me ofereceu. Aceitei, mas irritada. Eu queria era café. Café! Mas o café que Chris fazia era do pior tipo, então só aceitei o que tinha.

— Eu preciso te falar uma coisa — ele fechou os olhos e coçou o nariz e eu soube que iria odiar.

Levantei o olhar da xícara já irritada.

— O que é agora? — indaguei.

Ele parecia querer encontrar um buraco para se enfiar para não precisar ter aquela conversa comigo, mas limpou a garganta.

— Seu irmão... — ele fechou os olhos com força. — Ele me mandou uma mensagem assim que a gente saiu da casa dele.

— Hm, sei, e daí? — Minha paciência estava claramente mais curta.

— Ele falou de... Internação compulsória

Minha mão falhou e a xícara caiu sobre meu colo, derramando o líquido quente. Pulei, xingado todos os palavrões que conhecia em português, que eram muitos, afastando o sobretudo do contato com a minha pele e a xícara rolou pelo chão, sem chegar a quebrar.

Assim que tirei a peça molhada, Chris estendeu a mão e pediu que eu me sentasse ao seu lado no sofá mais uma vez.

— Quem precisa de internação é Michael! — urrei.

— Você precisa entender que as coisas não estão ao seu favor — Chris pontuou. — Você passou por duas situações traumáticas, se machucou e agrediu sua irmã — ele levantou um dedo. — Você tem que ver de uma perspectiva de fora.

Queria discordar, mas Christopher tinha razão. Isso não me deixava menos puta.

— Por que Michael não se cansa de se meter na minha vida? — rugi.

— Bom, ele é seu irmão e acha que está fazendo o melhor pra você — Chris disse. — Mas, se você quer saber minha opinião, você lidou com isso tudo muito bem, até. Eu lembro como foi com o Alex. Eu lembro do sentimento. Você fez o seu melhor. Te internar talvez fosse bom pra você, mas... não acho necessário. Não acho que você vai se machucar de novo. Você... você parece bem.

Chris estava com medo. Escolhendo as palavras e com medo do que me dizia.

— Se eu fosse um perigo, me internaria primeiro. Pelas crianças. Eu só... Urg. Hope... ela...

— Eu sei.

— Eu queria dizer isso há tanto tempo — suspirei. — Pros dois. Mas nunca soube como. E o medo que eu tinha de ficar sem falar com eles, de perder eles? Foi horrível antes e vai ser horrível agora. Eu amo os dois. Só que as vezes o amor não é suficiente. Não dá pra ficar passando a mão na cabeça de quem a gente ama enquanto ela erra tantas vezes. E agora... agora mais essa.

— O que você quer fazer? — Chris perguntou, envolvendo minha mão com a sua.

— Eu quero ir pra casa — choraminguei. — Eu ia esperar as crianças voltarem e levar elas comigo.

Chris se engasgou com a própria saliva.

— Pro Brasil? — perguntou, nervoso. — Você queria levar as crianças pra longe de mim?

Meneei a cabeça e tentei sorrir.

— Na verdade, eu estava pensando em te chamar também — soprei. — Eu comprei aquela ilha pensando em você. E a gente nunca teve chance de aproveitar ela direito. Pensei em... fazermos um test-drive, nós quatro. Quero dizer... as crianças não... sem eles saberem do que a gente tá fazendo, sabe?

Ele sorriu e suspirou. Acariciou meu rosto com carinho e depositou um beijo.

— Eu ia adorar.

— O que você acha que a gente tem que fazer? — perguntei. — Por que se ele pedir uma internação compulsória, eles vão bater aqui em casa a qualquer momento. E aí não sei quem vai me avaliar, o que vai dizer... mas se a gente for agora...

— Agora? Como uma fuga? — Chris sorriu.

— Sua mãe leva as crianças pra gente quando voltar da viagem?

— Com certeza leva.

Suspirei, cansada. A raiva estava me deixando exausta. Será que meus irmãos não conseguiam ver que aquilo só tinha potencial para me fazer piorar?

— Você acha melhor a gente ir antes? — perguntei. — Ou esperar virem aqui e...

A campainha tocou naquele momento e fechei os olhos, irritada que a opção foi tirada de mim. Quis ter pego meu passaporte imediatamente após Chris dizer o que Michael e Hope planejavam.

A gente sabia a opção certa quando ela era tirada da gente e doía no fundo da alma.

Chris bateu de leve em meu joelho e se levantou para abrir a porta. Seus passos ecoaram pela casa assim como o trinco da porta, quando ele o removeu para abrir.

— Liah? — perguntou, surpreso, em alto e bom som.

Soltei o ar com força.

Mamãe entrou na sala em passadas longas e se ajoelhou à minha frente, puxando meus braços pra ela, investigando meus machucados.

— Eles não me contaram sobre isso, querida — explicou. A ausência de sequer uma ligação dela fazia mais sentido. — Não me disseram que foi você que socorreu sua amiga. Não me disseram que você... eu jamais teria deixado você passar por isso sozinha mais uma vez.

Meus olhos se encheram de lágrimas, mas respirei fundo e as contive com todas as minhas forças restantes.

— Eu não estava sozinha.

Mamãe olhou para Christopher, parado a uma distância segura, encostado na parede ao lado do portal da sala, como se estivesse vendo-o pela primeira vez.

— Obrigada — disse. Ele acenou uma vez para ela e ela se voltou para mim. — Você sabe que eu amo vocês três e não gosto de me meter nas coisas de vocês — concordei com a cabeça. — Mas também já aprendi que, com frequência, histórias diferentes chegam aos meus ouvidos. Então... por que não me conta a sua versão?

Então contei. Desde a reunião, o socorro de Piper, meus machucados e, então, o que havia descoberto no hospital. Liah franziu a testa com força quando ouviu a força das palavras e a raiva acumulada que eu ainda despejava.

— E ela tem coragem de se fazer de vítima, mãe — resmunguei. — Ela sempre foi assim. Faz as merdas, depois conta do jeito dela e todo mundo fica com peninha dela, quando ela foi a verdadeira filha da puta.

— Olha a boca — Mamãe alertou.

Bufei.

— E Michael está passando a mão na cabeça dela de novo!

— E você está se mordendo de ciúmes — ela riu. Quis retrucar, mas não era mentira, então só fechei a cara e cruzei os braços. — Mas, sabe? Eu ouvi o que você disse. Não acho que tenha falado nada de errado. Hope realmente não consegue medir as palavras e magoa as pessoas e Michael também tem essa mania de achar que só ele sabe o que é melhor pra todo mundo. E você não podia ter batido na sua irmã, nem gritado essas coisas na cara deles.

— E eles não podiam estar planejando me internar contra a minha vontade!

Mamãe olhou para Chris, ciente que ele que vazou a informação.

— Sim. Ainda tem isso — ela concordou. — Pra mim, Michael alegou que você estava violenta, que o trauma fez você se machucar e agredir Hope. Não foi isso que aconteceu.

— Liah... — Chris chamou, com delicadeza. — Eu tô com ela desde que aconteceu. Ela chegou consciente em casa, pediu a Savanah que levasse as crianças pra mim e eu vim direto pra cá quando Savanah me contou. Ela só se perdeu em um momento. Ela não está violenta e nem teve qualquer outra crise de nenhum tipo. Está tomando as medicações, repousando e seguindo todas as recomendações. Não tem motivo algum pra internação, Michael está exagerando.

— Eu sei — mamãe disse. — Conheço meus filhos. Michael tem tendências a exagerar, Hope faz as merdas e depois se finge de sonsa e Tish... — ela olhou de volta para mim. — Tish arruma as maiores confusões dessa família, mesmo achando que é a mais calma.

— Eu é que não vou deixar ninguém nunca mais decidir nada por mim — retruquei, ainda mais irritada.

Mamãe riu como se eu só estivesse provando o que ela havia acabado de dizer.

— Bom... — ela apoiou as mãos no sofá e tentou se levantar, mas seus joelhos travaram. Chris correu para ajudá-la, enquanto meu braço machucado era ignorado pelos dois. — Obrigada — sussurrou pra ele, apertando os olhos, ainda estranhando. — Michael já ligou para o seu psiquiatra. Creio que eles vêm te avaliar amanhã de manhã. Posso ficar pra atestar ao seu favor, acho que é tudo o que posso fazer agora.

Encarei Chris, cheia de dúvidas. Ele apenas acenou com um sorriso.

— Na verdade, Chris estava comprando passagens pro Brasil agora mesmo, não é? — perguntei.

Ele tirou o celular do bolso e começou a digitar porque não estava, mas não tínhamos tanto tempo.

— Sim — respondeu. — Verdade.

— Enquanto Rose está com as crianças? — mamãe estranhou.

— A gente ia esperar elas voltarem — expliquei. — Não tivemos muito tempo pra fazer planos, mas... depois que isso tudo aconteceu, você sabe que minha primeira reação é sempre ir pra casa.

— Sei.

— E quando eu estava conversando com Piper, ela me lembrou disso, então pensei em ir pra casa com as crianças quando eles voltassem. Pensei em chamar Chris e Rose também. Mas aí quando Chris falou o que Michael estava planejando, achei que seria melhor sair agora mesmo.

Mamãe estava passando a mão pela nuca e respirou fundo.

— Michael vai ficar descontrolado se você fizer isso.

— Foda-se? — respondi.

— Letícia Leah White Foster! — mamãe ralhou, ignorando meu sobrenome brasileiro. — Que boca suja é essa?

Chris estava rindo baixinho, mas se calou com uma olhada de minha mãe. Ele limpou a garganta.

— Tem um vôo agora às 20h. Chega 6h da manhã no Rio — anunciou.

— Esse é perfeito! — comemorei, me levantando. — Pode comprar.

— Só tem executiva — falou.

— Sem problemas.

— Vocês vão sem malas? — mamãe estava parcialmente chocada com a agilidade, mas já estava de pé para ajudar.

— A minha está pronta — Chris explicou. — Eu ia com a minha mãe e as crianças. Quando troquei com Savanah, Dave trouxe pra cá porque achei que ia ficar um tempinho aqui. Vim até com o passaporte, achei graça quando vi que tinha trazido, mas agora...

— E eu tenho roupas no Brasil — tentei levar na esportiva que não teria tempo para fazer os preparativos corretos. — Vou só recolher o básico e já podemos ir.

Comecei a juntar algumas das minhas coisas primordiais, como carregador de celular, creme de rosto e alguns remédios que sabia que não teria problemas no desembarque. Poucas peças de roupas rápidas foram colocadas na mala que mamãe encontrou.

— Doideira completa — ela riu, quando descemos as escadas e ouvimos Chris com o carro. — Mas acho que vai ser melhor pra você. Só me conta uma coisa... você e Chris...?

— Não — menti rapidamente. Não podia estragar aquilo sem nem tentar.

— Mas vocês ainda se gostam. Dá pra ver.

Abracei minha mãe quando alcancei o carro e Chris tirou a mala de minhas mãos para guardar junto com a sua, ainda nervosa do que ela pudesse suspeitar do que estava acontecendo entre nós dois. Pensei em algo que pudesse dizer para ela acreditar em minhas palavras e lembrei do que disse há poucos momentos.

— As vezes o amor não é suficiente.

Ela concordou com a cabeça, compreendendo, e entrei no carro acenando. Chris ocupou o motorista e puxei o cinto de segurança, enquanto ela lançava beijos no ar.

Posfácio

Apenas me dê uma Razão

Está nas estrelas
Está escrito nas cicatrizes dos nossos corações
Que não estamos quebrados, só tortos
E podemos aprender a amar novamente

As ondas estavam quebrando naquele jeito rítmico que me fazia sorrir. O vento, a maresia, vinha em direção à ilha com um pouco de mais força naquele final de manhã, levantando grãos de areia e fios de cabelo.

Tomei meu banho enquanto Chris gritava ao telefone com Michael, puto da vida por termos fugido durante a noite. E quando Chris desligou para ir tomar seu banho, saí de fininho para admirar a praia.

Sentada na praia, ouvi o rangido característico do portão de casa quando ele passou. Os passos, na areia fofa, não me avisaram de sua proximidade, até que a sombra se fez sobre mim.

Chris jogou seu corpo ao meu lado, as barras da calça dobradas até o meio da batata da perna e a camisa regata branca me informavam que ele estava com calor, mesmo sendo um dia fresco de inverno.

— Não quero falar sobre ele — anunciei, antes que me dissesse qualquer coisa da conversa.

Meu celular estava desligado. Disse que Chris devia fazer a mesma coisa, mas precisava manter contato com Rose e as crianças, então ele ligou e foi o completo caos.

— Do que você quer falar? — perguntou, sorrindo.

Os olhos de Chris ficavam ainda mais bonitos à beira-mar. Sempre me afundei nos pontinhos de luz que pareciam cristais em sua íris. Acabei me acostumando depois das crianças, mas ainda me deixava sem ar.

— Da gente — murmurei.

Chris suspirou.

— Eu sinto que já tinha desistido de ter as coisas que eu queria com você — confessou, o sorriso me informando que estava se sentindo com sorte com a nova possibilidade aberta. — Eu... aceitei que com você só podia ser desse jeito e abri mão das coisas porque não podia abrir mão de você.

Engoli a seco. Chris estava falando com felicidade, mas as palavras me doeram. Eu sabia daquilo, claro, mas não queria... não queria que ele precisasse passar por aquele amargor porque me amava. Que anulasse seus sonhos.

— Do que você abriu mão? — perguntei.

— Hm?

— O que você abriu mão por mim? — insisti.

Ele piscou algumas vezes, não entendendo o rumo da conversa. Desde que definimos que tentaríamos de novo, sequer nos beijamos. Os acontecimentos vieram um atrás do outro e não permitiram nosso descanso. Depois de uma viagem longa, era suposto que fôssemos nos deitar, mas... tomamos banho. E nos encontramos ali.

E agora estamos conversando sobre assuntos sensíveis que podiam destruir aquele frágil acordo.

— Tish...

— Fala — pedi. — Por favor.

Ele fechou os olhos e deu uma longa respirada.

— O casamento é uma dessas coisas que eu sempre quis — falou.

Acenei com concordância. A conversa sobre casamento nunca aconteceu. Na verdade, o principal erro de Chris foi ter evitado falar sobre isso e se programado para fazer um pedido, me encurralando. E, ao mesmo tempo em que se apavorava com a minha resposta provavelmente negativa, se afastou de mim, me deixando confusa e assustada.

— O casamento é uma das coisas que mais me apavora — retruquei. — Mas não queria que você tivesse que abrir mão disso.

Ele enlaçou o mindinho no meu, parando o desenho que fazia na areia.

— Eu não preciso do casamento. Não precisa existir uma festa, de uma benção, de um papel. É mais... — ele torceu os lábios, pensando. — É aquela coisa de... estar junto? De parceria, de carinho e amor.

— E nós não temos isso? — perguntei.

Ele sorriu, mas não parecia concordar. Desviou o olhar do meu, encarou o mar por um momento, antes de voltar-se para mim.

— E o medo que eu tenho de você escapar das minhas mãos a qualquer momento? — ele riu, mas soou triste. — De se envolver com outra pessoa ou...

Minha culpa. Aquela insistência em mostrar que não pertencia a ele, de tentar outros relacionamentos para provar que não casaríamos, todas as negativas ao passar dos anos… tinham minado a confiança de Chris.

— O que você precisa pra se sentir seguro? — fui sincera quando envolvi sua mão. — Eu não sei se sou capaz de casar um dia, mas quero te dar tudo o que puder. Tem que haver um meio termo. Talvez usar seus brincos?

— Talvez uma aliança? — ele tentou sorrir, mas fez uma careta esperançosa que me fez rir.

— Uma aliança — aceitei.

Soltou um suspiro aliviado. De forma natural, apoiou-se na areia, a mão ainda enlaçada na minha e grudou nossos lábios por meio segundo.

— E o que você pensa sobre união estável? — sussurrou em minha boca.

— Aceitável — declarei, sem nem pensar. — Eu tenho problemas com casamento, não com união. Mas isso também é uma coisa pro futuro, pra quando a gente for contar pras pessoas. E eu não queria fazer isso por enquanto.

— Nem eu — seu sorriso estava ainda mais bonito. — Quero aproveitar você sem a bagagem da nossa família, do público, da mídia...

Minha mãe. Minha mãe nunca foi grosseira com Chris, mas seus olhares lhe diziam o quanto ela desaprovava nossa constante aproximação. A noite anterior foi uma lembrança do que queríamos evitar.

— Algo mais? — perguntei. Sentia a felicidade me envolvendo e estava com uma vontade ridícula de rir.

— Sempre pensei em ter três filhos — confessou. Logo depois, fechou a cara e coçou a cabeça, arrependido, voltando a se sentar de frente para o mar.

— Por que três? — perguntei.

— Eu sou o caçula de três — explicou.

— E eu também.

Um pequeno silêncio se fez entre nós dois enquanto ele ponderava, sem ser do tipo constrangedor.

— Três é um bom número pra irmãos, eu acho — deu de ombros. — Não é sempre que a gente consegue brigar com os dois irmãos ao mesmo tempo — balancei a cabeça negativamente com o comentário. — Cedo demais?

— Um pouco — concordei. Não queria falar sobre Michael e Hope. — Você sabe que a gravidez foi difícil pra mim...

— E pra mim — interrompeu. — Perdi muitas coisas.

Levantei um dedo no ar, pedindo que ele me deixasse terminar o pensamento.

— Mas eu adoro ser mãe — confessei. — Foi meio difícil no começo, só que eu... acho que não tem mais nada que eu goste mais nesse mundo. Nem mesmo a música.

— Isso é...?

— É um sim — concordei. — E é um sim fácil. Você é um bom pai, sua mãe é uma ótima avó e eu teria mais um. Ou dois. Seja o que Deus quiser. Sempre quis ter uma família grande.

— Você está falando sério? — A alegria emanava de Christopher e ele estalou outro beijo em minha boca. — Você vai me fazer o homem mais feliz do mundo.

Ele me deu mais alguns beijinhos curtos e meu sorriso se alargou.

— Eu sempre quis ser mãe. Foi uma das coisas que me empurrou pra sair do casulo porque eu não conseguiria sem melhorar. Fiquei apavorada quando engravidei porque... porque a gente estava no momento errado, mas na hora que eu tive certeza... tudo mudou. Olhando pra trás, teria feito algumas coisas diferentes, mas fiz o melhor que podia com o que tinha.

— O que teria feito diferente?

Você. Acho que teria tentado acreditar quando me contou que não estava me traindo — confessei. — Eu acho que sabia que era verdade, mas estava assustada. Talvez tivesse dividido que achava que estava grávida antes. Isso teria mudado tudo.

— Eu acho que teria conversado com você sobre o casamento antes — ele confessou também seus erros. — E queria que aquela nossa briga... que aquilo tudo jamais tivesse acontecido.

Concordei com a cabeça. Também queria apagar aquela discussão. Chris passou o braço pelo meu ombro.

— Mas a gente pode tentar tudo outra vez — tombei em direção ao seu peito, sentindo seu cheiro característico de coco mais forte que nunca. — Não agora porque senão vamos ter revelar nosso segredo muito rápido — ele acenou, concordando com o plano. — Mas também não pode demorar muito porque eu não vou ficar mais nova.

Ele suspirou.

— Tem sido uma longa estrada.

— E essa conversa estava atrasada, não é? — aleguei.

— Acho que essa culpa é minha.

Levei meu nariz até a curva do seu pescoço e aspirei profundamente seu cheio misturado com o mar.

— É nossa — murmurei. — Algo mais que eu precise saber?

Sua garganta tremeu em uma risadinha baixa.

— Sonho com você quase todas as noites — confessou. — Algumas manhãs eu acordo irritado que não consigo te tirar da minha cabeça um segundo sequer, mas nem quando me esforço consigo parar de pensar em você.

Pisquei longamente, absorvendo a declaração.

— Eu também te amo — respondi, simplesmente.

Chris soltou uma risada sincera e gostosa. Escorreguei o nariz pelo seu pescoço, subindo lentamente até minha boca encontrar com a sua. Dessa vez, o beijo não foi gentil. O desespero envolveu nossas línguas e me peguei com as duas mãos em seu ombro, subindo em seu colo, implorando por mais.

Senti sua mão calosa arranhar minha pele, subindo minha saída de praia, deixando um caminho de fogo que ia da minha coxa até a cintura e mordi sua boca, rebolando, querendo muito mais.

Chris grunhiu baixinho, arrancando o vestido por cima com velocidade, mas se arrependeu no instante seguinte, parando para verificar meus machucados, que começavam a criar casquinha com a ajuda da pomada que estava usando.

Não liguei. Grudei minha boca na dele, puxando a barra de sua regata.

— Aqui? — perguntou, arranhando meu pescoço com sua barba.

— Em qualquer lugar com você — murmurei de volta, jogando sua camiseta longe.

— Até no carro? — perguntou, brincando. Ele sabia que eu tinha tomado ranço de sexo no carro por conta de nosso primeiro namoro.

— Não me provoca — rosnei.

Chris riu baixinho, mas a brincadeira logo cessou com a necessidade latente em nossos corpos. Ele puxou minha cintura mais para perto de si e só assim percebi que sua braguilha estava aberta.

Ele me empurrou para trás e deitei na areia, encaixando meus polegares em seu cós e escorregando a calça para baixo. Eu não queria ter que esperar muito mais.

Seus dedos foram até o laço da calcinha do meu biquini e desamarraram a cordinha, me despindo sem tirar o olhar do meu. Ainda com meus joelhos em sua cintura, se encaixou e eu o senti escorregar em minha umidade acumulada.

Ele estava lá, em minha entrada e suspirei.

— Chris — gemi. — A camisinha.

— Merda — xingou.

A pressão do seu pênis em minha entrada afrouxou e ele se levantou agitado, puxando sua calça de volta, retirando um preservativo do bolso.

— Que abuso! — reclamei, rindo. — Não acredito que você trouxe pra cá.

— Um homem pode sonhar, não pode? — brincou, antes de voltar a me beijar.

 

FIM?

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